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A função sócio ambiental da propriedade na Constituição de 1988

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Agenda 16/10/2004 às 00:00

Esta monografia analisará a propriedade rural quanto à preservação de áreas florestais, do solo, da água e da diversidade biológica, no relacionado à problemática de propriedades inseridas em espaços territoriais especialmente protegidos.

1 INTRODUÇÃO

Esta monografia fará uma análise da propriedade situada em áreas rurais e nas implicações colocadas pela legislação ambiental e pela Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988 referentes basicamente à preservação de áreas florestais, do solo, da água e da diversidade biológica, no relacionado à problemática de propriedades inseridas em espaços territoriais especialmente protegidos.

Ao iniciarmos a análise da função social da propriedade destacamos o primeiro capítulo para cuidarmos da evolução histórica do conceito de propriedade privada, iniciando com o entendimento de propriedade privada para São Tomás de Aquino passando pelo conceito de Leon Duguit, e ao final falamos sobre a função social da terra, que comporta nos nossos dias, duas concepções opostas sob a invocação do mesmo objetivo: a concepção democrática que defende a reforma agrária pelos meios pacíficos; e a concepção marxista ou marxista-leninista que, em nome do mesmo princípio, propugna pela expropriação pura e simples.

Na segunda parte deste estudo, analisaremos o conteúdo da função ambiental da propriedade. Considerada esta, como um elemento da função social da propriedade, que é um conceito anterior e de alcance mais amplo que a função atribuída àquele instituto advinda da necessidade de manutenção de um meio ambiente equilibrado, e propicio a sadia qualidade de vida. As duas categorias, em estudo, não são antagônicas - ao contrário, tem seu complemento uma na outra -, tem a função ambiental da propriedade como uma característica marcante da constituição de 1988, que considera a problemática ambiental parte da social e vice-versa.

Na terceira abordagem deste estudo faz-se um rápido exame de como a sociedade contemporânea, com suas necessidades de manutenção de um meio ambiente equilibrado; propicio a sadia qualidade de vida e da implantação de um modelo de desenvolvimento sustentável, vem transformando, aos poucos, a concepção privatista do direito de propriedade em direção à propriedade como sendo um direito-dever.

Em seguida, a construção do conteúdo da função ambiental da propriedade parte dos dispositivos constitucionais contidos no Capítulo I do Título II (dos direitos e deveres individuais e coletivos), do Capítulo I do Título VII (dos princípios gerais da atividade econômica), do Capítulo III do Título VII (da política agrícola e fundiária e da reforma agrária) e do Capítulo VI do Título VIII (do meio ambiente).

Em continuação ao estudo do texto constitucional referente à função ambiental da propriedade, se demonstra na legislação ambiental correlata os vários deveres positivos e negativos inerentes ao direito de propriedade que tem em vista o equilíbrio ecológico, que, uma vez implementados, podem transformar o direito de propriedade em mais um instrumento de garantia de um meio ambiente propicio à sadia qualidade de vida.

Após estas análises, faz-se uma demonstração das limitações da regulamentação civilista do direito de propriedade, que se restringe, após o advento da Constituição Federal de 1988, às relações civis decorrentes deste direito, mas não determina seu regime jurídico, que é constitucional.

Logo a seguir, demonstra-se que, embora a Constituição Federal e a legislação ambiental vigente sejam claras quanto as limitações positivas e negativas inerentes ao direito de propriedade, a ideologia, tem seu reflexo prático em maior incidência principalmente sobre o Poder Judiciário, que insistia em considerar apenas o art. 524 do Código Civil (atual art. 1.288 do novo Código Civil), como se este existisse acima do ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, soberano e independente de qualquer disposição constitucional sobre as funções social e ambiental inerentes ao direito de propriedade.

Finalizando, a partir de estudos do art. 1.228 do novo Código Civil, verifica-se como ramos tradicionais do direito vêm absorvendo a preocupação com o meio ambiente. Através, sobretudo, da reforma de seus institutos.


2 A DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A doutrina da função social da propriedade não tem outro fim senão o de dar sentido mais amplo ao conceito econômico de propriedade encarando-o como uma riqueza que se destina à produção de bens que satisfaçam as necessidades sociais.

A preocupação com a função social dos bens já existia desde a antiguidade. Foi ARISTÓTELES1, o grande filosofo grego, quem primeiro enunciou a idéia relativa à função social.

Ao contrário de Platão, o qual em A República, entendia que os bens de uma sociedade deveriam pertencer a todos os membros da comunidade, Aristóteles, em sua Política, defendia a apropriação pessoal como a maneira mais eficaz de assegurar a destinação social dos bens – segundo ele, os homens têm direito de usar os bens não só para a sua própria manutenção como para satisfazer a coletividade:

A administração dos bens, dividida entre os respectivos possuidores não provocará queixas reciprocas e eles crescerão porque cada um se dedicara aos mesmos como a um negócio pessoal, só seu; por outro lado, as qualidades dos cidadãos farão com que os bens dos amigos sejam comuns, como diz o provérbio, quanto ao uso [ ], e conclui, [ ] é obviamente melhor, portanto, que a propriedade seja comum quanto ao seu uso" (grifos nossos).

