4 DIREITO DE PROPRIEDADE E AS NECESSIDADES DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Uma breve síntese da evolução do quadro normativo do uso da propriedade privada parece ser nesse estágio possível. O direito de propriedade clássico atribuía ao titular a faculdade de agir ou não agir segundo as suas conveniências.
Preleciona o jurista MATTOS NETTO16 que:
A compreensão tradicional do direito de propriedade da terra carrega a noção de domínio exclusivo, absoluto e perpétuo, atributivo de valor econômico de mercado. A propriedade dentro desse modelo, é mercadoria: expressão de valor de troca, de circulação de riqueza. [ ] Sendo considerada valor de troca, a propriedade passa a ser também, objeto de reserva de valor.
A função social da propriedade amenizando esse poder impõe ao titular o uso do bem de produção para fins sociais. Os dispositivos constitucionais que regulam o meio ambiente introduzem uma nova perspectiva e determinam o não uso econômico do bem quando em risco o direito ao meio ambiente equilibrado.
A impossibilidade do uso intolerável do meio encarta-se no amplo e generoso conceito do direito à vida digna. Nesse quadro o meio ambiente é um direito fundamental.
O não uso do bem em decorrência de motivos ambientais, não o transforma em propriedade improdutiva e por conseqüência, também não é suscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. É relevante considerar que o fato do não uso em dadas circunstâncias liga-se à preservação da vida e funciona como garantia para as gerações presentes e futuras.
A ordem jurídica brasileira contém normas sancionadoras ao proprietário que não exerce a função social.
Ensina MATTOS NETT017 que: "Assim é que a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, usucapião agrário, o aumento progressivo do imposto territorial rural, o direito de prelação do arrendatário são exemplos dessas implicações jurídicas".
A dogmática infra constitucional regulou e. g., a questão das florestas nativas na lei 8.629/1993. As áreas cobertas por florestas essenciais ao equilíbrio ambiental são áreas que integram os critérios de utilização e eficiência consignados na lei.
Esses critérios são marcos referenciais para determinar se um bem imobiliário rural é produtivo ou não. Um absurdo lógico seria considerar que um espaço territorial insuscetível de utilização no processo produtivo seja destinado à reforma agrária que tem entre outros fins a finalidade de desenvolver a produção.
É de se destacar por fim que o não uso do bem objeto de apropriação é a determinante constitucional apenas nos casos em que se põe em risco o equilíbrio ambiental.
O meio ambiente equilibrado projeto de uma civilidade não de todo descartado se encontra inelutavelmente ligado à garantia de uma vida digna. É necessário compartilhar. A ética da solidariedade sócio-ambiental deve ser implementada, pois a pressão é imensa e o planeta não suporta o grau de consumo atual.
O meio ambiente conceituado como res nullius no sistema clássico, transforma-se num relevante componente econômico no neoliberalismo, essa mudança, entretanto, privilegia apenas o aspecto econômico.
A função social da propriedade sem esquecer a possibilidade de a utilizar-mos com uma doutrina de combate, no Brasil tornou-se uma doutrina tranqüilizante do Estado e da sociedade. É preciso um novo Direito repersonalizado, onde, o Homem seja o móvel do sistema. A natureza passa a se comportar como sujeito exigindo direitos.
O direito de propriedade em sua concepção clássica tem-se mostrado muitas vezes inoperante para os anseios da sociedade atual. Com a evolução dos direitos e a emergência de categorias como os direitos coletivos e difusos, os interesses da sociedade como um todo, mesmo que seus titulares não possam ser individualizados, devem prevalecer sobre os interesses dos particulares que, desta maneira, precisam ser adaptados às características do momento atual.
Com a edição de uma legislação que visa proteger o meio ambiente do desequilíbrio provocado principalmente pelas atividades humanas sobre a Terra, muitos direitos individuais estão sendo colocados, e há a necessidade de terem seus conceitos revistos e de se conformarem às exigências para que a proteção do meio ambiente seja garantida, para toda a coletividade.
