1. BREVE HISTÓRICO
A "Reforma da Previdência", consubstanciada na Emenda Constitucional n.º 41, de 19 de dezembro de 2003, trouxe a obrigatoriedade de que as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC) que venham a ser criadas pelos respectivos entes federados para complementar os benefícios previdenciários de seus servidores tenham "natureza pública". O dispositivo está assim redigido:
"Art. 40....................
§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202. e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida".
A obrigatoriedade de que as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC) dos servidores públicos tenham "natureza pública" não constava do projeto original da PEC 40/2003, enviada ao Congresso Nacional pelo Executivo em 30.04.2003. A redação era a seguinte:
§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202.
De acordo com o dispositivo original, portanto, mantinha-se a regra, que já constava da Emenda 20, de 15 de dezembro de 1998, segundo a qual, caso fosse instituído sistema de previdência complementar pelo Poder Público, este somente se responsabilizaria pelo pagamento de proventos da inatividade até o teto do Regime Geral de Previdência. Ao servidor que quisesse receber mais do que esse teto, seria facultada a possibilidade de adesão deste à entidade de previdência complementar criada, deixando ao Executivo de cada ente federado a iniciativa da respectiva lei instituidora.
Tal dispositivo foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em 05.06.2003, e na Comissão Especial também da Câmara dos Deputados, em 17.07.2003. Nesta, o relator foi o deputado José Pimentel (PT-CE), que defendeu o sistema, afirmando em seu relatório vencedor que:
"No tocante à previdência complementar, a PEC nº 40, de 2003, vai ao encontro das disposições contidas no Programa do atual Governo. Adotado um sistema previdenciário público, com regras universais, os trabalhadores da iniciativa privada e do setor público que desejarem aposentadorias de valor superior ao teto da previdência pública deverão recorrer ao sistema de previdência complementar, de caráter facultativo. Esse novo sistema previdenciário brasileiro, mais racional e adequado à realidade social, econômica e demográfica, afetará positivamente as contas públicas e será mais um passo dado na busca da almejada igualdade entre os trabalhadores brasileiros."
O mesmo relator, mais adiante, fazia apenas uma recomendação a esse respeito:
"Recomendamos que aos servidores de carreiras típicas de Estado devem ser ofertados planos previdenciários de benefício definido, como forma de fortalecer o Estado."
Não obstante a aprovação que a matéria nos moldes originais obteve em duas Comissões da Câmara dos Deputados, o dispositivo foi modificado pelo relator, deputado José Pimentel (PT-CE), antes da votação em primeiro turno da mesma em Plenário, o que acabou ocorrendo em 06.08.2003 (a aprovação em segundo turno na Câmara dos Deputados deu-se em 28.08.2003).
Observe-se que, embora tivesse sugerido, para a previdência complementar dos servidores públicos, a adoção do sistema de "benefício definido" – pelo qual o participante de um plano de benefícios no âmbito de uma EFPC sabe de antemão quanto vai receber na inatividade -, o mencionado relator modificou o texto para instituir a modalidade de "contribuição definida", que é diametralmente oposta, ou seja, o participante receberá o benefício de acordo com os rendimentos de suas reservas individualizadas, sem, obviamente, ser possível determinar de antemão o valor do dito benefício. Além disso, incluiu a já referida "natureza pública" como característica das EFPC que complementarão as aposentadorias e pensões dos futuros servidores públicos.
Tais alterações, evidentemente, não foram ato volitivo e independente do mencionado relator, mas fruto de pressões de partidos políticos e de setores organizados da representação do funcionalismo público, que atuaram aguerridamente no sentido dessas mudanças. Na visão deles, isso significava uma salvaguarda à "privatização" da previdência dos servidores públicos e uma garantia maior contra a possibilidade de "quebra" dos fundos privados. As maiores centrais sindicais brasileiras, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, por exemplo, apoiaram essa proposta. 1
A imprensa repercutiu intensamente a inclusão e a controvérsia a respeito da "natureza pública" das EFPC dos servidores no texto da Reforma. O jornal "Folha de São Paulo" de 08.08.2003, por exemplo, trouxe, à página A-6, a seguinte matéria:
"O texto da reforma da Previdência aprovado na Câmara poderá limitar a atuação dos fundos de pensão que serão criados para complementar as aposentadorias de futuros servidores e ainda permitir que governantes, principalmente os de Estados e municípios, utilizem os recursos dessas entidades para investir em projetos de interesse público. (...)