Embora esta preocupação com a destinação dos bens tenha surgido desde a antiguidade, somente com o papel exercido pela Igreja Católica, a função social da propriedade, teve impulso, como princípio que visa a satisfazer as necessidades da coletividade.

Na realidade, este princípio decorre da evolução da concepção de propriedade, pela necessidade histórica que esta teve em adquirir uma feição mais humana.

Segundo PEREIRA2:

a propriedade romana, a qual se firmou como um direito absoluto, exclusivo e perpetuo, exercido através de três jura (juramento): o direito de usar, de fruir e de abusar da coisa (jus utendi, jus fruendi, jus abutendi), passou-se à propriedade medieval, que, embora perdendo o caráter exclusivista – eis que o domínio eminente (Estado), domínio direito (senhor) e domínio útil (vassalo) – ainda manteve o seu poder, pois o que ocorreu neste período foi apenas uma fragmentação do poder político.

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Neste momento avultou, em reação à exploração do homem, o pensamento da Igreja, na figura de Santo Tomaz de Aquino, que deu uma perspectiva mais moral e espiritual à doutrina da destinação dos bens formulada por Aristóteles, surgindo conforme diz SANTOS3: "Na noite dos tempos uma luz tão límpida e penetrante que iluminará o direito de propriedade através dos séculos seguintes: a função social da propriedade".

E ainda:

Santo Thomaz de Aquino, na Summa Theológica e na Summa Contra Gentiles, seguindo o pensamento cristão, aperfeiçoou o pensamento Aristótelico, trazendo a idéia de bem comum. Segundo ele o homem, para garantir a sua própria sobrevivência, tem um direito natural ao apossamento dos bens materiais; logo, o direito de propriedade resulta desse direito natural de apropriação dos bens na luta pela sobrevivência, contudo, esse direito de propriedade é limitado pelo bem comum – o bem da coletividade, o direito que todos têm de viver condignamente.

De outro modo SANTOS4: dizia ele: "na Summa Theológica, I – IV, 17 a 2: "Quanto ao nosso direito de usar as coisas é preciso que as consideremos como bens da coletividade, de tal forma que as devemos utilizar, para suprir as necessidades dos outros".

Para São Tomás de Aquino o conceito de propriedade privada é visto em três planos distintos na ordem de valores. Em um primeiro lugar, o homem: em razão de sua natureza específica (animal racional), tem um direito natural ao apossamento dos bens materiais. Num segundo, contempla o problema da apropriação dos bens, qual resulta, em última instância, no direito de propriedade propriamente dito. Por fim, num terceiro plano, São Tomás de Aquino permite o condicionamento da propriedade ao momento histórico de cada povo, desde que não se chegue ao extremo de negá-la.

As encíclicas papais, por sua vez, abordando questões sociais, enfocam o problema sob o prisma tomista. A autenticidade cristã do direito de propriedade privada está reafirmado nas encíclicas "Rerum Novarum", de Lei XIII, e Mater et Magistra, de João Paulo XXIII, embora não deixasse de se fazer menção ao condicionamento representado pelo bom uso da propriedade, como se vê, na Quadragésimo Ano, de Pio X.

Para VITO5, "Ao direito de propriedade sobre os bens estará intrinsecamente inerente uma função social" (Mater et Magistra)". A essa limitação do direito de propriedade, responde VITO6 com o argumento de que esse princípio: "longe de enfraquecer o instituto da propriedade privada, reforça-o porque um regime em que ele satisfaz à função social, torna-o cada vez menos criticável em nome da justiça social".

Pode-se sintetizar tudo na realização do bem comum, entendido o bem da comunidade. Quer isso dizer que o Estado ao ter como seu objetivo precípuo o bem comum, jamais deverá sacrificar nenhum dos direitos considerados fundamentais do ser humano.

Para VIVANCO7:

a função social da propriedade representaria nada mais nada menos que o reconhecimento de todo titular do domínio, de que por ser um membro da comunidade tem direitos e obrigações com relação aos demais membros, de maneira que se ele pode chegar a ser titular do domínio, tem a obrigação de cumprir com o direito dos demais sujeitos, que consiste em não realizar ato algum que possa impedir ou obstaculizar o bem de ditos sujeitos, ou seja, da comunidade.

