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As relações cívicas e os impactos no desenvolvimento da sociedade: um estudo a partir da obra de Robert D. Putnam

Por que alguns governos democráticos têm bom desempenho e outros não? E quais são as condições necessárias para criar instituições fortes, responsáveis e eficazes?

Na década de 70 vivenciou-se na Itália um confuso período de reforma, o qual rompeu com o governo centralizado (tradição secular italiana) e em seguida foi realizada a delegação de poderes e recursos, até então inédita, aos novos governos regionais.

Por que alguns governos democráticos têm bom desempenho e outros não? E quais são as condições necessárias para criar instituições fortes, responsáveis e eficazes? Essas duas perguntas são essenciais para o problema de pesquisa contemplado no estudo de Putnam (Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna). O objetivo principal deste livro é analisar de que forma as instituições influenciam o comportamento político. Para isso, a partir da análise de duas décadas dos novos governos regionais que foram criados em 1970 na Itália, o autor busca comprovar de modo empírico a importância da “comunidade cívica” para o desenvolvimento de instituições eficientes.

As análises de Putnam possibilitam um maior entendimento da natureza cívica, da lógica austera da ação coletiva e da história medieval, observando a experiência ímpar de reforma institucional realizada em regiões italianas.

A partir de 1970, foi possível observar a evolução de várias instituições regionais emergentes que representavam os diversos meios econômicos, sociais, culturais e políticos da península italiana. Após a realização de visitas às várias capitais regionais, Putnam afirma que rapidamente foi possível verificar as diferenças marcantes em relação ao desempenho institucional. Desse modo, a experiência regional italiana possibilita uma oportunidade ímpar para identificar as condições necessárias para a criação de instituições fortes, responsáveis e eficazes, sobretudo por duas razões: a primeira é que em 1970 foram criados simultaneamente 15 novos governos regionais com estruturas e mandatos constitucionais praticamente idênticos e a segunda é que os contextos social, econômico, político e cultural em que foram implantadas as novas instituições eram radicalmente distintos.

Desse modo, a experiência regional italiana foi feita sob medida para um estudo comparativo da dinâmica e da ecologia do desenvolvimento institucional, uma vez que possibilitava aos estudiosos de desempenho governamental a análise da evolução dessas novas organizações idênticas em seus diversos e diferentes ambientes.

Segundo Putnam (1996), os novos institucionalistas divergem entre si com relação a diversos aspectos teóricos e metodológicos, no entanto, ele identifica dois elementos convergentes nas abordagens do institucionalismo da escolha racional, do institucionalismo sociológico e do institucionalismo histórico: (1) as instituições moldam a política e (2) as instituições são moldadas pela história. De acordo com o autor, “as instituições influenciam o resultado porque moldam a identidade, o poder e a estratégia dos atores”. Além disso, as instituições têm inércia e força, bem como corporificam trajetórias históricas e momentos decisivos.

O estudo da experiência regional italiana objetiva contribuir com evidências empíricas desses dois elementos convergentes. Assim, na metodologia do seu estudo, Putnam considerou como variável independente as instituições, buscando de forma empírica observar como a mudança institucional influencia a identidade, o poder a estratégia dos atores políticos. Em seguida, considerou as instituições como variável dependente, de modo a analisar como o desempenho institucional é condicionado pela história. Uma das premissas analisadas por Putnam é a de que o desempenho prático das instituições é moldado pelo contexto social em que elas atuam.

Em relação às instituições, de acordo com Putnam (1996), elas seriam as “regras do jogo”, as normas que conduzem a tomada de decisões coletivas, o palco onde ocorrem os conflitos e (às vezes) se resolvem. Ele acrescenta ainda que as instituições seriam mecanismos para alcançar propósitos, não somente com a finalidade de alcançar acordos, ou seja, as pessoas desejam que o governo além de decidir as ações, também as execute.

Desse modo, faz-se necessária reflexão sobre o que é “desempenho institucional” e o que pode ser identificado como êxito institucional. Neste estudo, o conceito de desempenho institucional baseia-se num modelo bem simples de governança: demandas sociais => interação política => governo => opção de política => implementação. Por sua vez, êxito institucional diz respeito a dotar os atores de capacidade para resolver suas divergências da forma mais eficiente possível.

