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Desconsideração da pessoa jurídica

(Conceitos e Considerações)

Agenda 21/04/1998 às 00:00

PESSOA JURÍDICA — entidade constituída por homens e bens, com vida, direitos, obrigações e patrimônio próprios. Podem ser, em relação ao Brasil, de direito público externo (outras nações e organismos internacionais, por exemplo) ou interno (a União, as Unidades Federativas, os Municípios, as Autarquias, ....), ou de direito privado (sociedades civis, associações, sociedades de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos, partidos políticos, fundações privadas e, em sua grande maioria, sociedades mercantis, entre outras).

DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA — diz-se do “afastamento” da personalidade jurídica de uma sociedade (basicamente, privada e mercantil) para buscar corrigir atos que atinjam-na, comumente em decorrência de manobras fraudulentas de um de seus sócios. Não se trata, necessariamente, de suprimir, extinguir ou tornar nula a sociedade desconsiderada. Configura, isso sim, uma fase momentânea ou casuística durante a qual a pessoa física do sócio pode ser alcançada, como se a pessoa jurídica não estivesse existindo.



Considerações

“É cada vez mais freqüente a existência de sociedades ´de papel´, criadas para burlar o Direito e prejudicar terceiros.”

[1]

a) Dispõe nosso Código Civil (art. 20): “As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros.” Portanto, as pessoas jurídicas têm individualidade própria, não se confundindo com as pessoas naturais, físicas, que a compõem. Dentre as pessoas jurídicas, as sociedades mercantis, ou comerciais, são constituídas por pessoas naturais que se reúnem intencionalmente para determinado fim, de cunho econômico. À luz exclusivamente do Código Civil, tais pessoas físicas não respondem civilmente pela sociedade que constituíram.
 
b) Tendo em vista fraudes promovidas por meio da personificação de sociedades anônimas, foi sendo elaborada, por construção jurisprudencial, uma doutrina que busca coibir os abusos verificados. Pretende essa doutrina, para alguns “teoria”, penetrar no âmago da sociedade, superando, ou desconsiderando, sua personalidade jurídica, para atingir — e vincular — a responsabilidade do sócio que por trás dela se esconde.

c) Trata-se de uma teoria surgida na Inglaterra. A primeira aplicação de que se tem registro foi, ainda no século XIX (1897), pela justiça inglesa, quando um empresário constituiu uma company, atendendo aos requisitos para estar legalmente constituída (sete sócios), ficando ele com vinte mil ações e os demais seis — todos de sua família — cada qual com uma única ação. A sociedade logo em seguida se revelou insolvente, com um ativo insuficiente para satisfazer as obrigações por ela contraídas, nada sobrando para os credores. O liqüidante afirmou que a atividade da company era, na verdade, do empresário, que usara daquele artifício para limitar sua responsabilidade pessoal. [2]

De lá, chegou aos Estados Unidos, tendo se desenvolvido e se espalhado para outras partes do mundo, inclusive o Brasil. No Direito alemão (durchgriff), tem o sentido de penetração; na Itália, de superação (superamento); em inglês, também é dito levantamento (lifting), embora a expressão inglesa mais comum seja disregard, ou seja, desconsideração.

d) Em muitos casos, constata-se a transmissão fraudulenta do patrimônio de um devedor pessoa física para o capital da pessoa jurídica por ele constituída e controlada, para ocasionar prejuízo a terceiros, ou, no terreno tributário, ao próprio fisco.

e) Segundo essa teoria, nos casos em que seja aplicável, atos societários são declarados ineficazes e a importância da pessoa do sócio sobressai em relação à da sociedade, ficando esta desconsiderada, menos relevante, posta em segundo plano.

f) De acordo com a letra fria da lei, a pessoa jurídica tem capacidade, emite declaração de vontade, contrai obrigações, responde civilmente pelos compromissos assumidos, até mesmo com seu patrimônio, ocorrendo a inadimplência, a inobservância desses compromissos, inclusive no caso de execução forçada. Contudo, os atos que caracterizam as declarações de vontade, a assunção de obrigações e a inadimplência são praticados por seres humanos, ou seja: seus gestores, seus legítimos representantes, os mandatários dos sócios (quando não os próprios).