Na concepção de VIVANCO8:

o direito à coisa se manifesta concretamente no poder de usá-la e usufruí-la. O dever que importa ou comporta a obrigação que se tem com os demais sujeitos se traduz na necessidade de cuidá-la a fim de que não perca sua capacidade produtiva e que produza frutos em benefício do titular e, indiretamente, para satisfação das necessidades dos demais sujeitos da comunidade.

Assim, ao direito do titular implica o poder de usar livremente a coisa, mas por sua vez supõe o dever de utilizá-la de maneira que não se deteriore. Isso em razão de que sua capacidade produtiva interessa por igual a todos os sujeitos da comunidade, e que os elementos essenciais para a manutenção da vida humana, provém de elementos agrários como a terra ou os animais.

Para BORGES9:

"[ ] a função social da terra é conceito que pode ser visto sob ângulos diferentes: Alguns a consideram pelo prisma dos positivistas, como aconteceu no México, em 1917". "[ ] Tal concepção põe o direito de propriedade excessivamente sob o arbítrio do Estado, que pode, inclusive, chegar ao ponto de devorá-lo". "[ ] Melhor responde aos anseios do homem a concepção cristã, na linguagem tomista"."[ ]. De nossa parte, revelando convicção, entendemos que a legislação agrária brasileira optou por esta diretriz, que está na linha de nossa tradição, toda ela embasada no cristianismo".

Concluindo, assevera BORGES10: "que no direito agrário, quanto ao imóvel rural, sentimos ser o direito de propriedade a faculdade que a pessoa tem de possuí-lo como próprio, com o dever correlato de utilizá-lo conforme o exigir o bem estar da comunidade".

Recorda MONTEIRO11: "que entre os romanos, o exercício do direito de propriedade era subordinado às exigências do bem comum".

Quando MONTEIRO12, dá notícia histórica do direito de propriedade preleciona que:

Parece que a propriedade, nos primórdios da civilização, começou por ser coletiva, transformando-se, porém, paulativamente, em propriedade individual. Trata-se, contudo, de ponto obscuro na história do direito e sobre o qual ainda não se disse a última palavra.

A "Declaração dos povos da América" aprovada na reunião de 1961, em Punta del Este, de que se originou a Aliança para o Progresso, consagrou a limitação do direito da propriedade da terra, defendendo a realização de programas de reforma agrária integral tendente à efetiva transformação, onde for necessária, das estruturas e dos injustos sistemas de posse e exploração da terra.

O conceito de Leon Duguit que se veio ampliando com o tempo, é de franca limitação ao direito de propriedade: A propriedade é protegida pelo direito, mas ela não é um direito, é uma coisa. Uma realidade econômica e não uma realidade jurídica. (Trate de Doit Const.).

Foi na Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a Revolução Francesa, que surgiu o Princípio da desapropriação por utilidade pública, inserta na Constituição de 1791 e no Código de Napoleão.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi uma conquista jurídica da vitória das potências democráticas contra os países de regime autoritário, nazista ou facista, aprovada a 10 de dezembro de 1948, por iniciativa da ONU, estabelece em seu artigo XVII:

1 – Toda a pessoa tem direito à propriedade, individual e coletivamente.

2 – Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

A desapropriação por interesse social resulta, é bem de ver, do conceito de função social, inserta em constituições modernas, depois da segunda guerra mundial, a mais assinalada delas, a Constituição de Weimar (Alemanha) de 1919.

Essa função social da terra foi admiravelmente definida por Leon Duguit13, ao sustentar que a propriedade:

não é um direito, mas uma função social. O proprietário ou possuidor da riqueza é vinculado a uma função ou dever social. Enquanto ele, detentor da propriedade, cumpre essa missão, seus atos devem ser protegidos. Não o cumprindo ou cumprindo mal ou de forma imperfeita; se não cultiva, deixa que sua propriedade se arruíne, ou não faz uso racional e adequado dos recursos naturais (função sócio ambiental da propriedade), torna legitima a intervenção do poder público para compeli-lo ao cumprimento de sua função social de proprietário, consiste em assegurar a utilização da riqueza conforme o seu destino.

A função social da terra comporta duas concepções opostas sob a invocação do mesmo objetivo: a concepção democrática que defende a reforma agrária pelos meios pacíficos; e a concepção marxista ou marxista-leninista que, em nome do mesmo princípio, propugna pela expropriação pura e simples. Sob tal ponto de vista, vale registrar que as diversas concepções ditam igual número de soluções para a posse da terra: a solução democrática, ou a mais acolhida para os países ocidentais, que considera a função social da propriedade privada, conquanto sujeita à limitações que estabelece com o objetivo de preservar o direito de propriedade, em oposição às concepções socialistas; a solução marxista que considera a terra propriedade do Estado, e que inspirou a reforma russa e a do Código Agrário da China, em 1950, chamada marxista-liberal, porque assegura a propriedade da terra pelos camponeses. Parece ser esta também a solução pela Ioguslávia. A reforma egípcia é um meio termo entre as duas concepções, predominando nesta, certas concessões ao direito individual.