‘Quiseram evitar que se criasse a falsa idéia de que os fundos seriam uma forma de privatização da Previdência e estabeleceram que as entidades serão de natureza pública. Isso significa que o dinheiro também é público e não dos participantes’, declarou o ex-secretário de Previdência Social Marcelo Viana Estevão.
Segundo ele, tratando-se de dinheiro público, esses recursos podem ser utilizados pelos governos federal, estaduais e municipais em investimentos de seu interesse. A tendência é que isso ocorra, principalmente, em Estados e municípios onde o controle dos recursos é menor.(...)
O ex-secretário de Previdência Complementar José Roberto Savóia afirmou que os fundos de natureza pública ficarão engessados porque serão administrados pelas mesmas regras que os demais órgãos públicos. ‘Os funcionários precisarão ser contratados por concurso público. As compras de produtos e serviços precisarão ser feitas por licitação.’
Além disso, o ex-secretário de Previdência Complementar disse que os gestores desses fundos terão menos autonomia para administrar as entidades, pois serão funcionários públicos e mais sujeitos a pressões de governantes.
‘Um Estado pode querer que o fundo compre títulos emitidos pelo governo como forma de investimento. Isso pode não ser um bom negócio, mas como gestor do fundo poderá ir contra isso?’ afirmou Savóia".
Já antecipando a grave dimensão das controvérsias jurídicas sobre o tema, o colunista Fernando Rodrigues, da mesma "Folha de S.Paulo", no dia seguinte(9.08.2003), afirmou:
"Preparem-se todos para a guerra sangrenta sobre o significado da expressão natureza pública "
Para além de qualquer intenção beligerante, entretanto, o presente trabalho visa exatamente o contrário, na tentativa de contribuir para pacificar a controvérsia jurídica sobre o tema a partir da interpretação do dispositivo constitucional e da análise da sua aplicabilidade no sistema de previdência complementar brasileiro.
2. "NATUREZA PRIVADA" DAS EFPC
A previdência complementar brasileira é regida pelas regras do Direito Privado e tem previsão constitucional no art. 202. da Constituição Federal, verbis:
"Art. 202. O regime de previdência privada , de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.
§ 1° A lei complementar de que trata este artigo assegurará ao participante de planos de benefícios de entidades de previdência privada o pleno acesso às informações relativas à gestão de seus respectivos planos.
§ 2° As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.
§ 3º É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.
§ 4º Lei complementar disciplinará a relação entre a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada , e suas respectivas entidades fechadas de previdência privada .
§ 5º A lei complementar de que trata o parágrafo anterior aplicar-se-á, no que couber, às empresas privadas permissionárias ou concessionárias de prestação de serviços públicos, quando patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada .
§ 6º A lei complementar a que se refere o § 4° deste artigo estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação."
As leis complementares 108 e 109, ambas de 29 de maio de 2001, regulamentam a previdência complementar em nosso país. A primeira contém regras específicas dirigidas aos planos de benefícios geridos por entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas por unidades federadas e respectivos entes da administração direta e indireta. A Lei Complementar 109/01, por seu turno, contém o regramento geral para a previdência complementar brasileira e é aplicada subsidiariamente no âmbito de atuação das EFPC patrocinadas pelos entes públicos ou suas estatais.
A Constituição Federal, em seu art. 21, VIII, diz que compete à União fiscalizar as atividades de previdência privada. Para a fiscalização das EFPC e respectivos planos, o art. 74. da LC 109/01 prevê a existência de um órgão federal, a Secretaria de Previdência Complementar (SPC), vinculada ao Ministério da Previdência. Para a tarefa de regulação, o mesmo dispositivo a atribui a um órgão colegiado, o Conselho de Gestão da Previdência Complementar (CGPC). 2
O caput do art. 202. da Constituição é repetido pelo art. 1.º da LC 109/03, e o § 2.º do mesmo dispositivo é repetido pelo art. 68. da referida LC 109/03, refletindo, assim, a natureza privada, contratual e autônoma do regime de previdência complementar brasileiro. De fato, sendo facultativa a entrada em um plano de benefícios no âmbito de uma EFPC (LC 109/01, art. 16, § 2.º), está-se diante de um nítido contrato de adesão, tipo de contrato regido pelo direito civil no qual a parte adere às suas cláusulas em bloco, ou, nas palavras de LIMONGI FRANÇA, é aquele em que a manifestação de vontade de uma das partes se reduz a mera anuência a uma proposta da outra. 3
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou afirmando que a previdência complementar é um contrato privado, no qual a relação jurídica, "embora de natureza previdenciária, se dá entre o beneficiário e a contratante." 4 No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça entende que as questões afetas à previdência complementar devem ser julgadas pela Justiça Comum e não pela Justiça do Trabalho, dado que as EFPC são de direito privado, mantendo com o trabalhador uma relação autônoma de direitos e obrigações na esfera civil 5.