Segundo Putnam (1996), há três diferentes maneiras de compreender a dinâmica do desempenho institucional: a primeira enfatiza o projeto institucional, a segunda ressalta os fatores socioeconômicos e a terceira destaca a importância dos fatores socioculturais. Também para analisar o desempenho institucional, o autor considerou as implicações causadas pela mudança institucional, realizando uma avaliação do antes e do depois a partir da evolução dos governos regionais italianos. A questão principal era saber como as mudanças nas instituições formais induziram mudanças no comportamento político, levando-se em consideração o entendimento de Putnam de que a política é estruturada pelas instituições.

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Em relação à criação dos governos regionais italianos, essa mudança institucional foi realizada de modo a romper com a extrema centralização administrativa que até então era observada, a qual era moderada pelas típicas acomodações políticas italianas, sobretudo pela realização de conchavos com os líderes locais, prática essa denominada de transformismo. Os primeiros anos da legislação regional priorizou a definição da organização, os métodos da nova instituição e a distribuição de verbas. Algumas regiões efetivamente realizaram reformas importantes em áreas como planejamento urbano, meio ambiente e saúde, no entanto, em outras regiões houve um empenho maior na realização de políticas distributivas de forma geralmente dispersiva. Outro aspecto importante dos governos regionais italianos foi a transformação implementada na cultura política da elite regional, permeada por uma destacada despolarização ideológica, associada a uma forte tendência a uma abordagem mais pragmática das questões públicas 

Dessa forma, três hipóteses se destacam quanto à modificação da cultura política das elites regionais: a renovação eleitoral, a política nacional e a socialização institucional. A conclusão mais razoável do estudo realizado, segundo Putnam (1996), é que a nova instituição regional fomentava entre seus membros um pragmatismo tolerante e colaborativo, sendo que a reforma regional criou um novo modo de fazer política, sobretudo pelo fato de ter ocorrido uma ampliação da autonomia regional, de forma mais significativa após 1976, o que implicou consideráveis mudanças na estrutura de poder dos partidos políticos, por exemplo. Tal implicação afetou o comportamento do eleitorado e consequentemente o seu julgamento acerca da reforma regional, sendo importante destacar que nos primeiros anos o público demorou a tomar conhecimento da nova instituição regional. Ao longo dos anos 80 observou-se que a satisfação dos eleitores com o desempenho do governo regional aumentou de maneira lenta, porém constante. E já no final dessa mesma década quase todos os governos regionais nortistas estavam satisfazendo a maioria de seus cidadãos, apesar de nenhum governo das regiões meridionais se aproximar dessa meta.

Considerando a heterogeneidade das regiões italianas e de seus desempenhos, segundo Putnam (1996), avaliar o próprio desempenho institucional e as diferenças regionais é imprescindível para a realização de um julgamento coerente da experiência regional italiana.

Putnam denomina como um bom governo democrático aquele que não só considera as demandas de seus cidadãos, mas também age com eficácia em relação a tais demandas. Ele pontua que para que seja feita uma avaliação criteriosa do desempenho governamental quatro requisitos devem ser preenchidos: o governo tem que ser abrangente, coerente, confiável (duradouro e não instável) e corresponder aos objetivos e critérios dos protagonistas e dos membros da instituição.

Para se realizar a avaliação da eficácia governamental nas 20 regiões da Itália, Putnam analisou 12 indicadores individualmente. Em seguida, averiguou as correlações existentes entre eles, como também a suas variações ao longo do tempo. Para complementar seu trabalho ele colheu as opiniões dos eleitores e líderes comunitários de cada uma das regiões estudadas para confrontar com os indicadores mensurados. Ele considerou um processo rigoroso, mas um passo essencial para compreender o êxito ou o fracasso da instituição.

Em suas avaliações ele procurou verificar os  “produtos” e não os “resultados”, pois os resultados sociais são influenciados por muitas coisas além do governo. Outra peculiaridade diz respeito aos indicadores: alguns são quantitativamente precisos, mas sua ligação com resultados concretos é indireta. Outros estão nitidamente relacionados com o desempenho institucional, mas sua quantificação é menos exata.

Em cada governo regional, Putnam procurou avaliar três características: a continuidade administrativa, as deliberações sobre as políticas e a implementação das políticas.