Do exposto, conclui-se que a doutrina da função social da propriedade da terra, inspirou-se, basicamente na concepção tomista (doutrina de São Tomás de Aquino), nitidamente democrática, visando o bem comum, sem sacrifícios dos direitos fundamentais do homem.


3 A FUNÇÃO SÓCIO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL

Nos dias atuais o direito de propriedade não mais possui aquele cunho absoluto de antigamente.

É da essência do nosso sistema que o direito de propriedade só é reconhecido pela ordem jurídica do Estado, se for cumprida a função social da propriedade, paralelamente com o proveito pessoal do detentor do domínio.

Assim, a propriedade só existe enquanto direito, se respeitada a função social. Desatendida esta não existe direito de propriedade amparado pela Constituição. O cumprimento da função social é condição sine qua non para o reconhecimento do direito de propriedade.

Tal interpretação decorre do disposto na Constituição da República, que assenta:

Art. 5º, XXII, da C F: É garantido o direito de propriedade.

Art. 5º,XXIII, da CF: A propriedade atenderá à sua função social.

Art. 170, II, III, VI, da CF: A ordem econômica. tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: propriedade privada, função social da propriedade e defesa do meio ambiente.

Art. 186, I, II, da CF: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

Art. 225, caput da CF: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Art. 225, § 1º da CF: Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

Art. 225, § 1º, III, da CF: definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.

Art. 225, § 1º, VII, da CF: proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.

Art. 225, § 3º, da CF: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais ou administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Veja-se o pensamento do Prof. SILVA14:

A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade [ ] Com essa concepção é que o intérprete tem que compreender as normas constitucionais, que fundamentam o regime jurídico da propriedade: sua garantia enquanto atende sua função social, implicando uma transformação destinada a incidir, seja sobre o fundamento mesmo da atribuição dos poderes ao proprietário, seja, mais concretamente, sobre o modo em que o conteúdo do direito vem positivamente determinado; assim é que a função social mesma acaba por posicionar-se como elemento qualificante da situação jurídica considerada, manifestando-se, conforme as hipóteses, seja como condição de exercício de faculdades atribuídas, seja como obrigação de exercitar determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas. Enfim, a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens.

E ainda:

O certo, e ninguém hoje nega isso, é que a propriedade privada (e a pública também) sujeita-se a limites que são impostos como pressupostos para seu integral reconhecimento pela ordem jurídica e outros que lhe são agregados casuisticamente, diante de fatos que só se manifestam no instante em que o direito, consolidado e plenamente ajustado ao ordenamento, é exercitado... De uma maneira simplificada, o direito de propriedade dá ao seu titular o poder de exclusão (= reivindicação), uso, gozo, disposição e transmissão. Esses aspectos derivam, genérica e abstratamente, da previsão constitucional da propriedade, mas têm seu conteúdo final definido pela legislação infraconstitucional, fundamentalmente pelo Código Civil e normas extravagantes. Ou seja, a lei é que determina o conteúdo normal do direito de propriedade, excluindo, assim, certas faculdades que teriam fundamento no conceito de propriedade, encarado sob um critério abstrato.

A função social da propriedade foi reconhecida expressamente pela Constituição de 1988, nos arts. 5º, XXIII, 170, III e 186, I.

Quando se diz que a propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, sendo precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular. Nesses termos, ao estabelecer no art. 186, II, que a propriedade rural cumpre a sua função social quando ela atende, entre outros requisitos, à preservação do meio ambiente, na realidade, a Constituição está impondo ao proprietário rural o dever de exercer o seu direito de propriedade em conformidade com a preservação da qualidade ambiental. E isto no sentido de que, se ele não o fizer, o exercício do seu direito de propriedade será ilegítimo.

No plano jurídico, como analisa GRAU15,

a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como conseqüência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeqúe à preservação do meio ambiente.

O direito à propriedade e seu uso ficou constitucionalmente condicionado à sua função social. Há, portanto, disposição específica na Constituição estabelecendo condições limitantes ao seu uso. Na medida em que o proprietário queira fazer dela uso anti-social, encontrará vedação na ordem constitucional.

Em suma, a propriedade não possui caráter absoluto e intangível. Ao contrário, esse direito só existe como tal se atendida a função social. Só há efetiva propriedade rural no mundo jurídico se atendida sua função sócio ambiental. (CF, art. 186, II).

Sobre o autor
Rui Afonso Maciel Decastro

Advogado, servidor do Ministério Público do estado do Pará,especialista em direito ambiental e políticas públicas pela universidade federal do Pará – UFPa, Biblioteconomista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DECASTRO, Rui Afonso Maciel. A função sócio ambiental da propriedade na Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 466, 16 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5765. Acesso em: 23 dez. 2024.

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