Não obstante sua natureza privada e autônoma, no âmbito de uma EFPC a vontade das partes não é absoluta, ao contrário, observa-se um rígido controle estatal sobre seu funcionamento, porque tais entidades exercem uma complementação ao dever do Estado de prover uma previdência social digna e justa, direito social e fundamental inscrito no caput do art. 6.º da Constituição Federal. Está-se aqui, diante do princípio da supremacia da ordem pública, que, de resto, ao lado dos princípios da autonomia da vontade e do da obrigatoriedade, integram os fundamentos de qualquer contrato. 6
É o Estado, por meio da SPC e do CGPC, de acordo com o art. 3.º da LC 109/03, que determina padrões mínimos de segurança econômico-financeira e atuarial para os planos de benefícios, disciplinando, fiscalizando, coordenando e supervisionando as atividades das EFPC, com a finalidade de compatibilizar tais atividades com as políticas previdenciária e de desenvolvimento social do país. Para tanto, o Estado deve proteger os interesses dos participantes e assistidos, inclusive assegurando aos mesmos o acesso às informações dos planos.
Deste modo, dependem da aprovação prévia da SPC, dentre outras: a instituição e a operação de EFPC (LC 109/01, arts. 6.º e 33, I); a adesão a plano de benefício na condição de patrocinador ou instituidor (LC 109/01, art. 13); a extinção do plano ou retirada de patrocínio (LC 109/01, arts. 25. e 33, III); as transferências de patrocínio, de grupo de participantes, de planos e de reservas entre EFPCs (LC 109/01, art. 33, IV); e a aplicação dos estatutos, regulamentos e suas alterações (LC 109/01, arts. 33, I, e 17).
O controle do Estado se estende à área meio, ou seja, aos investimentos para capitalizar os recursos dos planos de benefícios. Tais investimentos não são de livre escolha das EFPCs, mas obedecem a diretrizes fixadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, conforme determina o § 1.º do art. 9.º da LC 109/01. 7
Assim, quando se fala em "natureza privada" como inerente ao sistema de previdência complementar brasileiro, não se pode olvidar que, em realidade, a autonomia da vontade das EFPCs é bastante mitigada, haja vista o intensivo e necessário controle estatal incidente sobre tais entidades e seus planos, seja no momento de sua constituição, na criação de planos de benefícios ou na aplicação de seus recursos.
3. O EXATO ALCANCE DO § 15 DO ART. 40. DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
É regra universal do Direito que, para o exercício da interpretação de toda norma (hermenêutica jurídica), é necessário investigar as intenções do legislador. ROBERTO PIRAGIBE DA FONSECA 8 esclarece que, para tanto, é necessário empreender quatro processos interpretativos: o literal, ou gramatical, qual seja, o estudo do texto propriamente dito; o lógico, que verifica o contexto da norma em relação a outras da mesma lei; o histórico, que analisa o projeto que deu origem à norma; e, por fim, o sistemático, que verifica a coerência da lei, mediante verificação dos "liames lógicos que devem vincular todas as suas regras e instituições".
Utilizando-se desses quatro processos de interpretação ao § 15 do art. 40. da Constituição Federal, na redação que lhe foi dada pela EC 41/2003, entretanto, verificamos que há sério problema com relação à sua plena aplicabilidade. Se, por um lado, pelos processos hermenêuticos de análise literal da norma e do histórico, chega-se à conclusão que a intenção do legislador constituinte derivado foi a que as EFPC dos servidores públicos fossem "públicas", significando dizer que rechaçou-se a idéia de entidade "privada". Repisando o que já foi explanado no breve registro da tramitação da matéria na Câmara dos Deputados, cabe mencionar ainda que o "Jornal da Câmara" de 28.08.2003, repercutindo a aprovação da PEC 40/2003, trouxe resumo das propostas aprovadas, com as seguintes palavras do deputado José Pimentel (PT-CE):
"Os futuros servidores terão regras iguais às de seus colegas da iniciativa privada para aposentadoria e pensão, com teto salarial de R$ 2.400, de acordo com o que nós, do PT, vimos defendendo desde 1995. Os que quiserem receber benefícios superiores a esse valor devem contribuir para um fundo de pensão fechado, de natureza pública e com gestão paritária."