A propriedade é um dos institutos jurídicos que mais claramente é afetado pela legislação ambiental, estando seu conceito clássico necessitando de sofrer alterações para que o exercício deste direito seja compatível com a garantia de proteção ao meio ambiente.
No entanto, muitos doutrinadores e principalmente a jurisprudência ainda não têm claro quais são as características do direito de propriedade incompatíveis com a proteção do meio ambiente; muitas vezes pela formação eminentemente civilista que receberam. Outros não são sensíveis às necessidades da sociedade contemporânea e insistem em seguir atribuindo aos proprietários as faculdades que eles tinham nos dois últimos séculos (XVII e XIX). Ou têm consciência sobre a inadequação do exercício do direito de propriedade como está disposto no Código Civil Brasileiro, mas não se sentem seguros sobre o que e como redefinir para atender ao interesse difuso de proteção ambiental.
Leciona MATTOS NETO18: "[ ] no Código Civil brasileiro a propriedade é estudada no Livro do Direito das Coisas. A propriedade rural, assim, é coisificada como objeto da relação jurídica, sendo bem a ter circulação econômica no mercado como outro qualquer".
Com a promulgação da Constituição de 1988 o direito de propriedade deixa de ter sua regulamentação exclusivamente privatista, baseada no Código Civil, e passa a ser um direito privado de interesse público, sendo as regras para o seu exercício, determinadas pelo Direito Público e também pelo Direito Privado. Este processo de publicização do direito de propriedade é fundamental para a implementação da legislação referente à garantia da proteção ao meio ambiente, que impõe limites ao exercício daquele direito.
Anton Menger, que no século passado, na sua obra "L’Etat Socialiste", depurou a natureza econômica dos bens, os classificou em bens de produção, bens de uso e bens de consumo.
MATTOS NETO19 diz que: "baseado nesta tripartição, León Duguit, em sua decantada obra Les Transformations du Droit Privé depuis le Code Napolén [ ] viu a terra rural como bem de produção econômica, porque serve de instrumento para produzir outras riquezas".
E acrescenta : "Nesta visão, o direito de propriedade imobiliária rural deixa de ser um direito subjetivo exclusivo, perpétuo, estático e assume papel dinâmico, participante, ou seja funcional".
Dessa funcionalidade adveio o elemento jurídico encontrado para acomodar a visão privada do direito de propriedade dentro da concepção social do mundo contemporâneo.
Por esse elemento a propriedade privada comporta não só faculdades, porém também passa a ter atribuições, limitações e deveres para com a coletividade. Coloca-se ao proprietário uma função, um papel social, sobre o seu direito de propriedade privada.
Conforme MATTOS NETO20:
Por exercer esta função social, a propriedade exige que seu titular empreenda racional e adequado cultivo do solo e de seus recursos naturais renováveis, em obediência à legislação ambiental e trabalhista, desenvolvendo empreendimentos agrário que traga bem-estar e estabilidade à comunidade.
Para SILVA21, a visão civilista:
não alcança a complexidade do tema, que é resultante, por isso mesmo, de um complexo de normas jurídicas de direito público e de direito privado, e que pode interessar como relação jurídica, como situação jurídica e como instituto jurídico.
Na prática de atos os proprietários fazem-no baseados na autonomia da vontade, com o intuito de satisfazer interesses apenas individuais. A Administração por sua vez, na prática de seus atos, age no exercício de uma função, que deve visar à realização de interesses públicos. Os atos regulados pelo Direito Civil resultam meramente da vontade individual, e podem freqüentemente contrapor-se ao ato administrativo, que resulta da função do Estado de atender a interesses públicos.
Segundo ROXANA BORGES22:
A autonomia privada do proprietário pode chocar-se com a função do Estado de garantir a todos o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Por ser este um interesse público e por ser uma função do Estado, a propriedade passa a estar vinculada a interesses outros que podem não corresponder exatamente aos do proprietário. O princípio de utilidade pública está na base do direito administrativo.
