A escravidão que os gregos conheceram explicita contradição com tendências normativas hodiernas. Vilipendia direitos à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Arrosta direitos sociais e políticos. Afasta-se da dignidade humana, princípio fundamental da tradição ocidental em sua feição contemporânea. A escravidão helênica nega o núcleo básico dos ordenamentos jurídicos dos dias de hoje. Porque recrutada entre estrangeiros também, a escravidão implementava preconceito de raça e cor, e não resistiria a normas nossas, a exemplo da Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, com nova redação dada pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997.
Já a discriminação que os espartanos tinham para com os deficientes físicos, que eram atirados no rio quando nasciam, seria repudiada pelo conteúdo normativo da Lei Federal nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social. Em juízo só se admitiam depoimentos obtidos sob tortura, como ver-se-á mais adiante, o que obviamente objurgado por nossa Lei Federal nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que dispõe que é atividade criminosa constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou terceira pessoa, prescrevendo-se, inclusive, penas de reclusão aos agentes de tais crimes. A práxis grega seria também repudiada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. É que na Grécia clássica as pessoas não nasciam livres e iguais em dignidade e direitos. Além disso, as pessoas não tinham o direito de ser, em todos os lugares, reconhecidas como tais perante a lei. De igual modo, nem mesmo os sacralizados textos filosóficos gregos teriam aceitação; por exemplo, pela Convenção Sobre a Abolição do Trabalho Forçado, adotada pela Organização Internacional do Trabalho em 25 de junho de 1957 e ratificada pelo Brasil em 1965. A xenofobia grega seria repelida pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução 2.106-A (XX), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. O escravismo helênico seria também censurado pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Resolução nº 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1966, que entrou em vigor em 1976, e que foi ratificado pelo Brasil em 1992.
Argumentar-se-á em sentido inverso que os direitos da contemporaneidade resultam de evolução, e que absurdo maior não há em se esperar que o mundo pretérito albergasse direitos que os ordenamentos modernos sufragam e que muitas vezes são impotentes para realizá-los, em sua plenitude. Essa premissa qualifica visão historicista, orgânica, evolucionista, que vislumbra conquista de direitos num sentido prospectivo. Radica no pensamento de Norberto Bobbio, para quem os direitos naturais são direitos históricos, nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista de sociedade, tornando-se um dos principais indicadores do progresso histórico [1]. As conquistas dos direitos seriam assim seccionadas em etapas, fases, eras, vivendo ponto de inflexão em Kant (para quem as pessoas devem ser um fim em si mesmas e não meios), e conhecendo divisor de águas no movimento revolucionário continental de 1789 [2]. Bobbio conhece o historicismo hegeliano, que estudara [3], embora reconhecesse penetrações ideológicas na formatação de seu pensamento [4], não deixando, ainda, de admitir também, conexões morais entre igualdade e desigualdade [5]. Hegelianamente vale-se do passado para premonir o futuro [6], versão jurídica do pensamento de Francis Fukuyama e retomada com mais fôlego por Perry Anderson [7]. As concepções de Bobbio opõem-se ao legado clássico, embora hegelianamente entronizadas por traço de prospecção, desdobramento dialético que sufraga destino com sabor de utopia. Norberto Bobbio faz homenagem a sentido evolutivo de direito, reconhecendo concepções pluralísticas [8], idéias retomadas por Boaventura de Sousa Santos [9], que conduzem ao sentido hodierno de tolerância, como enunciado por Michael Walzer [10], que reconhecera a relatividade da justiça, calibrada pelo momento conjuntural da sociedade que a cria e aplica [11].
