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Ministério Público, investigação criminal, sistema acusatório e a vontade da sociedade

Agenda 27/10/2004 às 00:00

Tem sido objeto de polêmica e é tema de ação em trâmite no STF discussão acerca da possibilidade de o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I, CF), promover ou presidir investigações criminais, no âmbito da própria instituição.

Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferida no HC nº 440.810-3/7, 1ª Câmara Criminal Extraordinária, Relator o Eminente Desembargador Marco Antonio, j. 18.02.04, m.v., negou essa possibilidade ao invalidar denúncia oferecida com base em procedimento administrativo criminal formado no âmbito do Ministério Público estadual. Concluiu, em suma, que o Ministério Público não tem legitimidade "...para realizar diretamente investigações e diligência através de procedimento administrativo de natureza criminal...pois "...a norma constitucional não contemplou ao órgão ministerial as funções de realização e presidência de inquéritos policiais, ainda que instaurados em face de uma necessária investigação de autoridade policial..." A decisão sustenta ainda que o controle externo da atividade policial incompatibiliza o Ministério Público com a investigação criminal (Boletim IBCCrim nº 139, junho de 2004, p. 807).

Essa decisão, data vênia, é autêntico retrocesso em nosso processo penal.

Não defendemos o fim do inquérito policial, a subtração das atribuições da Polícia Judiciária e nem tampouco a substituição ou "superposição" do Ministério Público à Instituição da Polícia Civil, constitucionalmente incumbida de investigar crimes (art. 144, § 4º, CF).

Porém, é inegável que o órgão que detém com exclusividade a legitimidade para a propositura da ação penal pública não poderá deixar, em determinadas situações, de promover diligências complementares ao inquérito policial concluído pela polícia judiciária ou de instaurar e presidir investigações criminais por sua conta e risco, principalmente em casos que envolvam corrupção no setor público, ilegalidades, omissões, abusos ou mesmo crimes de tortura praticados por policiais e outros agentes públicos. E tais provas, colhidas pelo titular da ação penal pública para alicerçar sua propositura, serão obrigatoriamente submetidas ao crivo dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV, CF). Negar ao Ministério Público o poder de investigar em tais casos significará cercear seu poder-dever de promover a ação penal pública, diante de delitos graves, altamente lesivos ao tecido social e normalmente de difícil comprovação.

É elementar - em matéria processual -, que o autor da ação busque pelos meios legais as provas com base nas quais irá sustentar a pretensão que deduzirá em juízo.

A r. decisão baseia-se numa premissa falsa: a de que toda ação penal deve ser necessariamente instruída por inquérito policial presidido por delegado de polícia de carreira, membro da polícia civil dos Estados.

Essa premissa é manifestamente falsa porque de há muito não se discute essa questão: ou seja, a propositura de ação penal pública ou privada independe de prévio inquérito policial.

Pode a ação penal basear-se em outro procedimento administrativo ou mesmo judicial e em peças de informação extraídas ou não de outros autos ou procedimentos.

A Constituição Federal de 1988 quer que o Ministério Público investigue, por outorgar à Instituição a exclusividade da ação penal pública (art. 129, I) e por prever que a instituição deverá expedir notificações, requisitar informações e documentos para instruir procedimentos administrativos, bem como requisitar diligências investigatórias (art. 129, VI, VIII).

E não foi da vontade do legislador infraconstitucional ao editar o Código de Processo Penal vigente, instituído pelo Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, recepcionado pela Constituição de 1988, estabelecer a obrigatoriedade de prévio inquérito policial para a propositura de ação penal ou proibir o Ministério Público de investigar crimes.

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Podemos extrair de vários dispositivos do Código de Processo Penal as conclusões de que em nenhum momento o legislador pretendeu estabelecer o inquérito policial como peça obrigatória para instruir a ação penal e nunca pretendeu, também, proibir o Ministério Público de investigar. Ao revés, o autorizou expressamente a fazê-lo.

Vejamos: o art. 12 estabelece que o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra; o art. 40 do CPP dispõe que quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento de denúncia; o art. 46, § 1º, dispõe que quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento de denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação; o art. 47 estabelece que se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.

Em ambas as situações, o legislador expressamente admitiu a possibilidade de denúncia ou queixa oferecidas com base noutros procedimentos ou documentos: o art. 12 diz que o inquérito policial instruirá a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Logo, admitida está a possibilidade de a denúncia ou queixa terem por base outro procedimento, documentos ou peças que não necessariamente o inquérito policial. E essa possibilidade se torna ainda mais nítida no art. 40, ao dispor que os juízes ou tribunais, sempre que, em autos ou papéis, tomarem conhecimento de fatos que possam configurar ilícito penal, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento de denúncia. E finalmente os artigos 46 e 47 referem-se expressamente à possibilidade de dispensa do inquérito policial, bem como à realização de diligências e investigações complementares, pelo Ministério Público.

Cabe lembrar que no sistema acusatório adotado em nosso processo penal, que não é ortodoxo, até mesmo o Juiz que preside o processo tem poderes investigatórios e instrutórios expressamente previstos em vários momentos no Código de Processo Penal, como refere o eminente Fernando da Costa Tourinho Filho: no art. 156 do CPP - possibilidade de o Juiz, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante; art. 176 - possibilidade de o Juiz formular quesitos nas perícias e exames de corpo de delito em geral; art. 209 - possibilidade de o Juiz ouvir outras testemunhas, além das arroladas pelas partes; art. 234 - possibilidade de o Juiz, de ofício, mandar juntar documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa; art. 241 - possibilidade de o Juiz realizar pessoalmente busca domiciliar; art. 276 - estabelece que é arbítrio exclusivo do Juiz a nomeação do perito; art. 407 - possibilidade de o Juiz-Presidente do Tribunal do Júri ordenar diligências antes da pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária; art. 425 - possibilidade de o Juiz-Presidente do Tribunal do Júri ordenar diligências para o julgamento da causa pelo Júri (Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 96).

