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Investigação criminal constitucional: conceito, classificação e sua tríplice função

Agenda 24/07/2017 às 16:00

No cenário atual, a investigação criminal pode ser dividida em três espécies: a) autêntica ou pura; b) derivada (própria ou imprópria); e c) não autêntica ou impura.

1. INTRODUÇÃO

Não há na legislação brasileira nenhum dispositivo legal que defina o conceito de investigação criminal. A Constituição Federal[1], o Código de Processo Penal[2] e a Lei 12.830/13[3], embora façam alusão à atividade de investigação criminal, não dizem exatamente o que seja.

Portanto, do ponto de vista normativo, não há conceito taxativo de investigação criminal. Da leitura dos dispositivos legais referidos é possível inferir-se, unicamente, que a investigação criminal tem como objetivo a apuração das infrações penais e que essa incumbência é atribuição da polícia judiciária[4].


2. CONCEITO

A investigação criminal é o ponto de partida da persecução penal. É o início da atividade de verificação de determinado fato, supostamente criminoso.

 Veja-se que, mesmo fora do processo-crime, a investigação, em si, enquanto origem do saber e do conhecimento, é o ponto de partida de todas as coisas que o homem pretende ter conhecimento. Ou seja, tudo se origina do saber e o homem está sempre atrás do conhecimento. A investigação, assim, é a pesquisa, a atividade de busca do saber, seja por curiosidade ou satisfação do intelecto.

No direito criminal, entretanto, muito além da investigação que visa o aprendizado de algo para fins de satisfação pessoal, há a necessidade dessa atividade, determinada e disciplinada por lei, visando a satisfação do interesse público. A investigação surge, assim, como mandamento imprescindível do sistema de justiça criminal, pois espelha a "necessidade de pesquisa da verdade real e dos meios de poder prová-la em juízo"[5], viabilizando a correta aplicação da lei penal.

A investigação criminal permeia todo o procedimento de apuração da responsabilidade penal do sujeito praticante de um crime, pois, em um primeiro momento, inicia a busca pelo conhecimento do fato e todas as suas circunstâncias e, posteriormente, possibilita sua análise pelos atores do sistema de justiça criminal, viabilizando a experimentação da verdade provável, com base nos elementos que se obteve nesse processo.

Feitas essas constatações, pretendemos fornecer a conceituação de investigação criminal sob dois aspectos: prático e jurídico.

Sob o aspecto prático, conceituamos a investigação criminal como o conjunto de diligências preliminares devidamente formalizadas que, nos limites da lei, se destinam a apurar a existência, materialidade, circunstâncias e autoria de uma infração penal, coletando provas e elementos de informações que poderão ser utilizadas na persecução penal.

Do ponto de vista jurídico, a investigação criminal é por nós definida como a atividade estatal destinada a elucidação de fatos supostamente criminosos, apresentando "tríplice funcionalidade", i.e, na apuração desses fatos, a investigação criminal possui três funções: evitar imputações infundadas (função garantidora); preservar a prova e os meios de sua obtenção (função preservadora); propiciar justa causa para a ação penal ou impedir sua inauguração (função preparatória ou inibidora do processo criminal).

Frisamos que essa tríplice funcionalidade da investigação criminal, por nós sustentada, é um mandamento implícito do sistema constitucional, de modo que a "função unidirecional da investigação criminal", sustentada massivamente pela doutrina clássica, ao nosso sentir, está divorciada dos ideais do Estado Democrático de Direito[6].

A devida investigação criminal pressupõe que o Estado respeite os postulados constitucionais e os direitos individuais, uma vez que “os direitos e garantias fundamentais atuam como disposições legais de caráter negativo, na medida em que dizem o que não se pode fazer na investigação criminal”[7].

Nessa perspectiva, entendemos que a investigação criminal oficial, de cunho constitucional, não pode ser percebida unicamente como preparatória do processo-crime, mas sim de acordo com a tríplice funcionalidade por nós referida.


3. PREVISÃO CONSTITUCIONAL E LEGAL

O texto constitucional é claro ao referir que, como regra, a apuração de infrações penais e a execução das funções de polícia judiciária competem à Polícia Federal e às Polícias Civis, reservando às Polícias Militares o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública.

