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Soberania dos veredictos, será?

Agenda 13/11/2017 às 10:30

No HC 118.770/SP, o STF decidiu ser possível iniciar o cumprimento da pena no procedimento do Tribunal do Júri já com a condenação em primeiro grau, com base na soberania dos veredictos. O artigo estabelece debate em torno da adequação da decisão à CF.

Vem ganhando destaque a posição inicialmente defendida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, no julgamento do Habeas Corpus 118.770/SP, pela qual se sustenta que a condenação no Tribunal do Júri abala fortemente a presunção de inocência, em razão da previsão constitucional de soberania dos veredictos, o que autoriza o imediato início do cumprimento da pena.  

A questão diz respeito ao conteúdo da letra c, do inciso XXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal que possui a seguinte redação:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Nesse sentido, já em outubro de 2016, no julgamento das ADC 43 e 44, o Ministro Roberto Barroso assim se manifestava:

“A condenação pelo tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d, da CF”.

Em que pese toda a cultura dos que têm defendido a posição acima destacada, importa seja ela melhor refletida e analisada com parcimônia, considerando as características próprias do Tribunal do Júri, a disciplina constitucional que lhe foi ofertada, bem como a necessidade de preservação de logicidade mínima no sistema de justiça, em consonância com a estrutura do modelo democrático de Estado.

Ao iniciar a reflexão sobre o tema, não se pode descuidar que efetivamente a soberania dos veredictos encontra importante previsão na Lei maior, sendo ainda baliza fundamental do julgamento pelos jurados em alguns dos principais países desenvolvidos do mundo.

Especificamente no caso brasileiro, a soberania dos veredictos se inscreve no artigo 5º da Constituição Federal, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais e já aí começa a se descortinar o pecadilho da construção jurídica que admite, como decorrência deste princípio, o imediato cumprimento da pena após a condenação pelo júri.

A verdade é que os direitos e garantias fundamentais dizem respeito a uma pauta mínima de proteção do cidadão contra o Estado, considerando a magnitude do poder por este representado, de maneira que, situada a questão no âmbito penal, pode-se dizer, sem a menor dúvida, que os direitos e garantias fundamentais se voltam para limitar o poder punitivo, pois sua lógica é a da salvaguarda do cidadão, dentro de uma conexão sistemática entre os vários direitos e garantias estabelecidos.

A propósito, o direito à liberdade é um dos que maior destaque tem no artigo 5º da Carta Constitucional brasileira, estando já estabelecido em seu caput com a proclamação do direito de todos à liberdade e detalhado em vários outros incisos que atuam desde a proteção à liberdade de ir e vir, passando pela liberdade de pensamento e não esquecendo nem mesmo de aspectos como a liberdade de associação.

Com isso se verifica que há uma clara prevalência constitucional à liberdade e a interpretação sistemática da soberania dos veredictos, que também está inserida no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, não pode ser outra que a mais apta a produzir a limitação do poder punitivo, pois o inverso representaria concessão excessiva de capacidade interventiva do Estado, em comprometimento do próprio sentido axiológico da Constituição Federal.

Acresce observar, nessa primeira gama de ideias, que os direitos e garantias fundamentais devem ser interpretados da maneira mais ampla e eficaz a que produzam seus efeitos protetivos do cidadão, o que ressalte, em relação ao direito penal, não pode ter outra leitura que a produção da maior eficácia possível na limitação do poder punitivo.

A partir das observações anteriores conveniente refletir sobre o que realizou a Corte Constitucional brasileira, no já referido Habeas Corpus 118.770 e mais recentemente no rumoroso caso Bruno, ao proclamar ser possível o cumprimento de pena, no júri, desde a condenação em primeiro grau de jurisdição, independentemente de qualquer recurso do acusado, como decorrência da soberania dos veredictos, pois indisfarçavelmente se utilizou um princípio que se insere na ótica dos direitos e garantias fundamentais, não para a salvaguardar o cidadão contra o poder do Estado, mas para ampliar a capacidade do Estado de intervir nas liberdades fundamentais e em desconexão com o direito à liberdade que, como visto, é um dos mais prestigiados pelo artigo 5º da Carta Maior.

