Muito tem se falado acerca de diversos itens da Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, que estariam em confronto com normas e princípios constitucionais.
Não olvidemos que houve inúmeros avanços na nova sistemática legal trabalhista, a exemplo da regulamentação do teletrabalho, a ampliação da liberdade para a compensação de jornada, o fim da obrigatoriedade do pagamento da contribuição sindical e criação do distrato por conivência de ambas as partes.
Todavia, salta aos olhos as mudanças incrementadas com a criação do Título II–A – DO DANO EXTRAPATRIMONIAL, inserindo os artigos 223-A ao 223-G na CLT.
Antes da “revolução” trazida pela sistemática legal implementada, a regulamentação legal do dano no Brasil era feita pelo Código Civil, através dos seus artigos 186 e 187:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Da análise dos supracitados dispositivos civilistas, tinha-se uma ampla definição do ato ilícito cometido por quem violasse direito ou causasse dano a outrem.
Assim sendo, segundo infere-se dos artigos 186 e 187 do Código Civil, comete ato ilícito quem, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia causar dano a outrem, de forma a atingir seus direitos.
Segundo estabelece o artigo 927 do mesmo diploma legal, o ato ilícito que cause dano a outrem obriga o ofensor a repará-lo.
Era essa a fundamentação legal através da qual eram examinados os casos em que havia afronta a direitos e garantias materiais e imateriais, condenando ofensores ao pagamento de indenização proporcional à extensão dos danos. Não havia, portanto, limite indenizatório.
Aliás, a própria Constituição Federal, em seu Artigo 5º, incisos V e X, garante direito de resposta proporcional ao agravo sofrido, bem como à inviolabilidade da intimidade, vida privada, da honra e da imagem:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
...
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Ocorre que a famigerada reforma trabalhista, ignorando os direitos e garantias constitucionais e infraconstitucionais citados, tratou de não só disciplinar a matéria em debate, como também limitar a sua discussão aos dispositivos legais inovadores por ela trazidos, conforme extrai-se do artigo 223-A:
Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.
Ocorre que, ao restringir a análise de casos de danos extrapatrimoniais decorrentes das relações de trabalho apenas aos dispositivos daquele Título, a novel legislação afasta, por conseguinte, a aplicação supletiva das regras do Código Civil acerca da matéria.
Limitando os bens juridicamente tutelados na esfera trabalhista, a Lei 13.467/2017 opera em flagrante inconstitucionalidade na medida em que afasta a ampla e irrestrita tutela constitucional, por meio da qual considera como fato ensejador de dano moral total e qualquer ação ou omissão ofensiva à dignidade da pessoa humana.
Dentre o limitado rol de bens jurídicos tutelados pela nova legislação trabalhista não há, por exemplo, a liberdade religiosa, assegurada pelo artigo 5º, VI, da Carta Magna.
Aliás, despiciendo mencionar que os direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente previstos, são normas petrificadas em nossa Lei Maior, o que já leva à imediata conclusão da flagrante ilegalidade perpetrada pelo legislador infraconstitucional.
Mas as inconstitucionalidades não param por aí.
Não menos grave, porém ainda mais flagrante, está a inconstitucionalidade do artigo 223-G, na medida em que estabelece os parâmetros a serem observados pelo julgador ao fixar a indenização a ser paga a quem sofrer lesão extrapatrimonial decorrente de relação de trabalho:
Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:
...
§ 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;
II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;
III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;
IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.
§ 2o Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no § 1o deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor.
§ 3o Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização.
Com o tabelamento/tarifação da indenização por dano extrapatrimonial (moral, estético, existencial), como feito pelo legislador, de cara, emerge a violação ao princípio constitucional da isonomia (artigo 5º, caput ,da Constituição).
Não há, em tese, nenhuma ilegalidade em levar em consideração a capacidade econômica das partes (ofendido e ofensor) ao mensurar eventual valor indenizatório a ser deferido em favor de quem sofreu dano extrapatrimonial. Isso deve ser observado pelo julgador, inclusive.
O absurdo reside, contudo, na limitação dos patamares indenizatórios, no estabelecimento de parâmetros aritméticos de indenização em razão da remuneração do ofendido (ou ofensor, no caso do §2º do artigo 223-G). É ainda mais inaceitável tal limitação, por estabelecer patamares que podem ser absolutamente inexpressivos, dependendo do caso concreto.
Fica cristalina a afronta ao princípio da isonomia quando imaginamos a não rara hipótese em que dois trabalhadores, empregados de uma mesma empresa, sofram o mesmo dano extrapatrimonial no mesmo ato ilícito. Aquele que aufere maior renda, segundo os parâmetros estabelecidos, terá maior teto indenizatório do que aquele cuja remuneração seja menor.
Imaginemos o caso em que o dono de uma empresa, descontente com dois de seus funcionários, um faxineiro e outro gerente de departamento, com salários de R$1.000,00 e R$5.000,00, respectivamente, após uma acalorada discussão, insulte os empregados com palavras de baixo calão. Seguindo os critérios estabelecidos pela nova legislação trabalhista, entendendo o Magistrado que a ofensa seja de natureza leve, e que o ofendido deva receber o equivalente a 3 vezes o seu último salário, um receberá R$15.000,00 de indenização, enquanto que o outro, que padeceu do mesmo ato ilícito, receberá 1/5 desse valor. Em um mesmo ato ilícito, praticado pelo mesmo ofensor, em face de dois ofendidos, ambos têm limitações diferentes de valor de indenização.