Cabe à Polícia Federal, órgão mantido pela união, “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo dispuser em lei”[8], bem como “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”[9].

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Quanto à Polícia Civil, menciona a Lei Maior o seguinte: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”[10].

As atribuições dos órgãos de segurança pública estão elencadas, de forma clara, no texto constitucional, não deixando margens para dúvidas de qual é o papel de cada instituição na tarefa de prevenir e reprimir as infrações penais, de modo que a atividade de investigação criminal pertence à polícia judiciária.

Nessa esteira, ainda, refere o artigo 4°, caput, do Código Penal que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.

Cumpre enfatizar, também, a redação legal do artigo 2°, caput, da Lei 12.830/13, o qual refere que "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado", bem como do seu §2°, de onde se extrai que "ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais" .

Repare que tanto a regra prevista no caput do art. 4° do Código de Processo Penal, quanto as regras inseridas no art. 2° da Lei 12.830/13 mantém uma relação harmônica e simétrica com a Constituição Federal, ao passo que corroboram a sua opção pela condução da investigação criminal pela polícia judiciária, e, para nós, nem poderia ser diferente, pois a Constituição representa o “topo hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema”[11].

É necessário reconhecer, assim, que, com base nas normas acima referidas, a investigação criminal é atribuição da polícia judiciária, representada por organismos sociais cuja função, por excelência, é a apuração da materialidade e autoria das infrações penais[12].

Veja-se que quando a Lei Maior faz essa afirmativa, de forma clara, ela está dizendo que a atividade investigativa, no âmbito criminal, será realizada pelas instituições que carregam em seu bojo as atividades de polícia judiciária, i.e., a Polícia Federal e as Polícias Civis, nas suas respectivas áreas de atuação[13].

Cumpre referir que, mesmo diante dos comandos constitucionais que definem as atribuições dos órgãos estatais, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o Ministério Público pode conduzir investigações de natureza criminal, por meios próprios[14], sendo que, conforme demonstramos, ao nosso ver, inexiste comando legal autorizando tal inferência.


4. CLASSIFICAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Traçado o cenário constitucional em que se desenha a investigação criminal, bem como feita referência às leis infraconstitucionais que, ancoradas nas disposições da Constituição Federal, disciplinam o assunto, estabelecemos que a investigação criminal, atualmente, pode ser divida em três espécies.

a) Investigação criminal autêntica ou pura: Insere-se nesta classificação a investigação criminal autorizada e legalizada pela Constituição Federal, conduzida pela polícia judiciária, sob a presidência de um delegado de polícia de carreira. Diz-se autêntica ou pura porque se trata do modelo padrão de investigação criminal adotado pela Constituição. É a investigação criminal genuína.

b) investigação criminal derivada: Insere-se  nesta classificação a investigação criminal igualmente prevista no texto constitucional como exceção ao modelo padrão. Conforme sinalizamos, a Constituição não conferiu o monopólio da investigação criminal à polícia judiciária, havendo duas exceções, nas quais a atividade de investigação criminal poderá não ser desempenhada pela polícia judiciária, quais sejam: a apuração das infrações penais militares[15] e as apurações das comissões parlamentares de inquérito[16]. Diz-se derivada porque deriva do modelo padrão e possui, igualmente, sustentação constitucional.

c) investigação criminal não autêntica ou impura: Enquadra-se nesta classificação qualquer outra forma de investigação criminal levada a cabo fora dos padrões estabelecidos pela Constituição Federal, independentemente da instituição que a realize, pois, diante da inexistência de mandamento constitucional que lhe confire legitimidade, se apresenta como forma de flexibilização negativa das garantias fundamentais. Diz-se não autêntica ou impura porque não possui previsão constitucional[17].


5. CONCLUSÃO

Não há na legislação brasileira nenhum dispositivo legal que defina a investigação criminal, muito embora a Constituição Federal refira que esse mister é atribuição das instituições que executam funções de polícia judiciária, i.e. Polícia Federal e Polícias Civis.