Entre nós essa historicidade dos direitos, esse sentido evolutivo, é também alvo das cogitações de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que reconhece, no entanto, e sucintamente, sem maiores comentários, convicção multissecular da existência de um justo independente da vontade humana, no legado grego [12]. José Francisco Rezek também concebe sentido evolutivo para os direitos, nominando-os em gerações [13], valendo-se da premissa para conectá-los a proteção internacional. De modo similar pensa José Afonso da Silva que percebe fio condutor temporal e cliométrico, norteando a formação histórica das declarações de direitos [14]. Alexandre de Moraes também aceita esse evolucionismo, radicando os direitos fundamentais na Magna Carta inglesa [15], lembrando também Celso Lafer [16] que, porém, com base em Hannah Arendt, aceita noção de descontinuidade, conceito que implode o historicismo hegeliano-marxista [17]. É que Hannah Arendt percebe criticamente a história, repelindo todas as imparcialidades, que reputa decorrentes de manobras ideológicas, ensejadoras de força decorrente do poder [18], louvando, a propósito, a narrativa histórica helênica:
A imparcialidade, e com ela toda a Historiografia legítima, veio ao mundo quando Homero decidiu cantar os feitos dos troianos não menos que os dos aqueus, e louvar a glória de Heitor não menos que a grandeza de Aquiles. (19)
Em primeira vista o presente artigo aparentemente nega toda a doutrina historicista construída em torno dos direitos humanos, refutando o historicismo com base em Karl Popper e em Hannah Arendt [20], embora, bem entendido, aceitando imprestabilidade conceitual de se exigir implemento de direitos humanos pelo mundo grego, como condição para sua aceitação histórica. A posição helênica na história do pensamento carece ser dimensionada de forma mais crítica. Não há por parte do artigo arrogância de se refutar todo o legado ático. Trata-se de convocar profunda reflexão. Os gregos não eram como nós somos, e portanto houve solução de continuidade na feitura da tradição ocidental, o que mitiga as teses historicistas. Ou ainda, o escravismo grego exige repulsa, o que volatiliza a idolatria apologética em torno da Grécia.
O artigo não constata direitos humanos na tradição grega de feição conservadora, que radica em Sócrates, Platão e Aristóteles. E o faz, efetivamente, por conta do regime de escravidão e de limitação de direitos femininos, tônicas da vida grega. Inegável a interface entre democracia e direitos humanos. Assim, em perspectiva contemporânea:
(...) Sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais(...) (21)
A sociedade grega era escravista. Ao homem de pensamento era reservado o tempo livre, o ócio com dignidade, utilizado para a elevação e emancipação, para a contemplação do belo, para a discussão em torno do útil e do justo. Aos escravos eram reservadas tarefas todas, pelo que, em sentido kantiano, tais pessoas (escravos, que o ordenamento aliás não considerava pessoas) eram meios e não fins, do que a definitiva evidência de que a Grécia clássica não conviveu com os direitos humanos. Assim:
Na cultura grega, cabiam aos cidadãos a organização e comando da polis. Ao cidadão era proibido o trabalho braçal, já que ele deveria ter o tempo livre – ócio – para se dedicar à reflexão e ao exercício da cidadania e do bom-governo. (22)
O ócio será combatido pela ideologia vitoriana do século XIX, recuperando-se na última quadra do século XX, sobremodo após as obras e entrevistas de Domenico de Masi, para quem o ócio é criativo. A especialização e dedicação exclusiva a determinada atividade de trabalho cretinizam o homem [23]. Mudando o que deva ser mudado, ócio e retórica são temas cujas trajetórias são similares e convergentes. Cultivadas por gregos e romanos sofreram críticas no medievo e na idade moderna. Max Weber chega a vincular o desenvolvimento do capitalismo à ética protestante que repudia o ócio [24]; trabalhar seria forma de se glorificar a Deus. O final do século reabilitará ócio e retórica, aquele necessário para plena realização humana, essa última, gerência do diálogo, do possível, do político.
A diferença justificadora da escravidão fora considerada natural pelos gregos e corroborada por muitos dos pósteros, a exemplo de Rousseau, que discursara sobre a desigualdade entre os homens, supondo-se no liceu de Atenas, repetindo as lições de quem julgava seus mestres, "tendo juízes como Platão e Xenócrates e o gênero humano por ouvinte" [25].
Mário Curtis Giordani reconhece que o ideal de liberdade democrática não provocou nos gregos sentimento contundente de supressão da antinomia entre homens livres e escravos [26]. O escravo recebera a condição com o nascimento, com a inadimplência e com a captura em guerra. Lembre-se ainda o jocoso caso de Menécrates de Siracusa, médico, "que só tratava de certos doentes, em estado desesperador sob a condição de que os mesmos, caso readquirissem a saúde, se tornassem seus escravos" [27]. O escravo era despido de toda personalidade e não podia em princípio contratar, embora substituíssem os patrões em negócios, comprando, alugando, empreitando [28]. Reconhecia-se, excepcionalmente, a capacidade contratual e conseqüente responsabilidade civil do escravo preposto, nos empreendimentos de comércio marítimo [29]. Embora legalmente protegido contra ultrajes e violência [30], o escravo só podia comparecer em juízo, como testemunha, se submetido à tortura, porque se acreditava que só a força da dor poderia arrancar-lhe a verdade [31].