E se esses trabalhadores decidirem ajuizar ação trabalhista em litisconsórcio ativo, almejando indenização por dano moral em razão desse ocorrido? Será ainda mais penoso o trabalho do Magistrado ao estabelecer os valores de indenização a serem pagos. E o advogado? Como explicará para o seu cliente faxineiro que, para o juiz, a ofensa por ele sofrida vale 1/5 da ofensa feita ao gerente?
Imaginemos um caso ainda mais emblemático. Dois motoristas carreteiros que, viajando juntos no mesmo caminhão, sofrem um acidente fatal em decorrência do péssimo estado de conservação do veículo fornecido pelo empregador. O motorista “A” tinha o salário mensal de R$5.000,00, enquanto que o “B”, novato na empresa, apenas R$2.500,00. Supondo que cada um dos trabalhadores tenha deixado apenas um filho e ambos os filhos ajuízam ação trabalhista reclamando indenização por danos morais em razão da trágica e prematura perda do pai. É o chamado Dano Reflexo (ou Dano Ricochete). Como pode o Magistrado, em sentença, fixar a indenização ao filho do “A” em até R$250.000,00 e para o filho do “B” em até R$125.000,00? O sofrimento de um foi o dobro do sofrimento do outro? É claro que não!
Pobres operadores do Direito do Trabalho, reféns da inconstitucionalidade em cotejo!
Se todos são iguais perante a Lei, não há razão ou qualquer justificativa plausível para o tratamento desigual unicamente em razão da remuneração auferida por empregado.
Aliás, ao estabelecer limites para fixação de valores indenizatórios, o legislador impede o ressarcimento integral do dano, tendo em vista que a sua extensão pode ultrapassar os patamares máximos estabelecidos.
Já o §2º do artigo 223-G da novel legislação, apesar de aparentar uma aproximação do que temos como justiça, na medida em que inverte a ordem do §1º, fixando os mesmos parâmetros supracitados para fixação de indenização a ser paga pelo trabalhador à empresa, não é menos inconstitucional.
É claro que a capacidade econômica do ofensor deve ser levada em consideração na fixação da indenização a ser paga ao ofendido, como já dito em linhas pretéritas.
Todavia, na medida em que estabelece parâmetros objetivos de quantificação de indenização a ser aplicado aos casos concretos, distinguindo tratamento de partes em casos simétricos, o legislador ofende o princípio da igualdade tal qual fez no §1ª do artigo em questão.
É preferível crer que, em que pese a reforma trabalhista tenha sido elaborada, debatida e tramitado perante as Casas Legislativas de forma, digamos, nebulosa, a intenção do legislador tenha sido nobre: criar segurança jurídica para os conflitos sociais.
De fato, as partes envolvidas em uma relação de trabalho, com o início da vigência da lei 13.467/2017, têm uma noção um pouco mais precisa das consequências pecuniárias, relativas à reparação extrapatrimonial, quando incorrerem em ato ilícito indenizável. Antes, não haviam parâmetros objetivos para fixação de quantum indenizatório, o que gerava uma relativa insegurança jurídica.
Porém, tudo leva a crer que este nobre objetivo não tenha sido alcançado, na medida em que ainda remanescerão dúvidas acerca da classificação dos casos concretos nos critérios do artigo 223-G, §1º, da CLT. Enquanto que determinada ofensa, para uns pareça de natureza grave, para outros deveria ser classificada como de natureza média e vice-versa.
Essa será, por certo, a “carta curinga” de advogados para interposição de Recursos de Revistas ao TST. Ora, qualquer caso poderá ser rediscutido na instância máxima trabalhista em razão de suposta afronta a um dos incisos do artigo 223-G, §1ª da CLT, ao argumento de que determinado ato ilícito não poderia ter sido classificado como feito pela instância de origem.
Ou seja, pacificação social e segurança jurídica ficaram ainda mais distantes com esta famigerada inovação legislativa.
Na confluência do que foi dito, pode-se concluir que a reforma trabalhista, como um todo, em diversos pontos “bate e assopra” na jurisprudência trabalhista consolidada. Enquanto legaliza situações já sedimentadas no âmbito do TST, fulmina direitos em dispositivos que vão em sentido diametralmente oposto ao que vinha sendo aplicado, como no caso das horas in itinere (artigo 58, §2º) e da supressão parcial do intervalo intrajornada (artigo 74, §4º da CLT).
Em relação à tarifação do dano extrapatrimonial, com uma roupagem de buscar maior segurança jurídica nas relações de trabalho, regulamentando a quantificação do dano, em uma só tacada, o legislador afrontou o princípio constitucional da isonomia, bem como fulminou a amplitude do direito à resposta proporcional ao agravo, esculpidos no artigo 5º caput e inciso V da Constituição Federal.
Igualmente, conforme discorrido em linhas pretéritas, certamente a eficácia da lei passará a uma distância quilométrica da segurança jurídica almejada. A interpretação da classificação dos atos ilícitos, por sua subjetividade, abrirá margem para infindáveis discussões em cada caso concreto. O que determinado ato ilícito para uns é tido como de natureza grave, para outros de natureza leve, e vice-versa.
Não bastasse tudo isso, com o passar dos anos, teremos incontáveis Recursos de Revista interpostos com fundamento em eventual afronta aos incisos do artigo 223-G, §1º, da CLT, conforme autoriza o artigo 896, “c”, da CLT. Ou seja, maior litigiosidade.
Certamente estão por vir tempos de intensos debates acerca de diversos temas da reforma trabalhista. Certamente a constitucionalidade da tarifação do dano extrapatrimonial será matéria fortemente debatida no âmbito de Tribunais Regionais do Trabalho, do Tribunal Superior do Trabalho e, finalmente, no Supremo Tribunal Federal. Que vença a Constituição da República Federativa do Brasil!