Melhor explicando, a hermenêutica constitucional possível dos direitos e garantias fundamentais é a que protege o cidadão contra o poder estatal. No campo penal, especificamente, deve produzir a limitação do poder punitivo e quando o Supremo Tribunal Federal utiliza a soberania dos veredictos, que está inserida no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, para ampliar o poder punitivo e limitar a liberdade, mais que produzir a revogação tácita de um dispositivo, o que faz é tacitamente afastar a eficácia protetiva de toda carta constitucional, transformando-a em um documento panfletário, passível de modificação para atender anseios momentâneos da opinião pública, em prol de um modelo de Estado policialesco agigantado.

Vale observar que, na história contemporânea, todos os regimes autoritários foram sendo forjados a partir da construção de lógicas semelhantes, ou seja, da fragilização dos mecanismos de proteção do cidadão em prol de uma edificação de garantias constitucionais absolutamente fluidas e passíveis de mutação para o atendimento da opinião pública.

A questão, porém, é ainda mais instigante, pois a mesma Corte constitucional que neste momento se vale da soberania dos veredictos, catalogada no rol dos direitos e garantias fundamentais, para reduzir a liberdade e aumentar o poder punitivo, reluta, desde a edição da Constituição Federal em 1988, em proclamar o real significado da determinação constitucional de soberania dos veredictos nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, mantendo total dissonância com a estrutura adotada pelas diferentes nações democráticas do mundo que têm no julgamento por jurados mecanismo de resolução de conflitos.

A questão é que o primeiro e mais importante impacto da soberania dos veredictos é a irrecorribilidade, quanto ao mérito, de decisões absolutórias do júri e justamente este campo, conexo diretamente com o sentido teleológico dos direitos e garantias fundamentais, por representar salvaguarda da liberdade em detrimento da continuidade interminável da ação estatal de busca pelo exercício do poder punitivo, nunca foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.

Desde os primeiros precedentes em torno da matéria, a Corte Constitucional brasileira tem repetido argumento de base puramente retórica e que não subsiste a qualquer análise realística, de que é possível o recurso contra a decisão absolutória do júri com base em fundamentos de mérito, a partir da verificação de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos, afirmando retoricamente que esta possibilidade decorre do fato de que diante de juízo de cassação e não de reforma, na medida em que, caso provido o recurso, a decisão não é modificada, mas cassada para que a pessoa seja submetida a um novo julgamento.

A realidade, porém, é que o recurso contra as decisões absolutórias do júri, com fundamento na manifesta contrariedade à prova dos autos, seja realizada reforma ou cassação, outra coisa não é que invasão no mérito do veredicto, descredenciando a sua prolação, situação claramente incompatível com um princípio que estabelece ser este veredicto soberano e que não encontra na própria constituição outro princípio que possa limitá-lo para garantir maior impulso à acusação, diferente da decisão condenatória, que vai encontrar limitação em outros princípios constitucionais, como o da plenitude de defesa e o da presunção de inocência.

A situação é mais gravosa quando se considera que, desde a reforma havida em 2008 no procedimento especial do Tribunal do Júri, passou a existir quesito próprio a permitir a absolvição pelo jurado com base no critério do livre convencimento íntimo de forma plena (o jurado absolve o acusado?), inclusive com possibilidade de manifestação absolutória a partir do sentimento de indulgência.

Assim, ainda que seja devotado profundo respeito aos que têm manifestado posição em sentido oposto à aqui esposada, mas há total carência de base lógica quando se observa que a mesma Corte Constitucional que habilita o poder punitivo antecipado com lastro na soberania dos veredictos, inscrito na Carta Maior no título dos direitos e garantias fundamentais, não reconhece que esta mesma soberania dos veredictos, deva ser interpretada em prol da proteção do cidadão contra o Estado e a partir disso seja de forma induvidosa proclamada a inatacabilidade do conteúdo de mérito de decisão absolutória dos jurados.