E ainda:
A função ambiental da propriedade é, assim, uma atividade do proprietário e do Poder Público exercida como poder-dever em favor da sociedade, titular do direito difuso ao meio ambiente. O direito subjetivo, desta forma, deve conciliar-se com a função da propriedade. É a função administrativa que obriga o Estado a intervir em situações jurídicas individuais, e a função ambiental está aí incluída.
A instituição da função ambiental provocou alterações nas funções do Estado, passando a repartir as responsabilidades pela proteção ao meio ambiente, excluindo a função ambiental do âmbito essencialmente público, e consequentemente os deveres passaram a ser também do particular, como da coletividade como um todo.
O necessário cotejo entre a legislação ambiental esparsa e o Direito Administrativo, Constitucional, Econômico e Civil poderá evidenciar como podem ocorrer os rearranjos dos novos direitos (sobretudo o direito do meio ambiente equilibrado) com os direitos preexistentes, principalmente o direito de propriedade.
Diante desta questão, tem-se a necessidade de se esclarecer sobre o conteúdo clássico do direito de propriedade e sua inadequação para a atual sociedade; é preciso se demonstrar como os direitos, sendo historicamente determinados, vêm sendo afetados pela evolução da sociedade; torna-se urgente apontar como a legislação ambiental determina que o exercício do direito de propriedade atenda aos requisitos de proteção ao meio ambiente, sob pena, inclusive, de a propriedade não merecer proteção.
Esses esclarecimentos se fazem necessários para uma sociedade presa às concepções individualistas de direito de séculos passados, mas que tem um grande problema a enfrentar: a urgência na proteção do meio ambiente, para a garantia da sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações.
5 O MEIO AMBIENTE COMO BEM DE INTERESSE PÚBLICO
A Constituição Federal, no caput do art. 225, caracteriza o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um bem de uso comum do povo. Ocorre que, na doutrina clássica e para o Código Civil, bem de uso comum do povo é um tipo de bem público.
A natureza jurídica do patrimônio ambiental vem sendo estudada cuidadosamente pelos doutrinadores. Os bens ambientais são considerados como bem difuso por FIORILLO e RODRIGUES23. Eles identificam três categorias de bens na ordem jurídica brasileira: bens públicos, bens privados e bens difusos. Para eles. "efetivamente, existe em nosso ordenamento jurídico positivado, uma terceira categoria de bem, que é o difuso, cuja titularidade difere daquela própria do bem publico".
Outra parte da doutrina, posição adotada por SILVA24:
entende ser o patrimônio ambiental um bem de interesse público, categoria que sofre variações, mas que surge também para superar a bipartição entre bem público e bem particular, teorização que permite uma maior proteção ao bem ambiental no sentido de que seu gozo seja ampliado para toda a sociedade.
Também este e o entendimento de MACHADO25, para quem: "o bem de propriedade privada pode adquirir institucionalmente a finalidade de interesse publico [ ], como, também, a um particular regime de polícia de intervenção e de tutela pública".
SANDULLI, citado por MACHADO26, classifica como na categoria de bem de interesse público: "os bosques e florestas privadas, os bens tutelados pela natureza natural, os bens privados de interesse histórico, artístico arqueológico [...]".
Assim, o patrimônio ambiental é concebido como um bem de interesse público, pertence a todos e a ninguém individualmente, nem mesmo ao Estado. O meio ambiente não constitui patrimônio público, enquanto compreendido como a propriedade estatal. Patrimônio ambiental e Patrimônio público não se confundem. O meio ambiente não é propriedade estatal.
Para MEIRELLES27, o meio ambiente pode ser considerado bem de domínio público se este for entendido como:
o poder de dominação ou de regulamentação que o Estado exerce sobre os bens do seu patrimônio (bens públicos) ou sobre os bens do patrimônio privado (bens particulares de interesse público), ou sobre as coisas inapropriáveis individualmente, mas de fruição geral da coletividade (res nullius).