Para a primeira característica, três indicadores foram estudados: 1) estabilidade do gabinete, 2) presteza orçamentária e 3) serviços estatísticos e de informação. A respeito do conteúdo das deliberações sobre as políticas, os dois indicadores estudados se basearam em um amplo exame da legislação regional:  4) Legislação reformadora e 5) Inovação legislativa.

Seis indicadores aferem a capacidade da região para executar políticas nos principais setores da atividade governamental regional, como saúde pública, previdência social, desenvolvimento industrial e agrícola, e política habitacional e urbana. Dois indicadores representam prestação direta de serviços: 6) creches e 7) clínicas familiares, outro indicador representa o elenco de instrumentos de política utilizados pela região: 8) instrumentos de política industrial. Os três restantes averiguam a eficácia com que os governos regionais aplicam os recursos que lhes foram transferidos pelo governo central “capacidade de efetuar gastos”: 9) capacidade de efetuar gastos na agricultura; 10) gastos com unidade sanitária local; e 11) habitação e desenvolvimento urbano.

Os primeiros 11 indicadores retratam as regiões pela perspectiva do administrador: o processo orçamentário é eficiente? A legislação é inovadora? Quantas creches ou clínicas familiares foram criadas? Para verificar a perspectiva do governo regional do ponto de vista do cidadão que enfrenta algum problema, Putnam analisou o último indicador: 12) sensibilidade da burocracia, que diz respeito a sensibilidade dos governos em face das demandas do cidadão.

Dessa forma Putnam combinou esses 12 indicadores em um só índice “Índice de desempenho Institucional”, com o intuito de reduzir o viés de uma só aferição. Como os governos são instituições representativas, a opinião do eleitorado é de especial importância para a avaliação de seu desempenho, desta forma, Putnam realizou uma série de entrevistas com empresários, autoridades municipais, líderes sindicais, jornalistas, líderes comunitários e cidadãos comuns.

Putnam identificou em suas entrevistas que boa parte dos entrevistados demonstrou conhecer muito bem as qualidades e os defeitos de seus governos regionais. Em alguns gráficos Putnam ilustra que o índice de desempenho institucional é bastante condizente com o julgamento dos observadores mais atentos e do eleitorado em geral.

Ao explicar as diferenças no desempenho institucional entre norte e sul da Itália, Putnam se concentra em dois pontos principais: modernidade socioeconômica e comunidade cívica. No tocante à modernidade socioeconômica, ele credita essa modernidade à revolução industrial que resultou, em algumas regiões, na migração de grandes multidões do campo para as fábricas, melhora dos padrões de vida, nos níveis de educação, do saneamento básico, capacidade econômica e tecnológica. Ele conclui dizendo que a modernidade econômica está de algum modo associada ao bom desempenho das instituições públicas, mas riqueza e o desenvolvimento econômico não explicam tudo, daí a importância do segundo fator, a comunidade cívica.

Putnam, citando Maquiavel e outros autores contemporâneos, revela que o êxito ou o fracasso das instituições depende do caráter dos cidadãos, ou seja, de sua “virtude cívica”. Ele traça algumas características de uma comunidade cívica: participação cívica (busca pelas questões públicas, o interesse público em detrimento de interesses individuais), igualdade política (característica de relações horizontais de reciprocidade), estabelecimento de associações (incutindo em seus membros hábitos de cooperação, confiança, solidariedade e espírito público).

Para obter dados mais objetivos a respeito da comunidade cívica, Putnam estabeleceu um Índice de Comunidade Cívica, composto por quatro indicadores: voto preferencial, comparecimento a referendos, leitura de jornais, escassez de associações desportivas e culturais. Após analisar esse índice, ele conclui que as regiões onde há muitas associações cívicas, muitos leitores de jornais, muitos eleitores politizados e menos clientelismo parecem contar com governos mais eficientes, ou seja, quanto mais cívica a região, mais eficaz o seu governo.