Colocada a questão no patamar da carência de base lógica resta bastante evidente que não se trata de mera exegese, mas de uma escolha, por um sistema de justiça penal baseado no punitivismo, na lógica policialesca, na redução de garantias e no implemento de mecanismos fortalecedores das capacidades do órgão acusatório em detrimento da defesa.

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Ocorre que essa opção não é compatível com o Estado Democrático, pois de bases estruturantes autoritárias, na medida em que seu íntimo contém a afirmação de que o ser humano é servil ao Estado e que este pode ser agigantado a qualquer momento e incontrolavelmente, desde que satisfeitos clamores irracionais da opinião pública de momento.

Na medida em que contrária ao próprio eixo estruturante do Estado Democrático, não se conseguem encontrar argumentos válidos para sustentar que possa ser mantida, na matéria ora em análise, a construção interpretativa até o presente momento estabelecida, pois seria o mesmo que negar validade ao próprio Estado brasileiro, na medida em que ele deve ser continuamente estruturado e balizado pelas regras democráticas.

Há um indisfarçável afastamento em relação ao eixo democrático, quando é desenvolvida construção comprometida, sob o ponto de vista da lógica mínima e do sentido axiológico da Constituição Federal, para proclamar que um direito e garantia fundamental não pode ser empregado para proteger o cidadão contra o poder do Estado, mas que pode ser utilizado para habilitar maior capacidade interventiva sobre as liberdades fundamentais. 

Para que se aquilate como diante de completa inversão da lógica dos regimes democráticos, basta que a questão seja submetida à análise sob a ótica dos direitos humanos e ela pior ainda se coloca.

Vale lembrar que um dos principais instrumentos normativos dos quais o Brasil é signatário é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, verdadeira fonte interpretativa dos sistemas jurídicos no continente Americano, impulsionador de avanços no campo da consolidação dos direitos humanos, os quais indiscutivelmente são referência fundamental para a estruturação democrática de Estado.

Ocorre que no seu artigo 8º item 2, ao tratar das garantias judiciais a Convenção referida assim disciplina:

 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

 a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

 b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

 c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

 d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

 e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

 f.  direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

 g.  direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e

 h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

  Importa particularmente a letra h, pois deixa claro ser garantia decorrente da própria condição humana, a de recorrer ao menos uma vez, ou seja, a execução de uma pena, já a partir da decisão de primeiro grau, constitui-se em verdadeiro ataque a aspecto essencial da pauta mínima dos direitos humanos, pois implica em vedar por via indireta a possibilidade recursal, na medida em que retira qualquer eficácia real de eventual recurso da pessoa condenada.

A esse título, vale ressaltar com bastante tranquilidade que não se pode sequer cogitar que o cumprimento da pena a partir do primeiro grau não estaria em confronto com a Convenção Americana de Direitos Humanos por não impedir que o réu, se o desejar, recorra, pois estar-se-ia a construir mera ficção, incompatível com a característica fundamental do sistema penal de base dogmática decorrente do método onto-ontológico, o que bloqueia que a realidade ceda em prol da mera estruturação retórica do conhecimento. Essa característica, vale consignar, é estabelecida desde os avanços havidos no pensamento penal após a segunda guerra mundial para impedir a repetição de atrocidades como as havidas neste conflito.

Melhor explicando, um recurso do réu que desde logo inicia o cumprimento da pena é um “não recurso”, pois ainda que provido seus efeitos são nulos, pois o tempo de pena cumprido é irreparável, não havendo como resgatar o tempo de vida indevidamente subtraído, o sofrimento havido, os danos colaterais para familiares, eventual perda de emprego, de patrimônio pela paralisação da atividade produtiva que garantia sua manutenção, entre outras tantas consequências.