Nem se confundem o Patrimônio Nacional de que fala a Constituição Federal no art. 225, § 4 e o patrimônio público. Patrimônio Nacional, ai trata-se de uma nomenclatura que identifica como espaços territoriais especialmente protegidos a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira.
Segundo explica LEITE28:
não resta dúvida de que o bem ambiental de interesse público deve ser separado da definição de bens públicos e privados do Código Civil Brasileiro. Outrossim, a concepção da lei civil é destoante do estipulado na Constituição Federal, que trata o meio ambiente como bem da coletividade e não como res nullius.
Assim, de acordo com o art. 98 do CC: "são bens públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem".
E o art. 99, I, II e III, dispõe sobre os três tipos de bem público:
I - Os de uso comum do povo, tais como os rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Acontece que há bens de uso comum do povo como os mares, rios, os quais já não são mais considerados bens públicos, pois constituem elementos fundamentais ao equilíbrio ambiental, integrando um bem maior, o bem ambiental, que não é público, porém de interesse público, produto de um conjunto de elementos que se inter-relacionam, e que são interdependentes.
Para FIORILLO e RODRIGUES29 aquilo que está prescrito no inc. I do art. 99, é exatamente o bem previsto, por exemplo., nos arts. 225, 215, 216, 200, 6º, 182 da CF, entre outros dispositivos constitucionais e normas inferiores relativas ao meio ambiente".
E ao se referirem à norma contida no artigo 99 do CC mencionam que:
Há que se considerar, portanto, que o art..[ ], não se adequou em sua inteireza pela Constituição Federal. Isto equivale dizer que não há mais espaço em nosso ordenamento jurídico atual, para esta modalidade de bem público. O patrimônio público compõem-se, hodiernamente, pelos bens dominiais e de uso especial.
A própria Constituição faz referencia a patrimônio público e a meio ambiente como objetos distintos. E o que menciona quando trata da ação popular, no art. 5.° :
LXXIII - qualquer cidadão e parte legitima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Quando o texto constitucional se refere a patrimônio público, significa o conjunto de bens públicos, nos quais não está inserido o meio ambiente. O bem ambiental tem como titular a coletividade, não o Estado.
Outro artigo onde está clara essa distinção constitucional é o art. 129, da CF/88:
São funções institucionais do Ministério Público:
III - promover o inquérito e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
Desta maneira a bipolaridade rígida entre bens públicos e particulares é questionável tanto no antigo Código Civil, como no Novo, face ao surgimento de bens que não se submetem nem ao regime de uns nem ao de outros, como o bem cultural, o bem turístico, o bem ambiental.
No entender de CAPPELLETTI30:‘’a summa divisio aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, que é infinitivamente mais complexa, mais articulada, mais sofisticada do que aquela simplista dicotomia tradicional’’.
Segundo SILVA31:
a doutrina vem procurando configurar outra categoria de bens: os bens de interesse público, na qual se inserem tanto bens pertencentes a entidade públicas como bens dos sujeitos privados subordinados a uma particular disciplina para a consecução de um fim publico.
Para ele:
"os atributos do meio ambiente [a qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico] não podem ser de apropriação privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares". Para ele, "significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra sua disponibilidade".
E também há elementos físicos do meio ambiente que também não são suscetíveis de apropriação privada, com o ar, a água, que são, já por si, bens de uso comum do povo. Por isso, quanto à qualidade ambiental, não são bens públicos nem particulares. São bens de interesse público, dotados de um regime jurídico especial, enquanto essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo.
De acordo com LEITE32, o meio ambiente, bem de uso comum do povo, é um: "bem jurídico autônomo de interesse público". E, no dizer deste autor, o legislador constitucional inseriu o meio ambiente como res communes omnium, separando-o de uma visão de bem público estrito senso e ‘’elencou o bem ambiental como disciplina autônoma e a título jurídico autônomo’’, superando a tradicional classificação dos bens ambientais como res nullius".
Por isso não há dúvida que a concepção de bem ambiental de interesse público deve ser separado da definição de bens públicos e privados do Código Civil Brasileiro.