Os escravos domésticos ocupavam-se com os afazeres da casa, levando as crianças à escola, circunstância peripatética que batiza a pedagogia. O pedagogo era o escravo que conduzia os meninos aos liceus e academias, substantivos também de origem helênica, aquele designando a escola de Aristóteles, esse último designando a de Platão. Também havia escravos na indústria e no comércio. Acredita-se que os escravos rurais eram pouco numerosos na Ática [32]. Ainda, e também ao que consta, a grande concentração de trabalhadores escravos se encontrava nas minas do Láurio [33]. Assim,
Esses mineiros, trabalhando com instrumentos rudimentares em galerias estreitas, mal arejadas e iluminadas por fumacentas lâmpadas de óleo, respirando valores mortíferos, residindo em sórdidas habitações, constituíam sem dúvida os párias, da classe dos escravos da Ática. (34)
Augusto Magne, em livro de apologia e sacralização do pretérito grego, trata a escravidão de forma por vezes ambígua:
O escravo é um objeto, que se compra e se vende. Nenhum direito lhe assiste, nem sequer o de ter consciência; deve cumprir quanto manda seu dono; nada possui, nem pode apelar para os tribunais. Mesmo em Atenas, onde sua condição era mais branda que em outras partes, podiam os magistrados sujeitá-los à tortura, embora não fossem citados como réus, mas a título de simples testemunhas. Na prática, porém, não é raro que se mitigue a escravidão; o dono deixa aos escravos certa liberdade, consente-lhes que guardem um modesto pecúlio e vivam em família (...). Em suma, a condição é muito dura; acontece, com freqüência, que escravos fogem; prometem-se recompensas a quem os descobrir. (35)
O autor jesuíta restringiu o sofrimento do escravo em Atenas, ampliou a magnimidade dos proprietários, limitando-se a adjetivar a condição do escravo como muito dura. A escravidão é modo de produção que caracterizou a antigüidade. Porque cada fase do espírito humano o leva a criar conjunto de idéias para explicar a totalidade dos fenômenos naturais e humanos [36] examina-se que a produção intelectual pretérita justificava a escravidão [37]. Aceitou-se, justificou-se, criticou-se e relativizou-se a escravidão. Sobremodo a partir do ponto de vista das classes dominantes, que concordavam com Aristóteles, para quem a escravidão seria justa e necessária [38], a par da posterior presunção dos primeiros padres da igreja, para os quais a escravidão seria metáfora da condição humana para com Deus [39]. Ao escravo eram legadas as mais pesadas tarefas, excluindo-os dos negócios da cidade:
Com raras exceções, não havia atividade, lucrativa ou não lucrativa, pública ou privada, agradável ou desagradável que não fosse executada por escravos em algum momento e em algum lugar no mundo grego. A exceção mais importante era, naturalmente, a política: nenhum escravo tinha um cargo público ou assento nos órgãos deliberativos ou judiciais (...) (40)
E as justificativas para a escravidão eram aristotélicas. Para o estagirita o sentido de submissão fundamentaria a escravidão:
É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar umas sem as outras, como o macho e a fêmea para a geração. Esta maneira de se perpetuar não é arbitrária e não pode, na espécie humana assim como entre os animais e as plantas, efetuar-se senão naturalmente. É para a mútua conservação que a natureza deu a um o comando e impôs submissão ao outro. Pertence também ao desígnio da natureza que comanda quem pode, por sua inteligência, tudo provar e, pelo contrário, que obedeça quem não possa contribuir para a prosperidade comum a não ser pelo trabalho de seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e para o escravo. (41)
O pensamento aristotélico vislumbra na natureza a razão da escravidão, da submissão do mais fraco pelo mais forte. O poder do senhor sobre o escravo seria chamado de despótico [42] embora a palavra tenha no contexto em que fora empregada sentido diverso da significação contemporânea. Para o professor de Alexandre, "uma família completamente organizada compõe-se de escravos e de pessoas livres" [43]. Ainda,
Existem dois tipos de instrumentos: uns inanimados, outros animados. Assim é que, para a navegação, o leme é o instrumento inanimado e o piloto, o instrumento animado. Em todas as artes, o trabalhador é um espécie de instrumento (...) e o escravo, uma propriedade instrumental animada, como um agente preposto a todos os outros meios. (44)
A filosofia grega, como demonstra-se, prestou-se a justificar odiosa instituição, guerreada por toda a doutrina de valorização de pessoa, de direitos humanos, concepção que informa o mundo civilizado que a pós-modernidade arremeda-se em construir. Perceba-se o desacerto de mais uma passagem de Aristóteles:
A coisa possuída está para o possuidor assim como a parte está para o todo; ora, a parte não é somente distinta do todo, ela lhe pertence; o mesmo ocorre com a coisa possuída em relação ao possuidor. O senhor não é senão o proprietário de seu escravo, mas não lhe pertence; o escravo, pelo contrário, não somente é destinado ao uso do senhor, como também dele é parte. Isto basta para dar uma idéia da escravidão e para fazer conhecer esta condição. O homem que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a um outro, é escravo por natureza: é uma posse e um instrumento para agir separadamente e sob ordens de seu senhor. (45)
Aristóteles assemelhou escravos e mulheres:
A natureza ainda subordinou um dos dois animais ao outro. Em todas as espécies, o macho é evidentemente superior à fêmea: a espécie humana não é exceção. (...) Numa palavra, é naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos meios que resolve defender de outrem. (46)
Para o filósofo grego, assim, a culpa pela condição do escravo radicaria no próprio escravo, pelo que o mesmo seria dotado de "tão pouca alma" e, ainda, de outrem. E para demérito dos escravos, Aristóteles os comparou aos animais:
Ademais, o uso dos escravos e dos animais é mais ou menos o mesmo e tiram-se deles os mesmos serviços para as necessidades da vida. (47)
E por todas as partes Aristóteles procurou justificativas para a escravidão, reduzindo-a a fato banal da natureza:
A natureza, por assim dizer, imprimiu a liberdade e a servidão até nos hábitos corporais. Vemos os corpos robustos talhados especialmente para carregar fardos e outros usos igualmente necessários; outros, pelo contrário, mais disciplinados, mas também mais esguios e incapazes de tais trabalhos, são bons apenas para a vida política, isto é, para os exercícios da paz e da guerra. (48)
Peremptória e categoricamente Aristóteles pregou a submissão dos mais fracos:
Limitando-nos aos aspectos materiais, como no caso das estátuas dos deuses, não hesitamos em acreditar que os indivíduos inferiores devem ser submissos. (49)
Explicitamente Aristóteles confirmou tal condição, não autorizando seus posteriores intérpretes a entendê-lo de outro modo. Escrevera:
(...) não resta nenhuma dúvida de que se encontram em todos os lugares combinações de pessoas nas quais a uma cabe servir e à outra comandar, (...) ora, o escravo faz, por assim dizer, parte de seu senhor: embora separado na existência, é como um membro anexado a seu corpo. (50)
Aristóteles inocenta a escravidão a partir da natureza e afirma que "a natureza nada fez de imperfeito, nem de inútil; ela fez tudo para nós" [51]. Os pósteros desculpam Aristóteles relacionando-o ao meio em que viveu, sem maiores preocupações:
Aristóteles baseia sua reflexão na constatação da realidade e vê o homem imerso na sociedade e, na sua interpretação antropológica, cai vítima da rigidez de seu próprio sistema. A cidade que ele conhece é a pólis do seu tempo, construída sobre relações de subordinação dos inferiores aos superiores. Aristóteles vê na própria natureza permanente do homem o fundamento dessa comunidade, na qual os escravos trabalham para os homens livres, que exercem o poder político, ou, libertos de toda preocupação pelas unidades da vida, se dedicam ao estudo e à contemplação. (52)
E o autor citado, professor de filosofia na Universidade do Oeste de Santa Catarina, termina suas reflexões sobre Aristóteles com muita coerência, que justifica o estagirita:
Evidentemente, a idéia da escravidão por natureza é algo que contraria toda concepção antropológica atual. Por isso, nosso objetivo não é o da simples crítica à escravidão, por natureza, em Aristóteles, como sendo algo abominável, inaceitável. Ao que parece, a condenação de todo tipo de escravidão já está incorporada em praticamente todas as sociedades. E, além disso, é algo maio delicado criticar uma concepção que surgiu há mais de 2.000 anos, numa sociedade envolvida em questões econômicas, históricas e culturais diferentes das que nos envolvem hoje. Não estamos sugerindo uma posição acrítica sobre fatos ou situações passadas, onde o simples pertencer ao passado invalidaria qualquer crítica que partisse da época atual. Se isso ocorresse, todo conhecimento perderia sua razão de existir. O que não é verdade, evidentemente. (53)
O professor catarinense confirma o pensamento aristotélico vinculando o mesmo como produto do meio em que fora concebido. Assim, com razão estaria Aristóteles, pelo que não se pode esperar que ele pensasse de forma diferente. A escravidão é fato comum em seu tempo. Criticar o passado seria atitude insana, que desconstruiria todo o valor do conhecimento, inegável apreensão de prospecção histórica. Bem entendido, o presente artigo não critica o passado. Critica o presente que glorifica o passado, justificando suas ideologias, perspectivas, idiossincrasias. Não se trata de agredir Aristóteles porque ele defendera e justificara a escravidão. Cuida-se de criticar aos contemporâneos que valem-se de Aristóteles para as mais amplas justificativas, que transitam da natural sociabilidade do homem ao direito natural, de concepções éticas a imagens de isonomia e de isologia.