Assim o que a Corte Constitucional fez foi negar qualquer eficácia real ao recurso de apelação do réu após decisão condenatória do júri, fazendo com que a estruturação dos direitos humanos prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos não tenha qualquer eficácia no território brasileiro, o que coloca o Brasil em um cenário de afirmação, pela Corte Maior, da interrupção democrática, pois há rechaço à pauta mínima de direitos humanos, estruturando-se modelo punitivo em que os direitos e garantias servem para cercear as liberdades e não para proteger o cidadão do poder estatal.

Em outras palavras, algo que se insere como direito e garantia fundamental não é interpretado pelo Supremo Tribunal Federal para salvaguardar a liberdade e limitar o poder punitivo, mas o é para ampliar o poder de intervenção do Estado sobre os cidadãos, negando direta vigência a um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos humanos do planeta, seguramente o mais importante do continente Americano, com isso proclamando a presença de um modelo de Estado policialesco, fortemente interventivo, em que o anseio punitivista se sobrepõe a qualquer outro, o que talvez possa ser classificado de vários formas, mas seguramente uma delas não é a de Estado democrático, pois não se pode, diante do conjunto descrito, imaginar que se esteja realçando qualquer aspecto da estrutura democrática.

Por fim, a partir do anteriormente dito e considerando que o Brasil se assenta em Constituição francamente defensora do modelo democrático e da prevalência do homem sobre o Estado há que se perguntar, será mesmo que a Corte Constitucional quis falar da soberania dos veredictos prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, c da Constituição Federal, quando garantiu cumprimento antecipado da pena no Tribunal do Júri, já com a decisão de primeiro grau? Seguramente não, porque como visto a Carta Constitucional brasileira não permite a interpretação até agora realizada. Do que então será que se está falando? Olhando a forte pressão da opinião pública por punições irracionais que tanto tem seduzido parte da comunidade jurídica, talvez Hitler arriscasse uma resposta: - Do são sentimento do povo.

Vem ganhando destaque a posição inicialmente defendida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, no julgamento do Habeas Corpus 118.770/SP, pela qual se sustenta que a condenação no Tribunal do Júri abala fortemente a presunção de inocência, em razão da previsão constitucional de soberania dos veredictos, o que autoriza o imediato início do cumprimento da pena.  

A questão diz respeito ao conteúdo da letra c, do inciso XXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal que possui a seguinte redação:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Nesse sentido, já em outubro de 2016, no julgamento das ADC 43 e 44, o Ministro Roberto Barroso assim se manifestava:

“A condenação pelo tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d, da CF”.

Em que pese toda a cultura dos que tem defendido a posição acima destacada, importa seja ela melhor refletida e analisada com parcimônia, considerando as características próprias do Tribunal do Júri, a disciplina constitucional que lhe foi ofertada, bem como a necessidade de preservação de logicidade mínima no sistema de justiça, em consonância com a estrutura do modelo democrático de Estado.

Ao iniciar a reflexão sobre o tema, não se pode descuidar que efetivamente a soberania dos veredictos encontra importante previsão na Lei maior, sendo ainda baliza fundamental do julgamento pelos jurados em alguns dos principais países desenvolvidos do mundo.

Especificamente no caso brasileiro, a soberania dos veredictos se inscreve no artigo 5º da Constituição Federal, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais e já aí começa a se descortinar o pecadilho da construção jurídica que admite, como decorrência deste princípio, o imediato cumprimento da pena após a condenação pelo júri.

A verdade é que os direitos e garantias fundamentais dizem respeito a uma pauta mínima de proteção do cidadão contra o Estado, considerando a magnitude do poder por este representado, de maneira que, situada a questão no âmbito penal, pode-se dizer, sem a menor dúvida, que os direitos e garantias fundamentais se voltam para limitar o poder punitivo, pois sua lógica é a da salvaguarda do cidadão, dentro de uma conexão sistemática entre os vários direitos e garantias estabelecidos.

