4. AS ENTIDADES PRIVADAS QUE EXERCEM FUNÇÃO PÚBLICA
O ordenamento jurídico pátrio, a doutrina e a jurisprudência reconhecem em várias pessoas jurídicas regidas pelo Direito Privado a possibilidade de possuírem "função pública", ou seja, de agirem em nome do "interesse público", o que permite a conclusão de que não deixam de possuir uma "natureza pública".
A começar pelo que consta do art. 5.º, LXXII, da Constituição Federal, que criou a figura do "habeas data". Tal dispositivo permite que o mencionado remédio constitucional possa ser manejado para conhecer ou retificar dados constantes de "registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público". Em seus comentários à esse dispositivo, CELSO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS afirmam:
"O sujeito passivo do habeas data é todo órgão ou entidade governamental, incluindo-se aí, portanto, a Administração descentralizada e os próprios entes privados, desde que, pelas dimensões da sua atuação, ganhe uma ressonância pública". 18
É por tal razão que o habeas data tem sido utilizado em face de empresas de banco de dados tais como o SERASA, que é uma sociedade anônima de capital totalmente privado, que armazena informações sobre consumidores e empresas, ou os SPC’s (Serviços de Proteção ao Crédito) mantidos por associações comerciais ou clubes de dirigentes lojistas em quase todos os municípios brasileiros. Pelas características dos serviços que realizam, tais empresas ou entidades privadas são constitucionalmente definidas como tendo "caráter público".
O mesmo se pode afirmar do assim chamado "terceiro setor", ou "setor público não estatal", como define CELSO BASTOS 19. São pessoas jurídicas de direito privado que, nas palavras de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, "não prestam serviço público delegado pelo Estado, mas atividade privada de interesse público (serviços não exclusivos do Estado)". 20 São as fundações de direito privado mantidas com recursos das universidades públicas, conforme previsão da Lei 8.958, de 20 de dezembro de 1994; as organizações sociais previstas na Lei 9.637, de 15 de maio de 1998; ou, ainda, as organizações sociais de interesse público (OSCIP) possibilitadas pela Lei 9.790, de 23 de março de 1999. Todas são entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que chegam a receber e gerenciar recursos públicos. Há até mesmo quem exerça "função pública" sem vínculo empregatício com o Estado, na hipótese de serviço voluntário previsto na Lei 9.608, de 18 de fevereiro de 1998.
Devem ser mencionadas ainda as "entidades paraestatais", assim denominados os serviços sociais autônomos, igualmente de natureza privada, que são criados para ministrarem assistência ou ensino a certas categorias sociais ou profissionais, tais como o SESI, o SESC, o SENAI, o SENAC e o SEST. Essas entidades, segundo HELY LOPES MEIRELLES, "embora oficializadas pelo Estado, não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo". 21
Não se pode olvidar também que os partidos políticos são entidades de direito privado, embora exerçam função pública da mais alta relevância, pois é somente por meio deles que há o exercício do poder estatal, dado que um dos requisitos para elegibilidade é a filiação partidária (CF, art. 14, § 3.º, V).
Deste modo, num sentido amplo, pode-se reconhecer que as pessoas jurídicas que compõem o "setor público não estatal" ou "paraestatal" ou mesmo os partidos políticos têm, sim, natureza pública, embora regidas pelo Direito Privado. 22
5. CONCLUSÃO
Pelo que procuramos investigar e analisar no presente trabalho, as EFPC que venham a ser criadas pelos entes federados para complementação dos benefícios previdenciários de seus servidores serão regidas pelo Direito Privado e deverão funcionar de acordo com as regras já previstas nas Leis Complementar n.ºs 108 e 109, de 29 de maio de 2001.
O conceito de "natureza pública", embora possa ter sido outra a intenção do legislador constituinte derivado, deve ser interpretado de maneira restritiva, sob pena de incoerência sistêmica do texto constitucional, impondo-se a caracterização das EFPCs dos servidores como sendo detentoras tão somente de um munus público, de uma função pública, dentro do mais alto interesse público, por imperativo lógico e hermenêutico decorrente do cotejo entre o § 15 do art. 40. da Constituição (regra específica) com os dispositivos do art. 202. da mesma Constituição, em especial os seus §§ 3.º e 4.º (regras gerais).
S.m.j., é o nosso entendimento.
NOTAS
1 Radiobrás - Boletim "Agência Brasil", 16.09.2003, in www.radiobras.gov.br/centro%20imprensa/mat_pensao3.php
2 Para as entidades abertas e seus planos, a fiscalização fica a cargo da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), e a regulação ao Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), vinculados ao Ministério da Fazenda (LC 109/01, art. 74).
3 "Instituições de Direito Civil", São Paulo: Saraiva, 5.ª ed., 1999, p. 652.
4 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 333.308-PE, Relator Min. Maurício Corrêa, 2.ª Turma, DJ 02.08.2002.
5 Conflito de Competência n.º 8450/PE, Relator Min. Vicente Leal, 3.ª Seção, DJ 29.05.1995.
6 FRANÇA, Limongi. Ob. cit., p. 648.
7 Atualmente, pela Resolução CMN n.º 3.121, de 25 de setembro de 2003, os recursos garantidores dos planos de benefícios das EFPC têm que obedecer aos seguintes limites gerais de aplicação: renda fixa, até 100%; renda variável, até 50%; imóveis, até 14%; empréstimos a participantes: até 15%..
8 "Breviário de Principiologia Jurídica – Introdução ao Estudo do Direito", Rio de Janeiro: ed. do autor, 1951,p. 98.
9 "Manual de Direito Administrativo", 10.ª ed., Lisboa: Livraria Almedina, 1990, Tomo I, p. 176.
10 PAES, José Eduardo Sabo. "Fundações e Entidades de Interesse Social – Aspectos Jurídicos, administrativos, contábeis e tributários", 3.ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 35.
11 "Curso de Direito Administrativo", 3.ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 115.
12 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Ob. cit., p. 116.
13 Apud FERREIRA, Pinto. "Curso de Direito Constitucional", 5.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 29.
14 "Interpretação e Aplicação da Constituição", 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 182
15 Ob. cit, p. 24.
16 FONSECA, Roberto Piragibe. Ob. cit., p. 98.
17 In "https://www.adusp.org.br/noticias/Boletim/190803/Default.htm"
18 "Comentários à Constituição do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988 – 2.º volume: arts. 5. a 17", 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 389.
19 "Curso de Direito Administrativo", 4.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 85.
20 "Direito Administrativo", 13.ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 407.
21 "Direito Administrativo Brasileiro", São Paulo: Saraiva, 1996.
22 Num plano ainda mais abrangente, nos moldes do que preconiza NORBERTO BOBBIO, mesmo que fugindo de contornos puramente jurídicos, poder-se-ia afirmar que tais entes se integrariam ao próprio conceito de Administração, uma vez que exercem "função pública", eis que, para o insigne pensador italiano, a Administração Pública pode ser compreendida como "função, ou como uma atividade-fim (condicionada a um objetivo), e como organização, isto é, como uma atividade voltada para assegurar a distribuição e a coordenação do trabalho dentro de um escopo coletivo". Vide "Dicionário de Política", 4.ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992, p. 11.