Dizer-se que as EFPC dos servidores públicos deveriam ter "natureza pública" significaria, em princípio, afirmar que elas deveriam ter personalidade jurídica de Direito Público, sendo personalidade uma "qualidade jurídica que permite adquirir e exercer direitos e contrair obrigações", no dizer do administrativista português MARCELLO CAETANO 9. Pertencendo à categoria de Direito Público, resultaria que seriam entidades estatais ou incorporadas ao Estado, "exercendo finalidades de interesse imediato da coletividade." 10
Afirma LUCIA VALLE FIGUEIREDO 11, secundando CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, que as pessoas de direito privado têm as seguintes características elementares: origem na vontade do particular; fim geralmente lucrativo; finalidade de interesse particular; liberdade de fixar, modificar, prosseguir ou deixar de prosseguir o próprio escopo; liberdade de se extinguir; sujeição ao controle negativo do Estado ou a simples fiscalização; ausência de prerrogativas autoritárias. Já as pessoas de direito público, possuem os elementos seguintes: origem na vontade do Estado; fins não lucrativos; finalidade de interesse coletivo; ausência de liberdade na fixação ou modificação dos próprios fins e obrigação de cumprir os escopos; impossibilidade de se extinguirem pela própria vontade; prerrogativas autoritárias, de que normalmente dispõem. As pessoas de direito público possuem ainda as seguintes prerrogativas: imunidade tributária; foro privilegiado; prazos especiais nos processos judiciais; impenhorabilidade e imprescritibilidade dos seus bens e direitos. 12
Não obstante possa ter sido, como já apontado, intenção do legislador Constituinte derivado impor uma EFPC "pública" aos servidores, o § 15 do art. 40. da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 41/2003, causa uma aparente incoerência no texto constitucional, que, se verdadeira, abalaria o sistema, uma vez que, numa primeira leitura, contrariaria frontalmente outro dispositivo da Constituição, o art. 202, que classifica a previdência complementar como tendo natureza "privada", inclusive aquelas patrocinadas pelos entes federados e seus órgãos da administração indireta (art. 202, §§ 3.º e 4.º).
Neste ponto torna-se necessário mencionar a advertência feita pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL de que, ao intérprete da norma é necessário ter em conta a intenção do legislador, mas não ao ponto de fazer com que essa intenção "engesse" a compreensão da matéria quando analisada em confronto com os demais pontos do texto, comprometendo sua eficácia:
"DEBATES PARLAMENTARES E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto".
(STF, ADIN 2010, Rel. Ministro Celso de Mello, Julg. 30.09.1999, DJ 12.04.2002)
Prosseguindo, se fossem normas autônomas, a aparente contradição entre o § 15 do art. 40. e os §§ 3.º e 4.º do art. 202. se resolveria por uma das regras universais para resolução de conflito de normas, constante da nossa Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n.º 4.657, de 04 de setembro de 1942), que, em seu art. 2.º, afirma que norma posterior revoga a anterior quando, mesmo não a tendo revogado expressamente, for com ela incompatível. Ressalvando-se a possibilidade de aplicação de outra regra do mesmo artigo, que diz: "a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior" (LICC, art. 2.º, § 2.º).
Entretanto, em se tratando de um código, e ainda mais um código de normas ditas fundamentais, ao qual se designa "Constituição" – que irá condicionar todo o ordenamento jurídico -, não há hipótese de uma norma revogar a outra do mesmo diploma, pois não há incoerência sistêmica, assim como não existe norma constitucional desprovida de eficácia, de acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA 13. Além disso, é inerente à interpretação específica de norma constitucional o princípio da unidade, que, conforme LUÍS ROBERTO BARROSO
"é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior." 14
Por tais razões, o aplicador do Direito necessita empenhar-se para harmonizar os comandos do texto constitucional, sendo necessário conferir a este o máximo de eficácia. Nesse mister, o intérprete da norma está diante, em última análise, da eficácia do próprio Direito, assim tratada por PINTO FERREIRA:
"A eficácia do Direito é um conceito; por conseguinte, diverge da positividade e da vigência; é o poder da norma jurídica de produzir efeito, em determinado grau, em maior ou menor grau; concerne à possibilidade de aplicação da norma, e não propriamente à sua efetividade." 15
Para a tarefa de verificar a amplitude do efeito da norma em constitucional em comento, neste caso em análise, o próprio § 15 analisado fornece a solução, quando manda aplicar, subsidiariamente, o art. 202. da mesma Constituição Federal. Ao fazer isso, reconhece, explicitamente, quanto ao referido art. 202, ser este a norma de caráter geral sobre Previdência Complementar, ao qual adere, já que é específico tão somente para as hipóteses de complementação de benefícios previdenciários a servidores da União, Estados, DF e Municípios.