A propósito, o direito à liberdade é um dos que maior destaque tem no artigo 5º da Carta Constitucional brasileira, estando já estabelecido em seu caput com a proclamação do direito de todos à liberdade e detalhado em vários outros incisos que atuam desde a proteção à liberdade de ir e vir, passando pela liberdade de pensamento e não esquecendo nem mesmo de aspectos como a liberdade de associação.

Com isso se verifica que há uma clara prevalência constitucional à liberdade e a interpretação sistemática da soberania dos veredictos, que também está inserida no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, não pode ser outra que a mais apta a produzir a limitação do poder punitivo, pois o inverso representaria concessão excessiva de capacidade interventiva do Estado, em comprometimento do próprio sentido axiológico da Constituição Federal.

Acresce observar, nessa primeira gama de ideias, que os direitos e garantias fundamentais devem ser interpretados da maneira mais ampla e eficaz a que produzam seus efeitos protetivos do cidadão, o que ressalte, em relação ao direito penal, não pode ter outra leitura que a produção da maior eficácia possível na limitação do poder punitivo.

A partir das observações anteriores conveniente refletir sobre o que realizou a Corte Constitucional brasileira, no já referido Habeas Corpus 118.770 e mais recentemente no rumoroso caso Bruno, ao proclamar ser possível o cumprimento de pena, no júri, desde a condenação em primeiro grau de jurisdição, independentemente de qualquer recurso do acusado, como decorrência da soberania dos veredictos, pois indisfarçavelmente se utilizou um princípio que se insere na ótica dos direitos e garantias fundamentais, não para a salvaguardar o cidadão contra o poder do Estado, mas para ampliar a capacidade do Estado de intervir nas liberdades fundamentais e em desconexão com o direito à liberdade que, como visto, é um dos mais prestigiados pelo artigo 5º da Carta Maior.

Melhor explicando, a hermenêutica constitucional possível dos direitos e garantias fundamentais é a que protege o cidadão contra o poder estatal. No campo penal, especificamente, deve produzir a limitação do poder punitivo e quando o Supremo Tribunal Federal utiliza a soberania dos veredictos, que está inserida no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, para ampliar o poder punitivo e limitar a liberdade, mais que produzir a revogação tácita de um dispositivo, o que faz é tacitamente afastar a eficácia protetiva de toda carta constitucional, transformando-a em um documento panfletário, passível de modificação para atender anseios momentâneos da opinião pública, em prol de um modelo de Estado policialesco agigantado.

Vale observar que, na história contemporânea, todos os regimes autoritários foram sendo forjados a partir da construção de lógicas semelhantes, ou seja, da fragilização dos mecanismos de proteção do cidadão em prol de uma edificação de garantias constitucionais absolutamente fluidas e passíveis de mutação para o atendimento da opinião pública.

A questão, porém, é ainda mais instigante, pois a mesma Corte constitucional que neste momento se vale da soberania dos veredictos, catalogada no rol dos direitos e garantias fundamentais, para reduzir a liberdade e aumentar o poder punitivo, reluta, desde a edição da Constituição Federal em 1988, em proclamar o real significado da determinação constitucional de soberania dos veredictos nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, mantendo total dissonância com a estrutura adotada pelas diferentes nações democráticas do mundo que tem no julgamento por jurados mecanismo de resolução de conflitos.

A questão é que o primeiro e mais importante impacto da soberania dos veredictos é a irrecorribilidade, quanto ao mérito, de decisões absolutórias do júri e justamente este campo, conexo diretamente com o sentido teleológico dos direitos e garantias fundamentais, por representar salvaguarda da liberdade em detrimento da continuidade interminável da ação estatal de busca pelo exercício do poder punitivo, nunca foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.