Ora, se até mesmo o Magistrado, que não é parte e por isso deve ser imparcial, tem poderes investigatórios e instrutórios expressamente previstos em nosso processo penal (os quais, na busca da verdade real, não comprometem sua imparcialidade), e se a denúncia não será necessária e obrigatoriamente instruída por inquérito policial, não há nenhum sentido lógico em negar ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, a possibilidade de realizar ou presidir investigações criminais por sua conta e risco.

O controle externo da atividade policial, incumbido ao Ministério Público pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, VII), e posto pela r. decisão como atribuição que incompatibiliza o Ministério Público com o exercício da atividade investigatória, será na realidade, em muitas situações, a mola propulsora da investigação criminal pelo Ministério Público.

O exercício efetivo desse controle externo da atividade policial poderá revelar fatos que imponham ao representante do Ministério Público o dever de ofício de instaurar e presidir procedimentos investigativos voltados à apuração de abusos, omissões ou desvios que encontrem adequação em ilícitos penais. Ou seja, o controle externo resultará em investigação, sob pena de ser ineficaz. Mas jamais desembocará na vedação da atividade investigatória, por simples exercício de lógica.

Permitir que o Ministério Público investigue, seja mediante procedimentos administrativos de seu âmbito ou complementando investigações presididas pela Polícia Judiciária (o que é corriqueiro na praxe forense), é absolutamente compatível com a vocação do Ministério Público, instituição incumbida de perseguir judicialmente a repressão aos crimes e de defender os interesses superiores e indisponíveis da sociedade; com nosso ordenamento constitucional e infraconstitucional; com o Estado Democrático de Direito idealizado por nossa Constituição Federal, que prevê como um de seus fundamentos uma sociedade livre, justa e solidária - Art. 3º, I, CF; com a vontade da sociedade e com o sistema acusatório adotado em nosso processo criminal.

Uma sociedade livre, justa e solidária se constrói - dentre outros fatores -, com um Direito Penal mais efetivo e abrangente, que alcance não apenas os pequenos delitos e os delinqüentes menores, mas também os crimes maiores, mais complexos e seus autores, muitas vezes indivíduos e grupos poderosos, agentes públicos importantes, sujeitos formadores de opinião, detentores de recursos para contratar as melhores bancas de advocacia, e por tudo isso muitas vezes mais distantes do alcance do braço repressor do Estado, em detrimento da sociedade.

Até mesmo membros do Poder Judiciário europeu recentemente externaram suas preocupações diante desse entendimento, que opta pela contramão de nosso processo penal, ameaça a cidadania e a própria autonomia do Ministério Público brasileiro como instituição.

Permitir ao Ministério Público que investigue é vontade inequívoca da sociedade brasileira. E não podemos nos esquecer de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente... (art. 1º, parágrafo único, CF).

Essa vontade da sociedade - que é destinatária da atuação do Ministério Público e por isso quer vê-lo investigando - ficou bem explícita em recente pesquisa do IBOPE, em que a opinião pública nacional deu ao Ministério Público a posição de 4ª Instituição mais acreditada do País, superada apenas pela Igreja Católica, Forças Armadas e Imprensa: "Segundo a opinião de 68% das pessoas consultadas, os promotores e procuradores deveriam investigar todos os crimes, contra o entendimento de apenas 4% que defendem a exclusividade da investigação pela Polícia" (Pesquisa sobre o Ministério Público no Brasil. Rio de Janeiro: Conamp, 2004, p. VII).

Essa credibilidade - dentre outros fatores - é fruto de trabalho investigativo efetivo realizado pelos Ministérios Públicos estaduais e federal, resultando na descoberta de crimes e fraudes que dilapidavam o erário e afrontavam princípios básicos da administração pública, de que são exemplos marcantes e recentes a apuração do desvio de recursos nas obras de construção do TRT em São Paulo e a operação "anaconda".

Num passado não muito distante, tivemos o caso do "bar bodega", um crime de morte em São Paulo em que investigação efetivada pelo Ministério Público fez com que aqueles que até então eram apontados como autores do crime fossem colocados em liberdade, chegando aos verdadeiros criminosos. Falou mais alto nesse episódio o respeito às garantias constitucionais do indivíduo e à presunção constitucional de inocência. O Ministério Público, sem deixar de ser parte, exerceu seu irrenunciável papel de fiscal da correta aplicação da lei.

São situações que mostram que a sociedade é colocada em perigo não porque o Ministério Público investiga determinados crimes, mas porque há quem pretenda subtrair de um dos mais importantes órgãos do Estado incumbidos de defendê-la a investigação criminal.

E a grande imprensa está atenta a essa situação, que ameaça a própria cidadania, e por isso se manifestou favoravelmente à possibilidade de o Ministério Público continuar a desenvolver investigações criminais, externando esse pensamento em recentes editoriais veiculados pelos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, ambos de 5 de junho de 2004.

Em suma: a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional querem que o Ministério Público investigue. E a sociedade também quer.

Investigar determinados crimes, para o Ministério Público, é, em síntese, antes de tudo um dever.

Sobre o autor
Fernando Célio de Brito Nogueira

promotor de Justiça em Barretos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Fernando Célio Brito. Ministério Público, investigação criminal, sistema acusatório e a vontade da sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 477, 27 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5861. Acesso em: 22 dez. 2024.

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