De fato, o art. 202. da Constituição Federal traz as regras gerais sobre a previdência complementar brasileira, definindo que esta terá natureza privada; que será autônoma em relação ao regime geral; que não integra o contrato de trabalho nem a remuneração do participante; que possui característica contratual; que sua adesão é facultativa; que o sistema funciona por meio de acumulação de reservas (regime de capitalização); que será regulamentada por leis complementares; que os participantes terão direito a obter informações sobre seus planos; que os entes federados e seus órgãos da administração indireta não podem aportar recursos a não ser como patrocinadores; que a relação contributiva, neste caso, será de 1 para 1; e que os participantes, ainda nesta hipótese de patrocinador estatal, terão assento nos órgãos de direção da EFPC.
O § 15 do art. 40. da Constituição, por seu turno, traz regras específicas, que alcançam, como já referido, apenas as hipóteses de EFPC patrocinadas pela União, Estados, DF e Municípios, afirmando que serão criadas por lei ordinária do respectivo Poder Executivo; que terão "natureza pública" e que somente poderão oferecer planos da modalidade de "contribuição definida".
O comando que determina lei ordinária para sua criação é de aplicação plena, bem como o que determina o oferecimento apenas de planos de contribuição definida. Entretanto, o mesmo não ocorre com o da "natureza pública", que é inaplicável se for entendido no sentido de pessoa integrante da Administração Pública, sujeita às normas de Direito Público. E isto devido à frontal colisão com o sistema erigido pelo artigo 202 da Constituição Federal, em especial os seus §§ 3.º e 4.º, que classificam as entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas pela União, Estados, DF e Municípios como regidas pelo direito privado.
Assim, a saída para a aparente incoerência sistêmica originada pelo texto do § 15 do art. 40. da Constituição, na redação dada pela EC 41/03, está na seguinte regra universal de hermenêutica: as regras gerais devem ser interpretadas extensivamente, alargando-se o seu campo de aplicação; as regras especiais, ao contrário, devem ser interpretadas restritivamente, isto é, diminuindo o seu raio de incidência. 16
Em conclusão, considerando que o art. 202. da Constituição traz as regras gerais para o sistema – pelas quais prevê, em seus §§ 3.º e 4.º a criação de EFPC de natureza privada para complementação de aposentadoria dos servidores públicos - para que o texto constitucional tenha harmonia e perfeita aplicabilidade, é juridicamente necessário conferir à expressão "natureza pública" do mencionado § 15 do art. 40. da Constituição um alcance mais restrito, fazendo não com que a EFPC dos servidores públicos seja integrante da estrutura da Administração Pública, mas que ela tenha munus público, mas mantendo a natureza privada que caracteriza as entidades integrantes do sistema da previdência complementar pela Constituição Federal. Tal interpretação não seria nenhuma novidade, pois é aplicada e perfeitamente assimilada ao Direito Administrativo Brasileiro, como se verá um pouco mais adiante.
Alguns dos defensores de "fundos públicos", intuitivamente, compreenderam que ao final da tramitação da PEC 40/03 na Câmara dos Deputados, os servidores haviam tido uma "vitória" mais política do que jurídica. No boletim da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (ADUSP) de 19.08.2003, por exemplo, há o registro de um evento em que se discutiu a Reforma da Previdência, com a presença de parlamentares federais, professores e estudantes, no qual o presidente daquela entidade, professor Américo Kerr, afirma:
"O que veio como proposta do governo, que não se esperaria que viesse, foi uma proposta de fundo ligada ao artigo 202, e essa contradição permanece. O artigo 202 da Emenda 20, que hoje faz parte da Constituição, continua lá, e diz: previdência complementar de natureza privada". 17
Aliás, aqui é necessário um parêntese. Se quem defendia a "natureza pública" pretendia se precaver contra eventuais quebras de "fundos privados", é preciso esclarecer que o fato dos planos serem de contribuição definida retira a responsabilidade estatal porque, simplesmente, em planos com essa característica não há "déficit" ou "superávit". As reservas são individualizadas e o resultado das reservas formadas pelas contribuições financeiras do ente patrocinador e do servidor (e na proporção de um para um) é que servirão para pagar os benefícios. Estes, assim, dependerão do volume daquelas. Desta forma, não é lógico supor que um "fundo de pensão público" que opere apenas planos de benefícios da modalidade contribuição definida seja mais garantido do que um "fundo privado" com as mesmas características. Ambos possuem os mesmos riscos, qual seja, o de que as reservas não cresçam o suficiente para garantir um bom benefício previdenciário.