Desde os primeiros precedentes em torno da matéria, a Corte Constitucional brasileira tem repetido argumento de base puramente retórica e que não subsiste a qualquer análise realística, de que é possível o recurso contra a decisão absolutória do júri com base em fundamentos de mérito, a partir da verificação de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos, afirmando retoricamente que esta possibilidade decorre do fato de que diante de juízo de cassação e não de reforma, na medida em que, caso provido o recurso, a decisão não é modificada, mas cassada para que a pessoa seja submetida a um novo julgamento.

A realidade, porém, é que o recurso contra as decisões absolutórias do júri, com fundamento na manifesta contrariedade à prova dos autos, seja realizada reforma ou cassação, outra coisa não é que invasão no mérito do veredicto, descredenciando a sua prolação, situação claramente incompatível com um princípio que estabelece ser este veredicto soberano e que não encontra na própria constituição outro princípio que possa limitá-lo para garantir maior impulso à acusação, diferente da decisão condenatória, que vai encontrar limitação em outros princípios constitucionais, como o da plenitude de defesa e o da presunção de inocência.

A situação é mais gravosa quando se considera que desde a reforma havida em 2008 no procedimento especial do Tribunal do Júri, passou a existir quesito próprio a permitir a absolvição pelo jurado com base no critério do livre convencimento íntimo de forma plena (o jurado absolve o acusado?), inclusive com possibilidade de manifestação absolutória a partir do sentimento de indulgência.

Assim, ainda que seja devotado profundo respeito aos que tem manifestado posição em sentido oposto à aqui esposada, mas há total carência de base lógica quando se observa que a mesma Corte Constitucional que habilita o poder punitivo antecipado com lastro na soberania dos veredictos, inscrito na Carta Maior no título dos direitos e garantias fundamentais, não reconhece que esta mesma soberania dos veredictos, deva ser interpretada em prol da proteção do cidadão contra o Estado e a partir disso seja de forma induvidosa proclamada a inatacabilidade do conteúdo de mérito de decisão absolutória dos jurados.

Colocada a questão no patamar da carência de base lógica resta bastante evidente que não se trata de mera exegese, mas de uma escolha, por um sistema de justiça penal baseado no punitivismo, na lógica policialesca, na redução de garantias e no implemento de mecanismos fortalecedores das capacidades do órgão acusatório em detrimento da defesa.

Ocorre que essa opção não é compatível com o Estado Democrático, pois de bases estruturantes autoritárias, na medida em que seu íntimo contém a afirmação de que o ser humano é servil ao Estado e que este pode ser agigantado a qualquer momento e incontrolavelmente, desde que satisfeitos clamores irracionais da opinião pública de momento.

Na medida em que contrária ao próprio eixo estruturante do Estado Democrático, não se conseguem encontrar argumentos válidos para sustentar que possa ser mantida, na matéria ora em análise, a construção interpretativa até o presente momento estabelecida, pois seria o mesmo que negar validade ao próprio Estado brasileiro, na medida em que ele deve ser continuamente estruturado e balizado pelas regras democráticas.

Há um indisfarçável afastamento em relação ao eixo democrático, quando é desenvolvida construção comprometida, sob o ponto de vista da lógica mínima e do sentido axiológico da Constituição Federal, para proclamar que um direito e garantia fundamental não pode ser empregado para proteger o cidadão contra o poder do Estado, mas que pode ser utilizado para habilitar maior capacidade interventiva sobre as liberdades fundamentais. 

Para que se aquilate como diante de completa inversão da lógica dos regimes democráticos, basta que a questão seja submetida à análise sob a ótica dos direitos humanos e ela pior ainda se coloca.

Vale lembrar que um dos principais instrumentos normativos dos quais o Brasil é signatário é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, verdadeira fonte interpretativa dos sistemas jurídicos no continente Americano, impulsionador de avanços no campo da consolidação dos direitos humanos, os quais indiscutivelmente são referência fundamental para a estruturação democrática de Estado.