Consigne-se também que o perigo das generalizações acerca da escravidão ática é potencializado pelo fato de que se desconhece a visão do escravo, sobre sua condição [54]. Formatou-se ideologia na antigüidade que não vislumbrava maldade na escravidão [55]. A escravidão é fato comprovado dos tempos pretéritos, manchando-os com críticas posteriores, dificultando apropriação absoluta. Aceita-se o passado, ao sabor do presente. Tomemos exemplos dessas aceitações, nas avaliações de três clássicos da historiografia do direito, a saber: Fustel de Coulanges e Gustave Glotz.
Fustel de Coulanges escrevera sua obra no século XIX. Assimilara Atenas a Roma e enfocara a antigüidade sob prisma prioritariamente religioso. Justificava a escravidão no fato de que a mesma seria essencial para o implemento da democracia. Não admitia que cidadão ateniense pudesse perder tempo com tarefas que não exigissem a arte de governar. Ainda é referência para o estudo das instituições clássicas, embora defasado no método, conclusão abordagem. Típico intelectual etnocêntrico do século XIX, Fustel de Coulanges colaborou para mitigar a realidade do escravo no mundo ático:
Vê-se quão pesado encargo era ser cidadão de um Estado democrático, porque correspondia a ocupar, em serviço da cidade, quase toda a sua existência, pouco tempo lhe restando para os trabalhos pessoais e para a sua vida doméstica. Por isso, com muita justiça, dizia Aristóteles não poder ser cidadão aquele homem que necessitasse trabalhar para viver. Tais eram as exigências da democracia. (56)
Gustave Glotz (que tinha Fustel de Coulanges como mestre) publicou obra na década de 20, expondo o milagre grego em toda riqueza de pormenor, abordando a escravidão de maneira sutil, provocando indisfarçada simpatia no leitor:
A justiça ateniense garantia os benefícios da liberdade e da fraternidade aos cidadãos, mas aplicava, em certa medida, o princípio da igualdade mesmo àqueles que dela a natureza parecia excluir, aos escravos. De acordo com a lógica, a noção de cidade convertia os escravos em coisas de cidadãos, num instrumento sem nome, sem família, sem propriedade, sem direitos. Mas, por outra conseqüência não menos lógica, a idéia democrática, sempre favorável a quem estava por baixo, conduzia o povo a ver que essa coisa tinha rosto humano, que era dotado de alma esse instrumento, que o próprio escravo merecia ser tratado filantropicamente. [57]
Glotz e Coulanges patenteiam historiografia comprometida com ideologia imperialista continental, num tempo em que o ocidente reconstruía idealisticamente o oriente, cuja Grécia era a porta de entrada, mística e geograficamente. Fustel de Coulanges é criticado por Walter Benjamin em sua VII tese sobre a filosofia da história [58]. O filósofo alemão afirma que a historiografia de Coulanges é identificada com o vencedor. Por isso, identificados os contornos possíveis da escravidão no direito grego, o artigo contesta os defensores da instituição, lembrando que a escravidão é dor universal, e não relativa, pelo que, onde encontrada, deve ser denunciada.