Para fins doutrinários, a investigação criminal, ponto de partida da persecução penal, pode ser conceituada sob os aspecto prático e jurídico, de modo que, no segundo caso, há a necessidade de se perceber a investigação criminal com sua "tríplice funcionalidade".

No cenário atual, a investigação criminal pode ser dividida em três espécies: a) Investigação criminal autêntica ou pura; b) Investigação criminal derivada (própria ou imprópria); e c) Investigação criminal não autêntica ou impura.


Notas

[1] Artigo 144, §1°, incisos I e IV, e §4°.

[2] Artigo 4°, caput.

[3] Artigos. 1° e 2°, caput, e §§1° e 2°.

[4] Parte da doutrina entende que a Constituição Federal estabelece uma distinção entre as funções de polícia judiciária e as funções de polícia investigativa. Entretanto, sedimentou-se na doutrina e na jurisprudência a utilização da expressão polícia judiciária para se referir ao exercício de atividades relacionadas à apuração das infrações penais.

[5] ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Os princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p.60.

[6] A observância da Constituição Federal é uma exigência impreterível em um Estado Democrático de Direito, razão pela qual a eficácia da investigação estatal penal não pode estar desassociada das garantias individuais fundamentais.

[7] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. São Paulo: Almedina, 2010, p. 185.

[8] Artigo 144, §1°, I, CF.

[9] Artigo 144, §1°, IV, CF.

[10] Artigo 144, §4°, CF.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11a edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 345.

[12] No julgamento do HC 149.250 o Superior Tribunal de Justiça considerou ilegal a participação de servidores da ABIN nas investigações da Polícia Federal.

[13] Insta referir que a Constituição Federal prevê apenas duas exceções à regra dos §§1° e 4° do artigo 144, nas quais a "atividade de investigação criminal" poderá não ser desempenhada pela polícia judiciária: a apuração das infrações penais militares (art. 144, §4°) e as apurações das comissões parlamentares de inquérito (art. 58, §3°).

[14] STF. RE 593.727, Ministro relator Cezar Peluso, Julgado em 14/05/2015.

[15] Nos termos do art. 124 da CF, infere-se que as infrações penais militares serão julgadas pela Justiça Militar. E, nos termos dos artigos 7°, 8° e 9° do Código de Processo Penal Militar, extrai-se que a apuração das infrações penais militares será feita por autoridades militares que atuarão fazendo as vezes de polícia judiciária. Trata-se, portanto, de verdadeira investigação criminal. Assim, classificamos como investigação criminal derivada própria ou propriamente dita.

[16] O inquérito parlamentar, referimos, não é um inquérito criminal típico, pois pode visar a apuração de fato de qualquer natureza, não apenas penal, i.e., pode apurar fato político, administrativo, responsabilidade civil, e, também, criminal, conforme se verifica da parte final do artigo 58, §3°, da CF. Ressalte-se, inclusive, que as conclusões dos inquéritos parlamentares, nem sempre dispensam investigações pela polícia judiciária, como a realidade tem nos mostrado, diante dos diversos interesses que se encontram por trás desse expediente investigatório. Assim, por não se constituir em uma investigação criminal propriamente dita, classificamos como investigação criminal derivada imprópria.

[17] Enquadram-se nesta categoria, por exemplo, investigações criminais feitas e formalizadas diretamente por instituições militares (relativamente a crimes comuns), ou pelo Ministério Público.

Sobre o autor
William Garcez

Delegado de Polícia (PCRS). Pós-graduado com Especialização em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor de Direito Criminal da Graduação e da Pós-graduação da Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e de cursos preparatórios para concursos públicos: Ad Verum/CERS (2018), Casa do Concurseiro (2019), CPC Concursos (2020), Mizuno Cursos (2021) e Fatto Concursos (2023). Professor de Legislação Criminal Especial do curso de Pós-graduação do IEJUR - Instituto de Estudos Jurídicos (2022) e da Pós-graduação da Verbo Jurídico (2023). Organizador e autor de artigos e obras jurídicas. Palestrante. Instagram: @prof.williamgarcez

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCEZ, William. Investigação criminal constitucional: conceito, classificação e sua tríplice função. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5136, 24 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58958. Acesso em: 19 nov. 2024.

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