Ocorre que no seu artigo 8º item 2, ao tratar das garantias judiciais a Convenção referida assim disciplina:

 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

 a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

 b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

 c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

 d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

 e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

 f.  direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

 g.  direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e

 h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.  

Importa particularmente a letra h, pois deixa claro ser garantia decorrente da própria condição humana, a de recorrer ao menos uma vez, ou seja, a execução de uma pena, já a partir da decisão de primeiro grau, constitui-se em verdadeiro ataque a aspecto essencial da pauta mínima dos direitos humanos, pois implica em vedar por via indireta a possibilidade recursal, na medida em que retira qualquer eficácia real de eventual recurso da pessoa condenada.

A esse título, vale ressaltar com bastante tranquilidade que não se pode sequer cogitar que o cumprimento da pena a partir do primeiro grau não estaria em confronto com a Convenção Americana de Direitos Humanos por não impedir que o réu, se o desejar, recorra, pois estar-se-ia a construir mera ficção, incompatível com a característica fundamental do sistema penal de base dogmática decorrente do método onto-ontológico, o que bloqueia que a realidade ceda em prol da mera estruturação retórica do conhecimento. Essa característica, vale consignar, é estabelecida desde os avanços havidos no pensamento penal após a segunda guerra mundial para impedir a repetição de atrocidades como as havidas neste conflito.

Melhor explicando, um recurso do réu que desde logo inicia o cumprimento da pena é um “não recurso”, pois ainda que provido seus efeitos são nulos, pois o tempo de pena cumprido é irreparável, não havendo como resgatar o tempo de vida indevidamente subtraído, o sofrimento havido, os danos colaterais para familiares, eventual perda de emprego, de patrimônio pela paralisação da atividade produtiva que garantia sua manutenção, entre outras tantas consequências.

Assim o que a Corte Constitucional fez foi negar qualquer eficácia real ao recurso de apelação do réu após decisão condenatória do júri, fazendo com que a estruturação dos direitos humanos prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos não tenha qualquer eficácia no território brasileiro, o que coloca o Brasil em um cenário de afirmação, pela Corte Maior, da interrupção democrática, pois há rechaço à pauta mínima de direitos humanos, estruturando-se modelo punitivo em que os direitos e garantias servem para cercear as liberdades e não para proteger o cidadão do poder estatal.

Em outras palavras, algo que se insere como direito e garantia fundamental não é interpretado pelo Supremo Tribunal Federal para salvaguardar a liberdade e limitar o poder punitivo, mas o é para ampliar o poder de intervenção do Estado sobre os cidadãos, negando direta vigência a um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos humanos do planeta, seguramente o mais importante do continente Americano, com isso proclamando a presença de um modelo de Estado policialesco, fortemente interventivo, em que o anseio punitivista se sobrepõe a qualquer outro, o que talvez possa ser classificado de vários formas, mas seguramente uma delas não é a de Estado democrático, pois não se pode, diante do conjunto descrito, imaginar que se esteja realçando qualquer aspecto da estrutura democrática.

Por fim, a partir do anteriormente dito e considerando que o Brasil se assenta em Constituição francamente defensora do modelo democrático e da prevalência do homem sobre o Estado há que se perguntar, será mesmo que a Corte Constitucional quis falar da soberania dos veredictos prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, c da Constituição Federal, quando garantiu cumprimento antecipado da pena no Tribunal do Júri, já com a decisão de primeiro grau? Seguramente não, porque como visto a Carta Constitucional brasileira não permite a interpretação até agora realizada. Do que então será que se está falando? Olhando a forte pressão da opinião pública por punições irracionais que tanto tem seduzido parte da comunidade jurídica, talvez Hitler arriscasse uma resposta: - Do são sentimento do povo. 

Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Soberania dos veredictos, será?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5248, 13 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57543. Acesso em: 24 dez. 2024.

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