Após análise de vários indicadores, bem como entrevistas e constatações empíricas, Putnam separou as regiões da Itália em dois polos: de um lado, regiões que possuem muitas associações esportivas e culturais, onde a maioria dos cidadãos acompanha atentamente os assuntos comunitários nos jornais diários e se envolvem nos negócios públicos, mas não devido à política personalista ou clientelista. Confiam em que todos procedam corretamente e obedeçam à lei, e consideram os seus líderes razoavelmente honestos. As redes sociais e políticas se organizam horizontalmente, a comunidade valoriza a solidariedade, o engajamento cívico, a cooperação e a honestidade. Nessas regiões, o governo funciona e a população está contente.

No outro polo estão as regiões “não-cívicas”, onde a afiliação a associações sociais e culturais é inexpressiva, a religiosidade individual substitui o interesse público. A vida pública se organiza hierarquicamente, poucos cidadãos querem tomar parte nas deliberações sobre o bem público e poucas oportunidades existem para isso. A participação política é motivada pela dependência ou ambição, e não pelo interesse coletivo. A corrupção geralmente é considerada normal, as leis não são obedecidas. Nessa cadeia de círculos viciosos, quase todos se sentem impotentes, explorados e infelizes. Desta forma, nessas regiões o governo é menos eficaz do que nas comunidades mais cívicas.

Sobre as origens da comunidade cívica, Putnam faz uma análise da Itália medieval e das tradições cívicas após a unificação, bem como a durabilidade dessas relações e o impacto econômico.

Desde a queda de Roma, a Itália ficou por mais de um milênio sem expressividade política ou econômica. Entretanto, no período medieval apresentou a estrutura política mais moderna entre os Estados cristãos. A partir da análise da trajetória italiana, Putnam levanta questionamentos sobre a permanência de alguns países na condição de subdesenvolvidos. Como principais elementos influenciadores das comunidades cívicas, destacam-se os fatores socioculturais e que não cabe uma análise unidimensional.

A dicotomia italiana (Norte e Sul) apresenta elementos fundamentais na tentativa de explicar o sucesso e o fracasso social. Enquanto a Região Norte da Itália apresenta uma próspera estrutura cívica, sob as bases da indústria, a Região Sul manteve uma economia com baixo crescimento econômico, atribuído a diversos elementos: sociais, administrativos, tributários, geográficos, fiscais etc.

As regiões menos cívicas da Itália eram marcadas por indivíduos que viviam sozinhos e pobres. Não havia o espírito da ajuda mútua e crescimento coletivo. O Filósofo Hume faz uma análise que se aplica bem a essa realidade, por meio de parábolas, mostra que as pessoas não se ajudam por não confiarem umas nas outras, o que leva ao prejuízo generalizado. O fato é que o ser humano é um animal que precisa viver em grupo, pois não consegue atender a todas as necessidades sozinho. Contudo, para que essa vida social possa prosperar, a ideia de cooperação é fundamental para o crescimento da coletividade.

Segundo James Coleman, a confiança social pode surgir de duas fontes: regras de reciprocidade (específica ou generalizada) e os sistemas de participação cívica. As regras de reciprocidade específica tratam da troca instantânea de bens e valores, já a reciprocidade generalizada apresenta um fluxo contínuo de troca, ações e retribuições a longo prazo. Os sistemas de participação cívica são dotados de maior complexidade e estruturação hierárquica, são caracterizados por modais deônticos (dever ser), acarretando sanções sociais aos descumpridores das regras. Assim, um sistema rigidamente estruturado garante maior estabilidade e confiança entre os membros.

Granovetter observou que a união de pequenos grupos ocorre mais facilmente entre pessoas sem vínculos familiares do que entre pessoas da mesma família.

Destarte, uma análise histórica nos permite constatar que uma comunidade que possui fortes traços cívicos e uma eficiente estrutura hierárquica permite um crescimento social e econômico coletivo. Fortes laços cívicos proporcionam, ainda, um elevado capital social, desde que associados à segurança e à confiança mútua.

Sobre os autores
Renato Hayashi

Advogado. Professor e Coordenador em cursos de Pós-graduação. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Mestre em Políticas Públicas (UFPE). Assessor Jurídico na Câmara Municipal do Recife.

Jadson de Arruda Almeida

Administrador. Mestrando em Políticas Públicas pela UFPE

Phillip César

Bacharel em Ciências da Computação pela UFPE. Gestor Governamental do Estado de Pernambuco. Especialista em Gestão Governamental pela UPE. Mestrando em Políticas Públicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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