Lembra CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA que “o dever indenizatório decorre da relação de causalidade entre o fato e o dano” para concluir pela “obrigação de reparação quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” [3]

Não é outro o espírito a nortear a disregard doctrine (ou disregard legal entity) quando, deixando de lado a pessoa jurídica, sai à caça do dirigente, ou sócio, que pratique ato ilícito, infringindo disposição legal, com abuso de poder ou violação de norma estatutária, em prejuízo de terceiros.

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g) Em nosso ordenamento jurídico, como visto, não havia preceito legal que embasasse essa desconsideração da pessoa jurídica, o que levava a que eventuais decisões nesse sentido recorressem à doutrina como fonte do Direito. Aos poucos, foi-se firmando alguma jurisprudência pátria.

Somente em setembro de 1990, pela vez primeira, o direito positivo brasileiro viu surgir base legal autorizando o Poder Judiciário a pôr em prática a desconsideração da pessoa jurídica, na defesa de consumidor que venha a ser lesado em direito seu por procedimento do fornecedor (Lei nº. 8.078/90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, art. 28).

Observa FÜHRER [4] que alguma legislação pátria, bem antes do Código de Defesa do Consumidor, de certa forma, previa algo semelhante à desconsideração, como a CLT (art. 2º., § 2º.) e o Decreto-lei nº. 1.736/79, que responsabilizam, além da pessoa jurídica diretamente envolvida, também ou alternativamente empresas coligadas ou sócios-dirigentes.

h) JUSTEN FILHO dá uma classificação da aplicação da disregard doctrine, estabelecendo nove “espécies” distintas, em termos de intensidade e extensão, indo da desconsideração total e genérica à desconsideração mínima e unitária, em ordem decrescente de gravidade, ou seja, ela pode ser máxima, média ou mínima e cada uma destas, genérica, seriada ou unitária. [5]

Um exemplo de desconsideração máxima da personalidade jurídica societária consistiria no caso de alguém (pessoa física) que assume obrigação de não fazer algo e que busca valer-se da sociedade personificada exatamente para praticar a conduta a cuja abstenção se obrigara. Em tal suposição, a conduta assim praticada pode  e deve  ser imputada ao sócio, e não à sociedade, como se esta não existisse ou se não houvesse sido ela a praticante da conduta vedada ao sócio, por obrigação assumida perante terceiros.

Havendo o risco de sacrifício a interesses de outrem, se prevalecerem os efeitos da personificação societária, cabe a desconsideração desta.

i) Conforme várias fontes, o Anteprojeto de Código Civil submetido à apreciação do Senado Federal, há mais de uma década, prevê a incorporação da teoria da desconsideração ao Código, verbis:

“A pessoa jurídica não pode ser desvirtuada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou tais sejam as circunstâncias, a dissolução da sociedade.
“Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das demais sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.” [6]

Como claramente faz ver a redação proposta, destinar-se-á o novel instrumento, principalmente, à neutralização de ato(s) nocivo(s), ou lesivo(s), à própria sociedade ou a terceiros, mediante práticas abusivas ou com intuito fraudulento que um sócio venha a utilizar, desviando a pessoa jurídica de sua finalidade estatutária ou contratual, para a cobertura daqueles atos condenáveis. Por força judicial, tais atos poderão ser tornados ineficazes.

Dispõe aquele texto que o juiz poderá intervir “a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público.” Dessa forma, quem, não participando societariamente, sentir-se lesado, necessariamente, terá de recorrer ao Ministério Público, que assumirá a defesa de seu interesse atingido. Subentende-se que o sócio atingido (econômica, moral ou eticamente) pela ação de um seu colega de sociedade mercantil poderá, ele próprio, requerer a atuação do Estado, pela via judiciária, para dar novo rumo ao estado de coisas que lhe pareça inaceitável, podendo chegar à decretação da “exclusão do sócio responsável” ou da “dissolução da sociedade”.

j) Nota-se que, malgrado não seja o fim sempre colimado, a desconsideração da pessoa jurídica pode ser aplicada em casos de falência, insolvência ou encerramento de suas atividades, em conseqüência de má administração ou de fraude, assegurando os interesses de quem haja sido prejudicado.

l) O cabimento da desconsideração envolve algo de ideológico, de vez que haverá sempre uma opção, entre um valor ou um interesse específico, diante de outros valores ou outros interesses específicos.

m) Demonstra a jurisprudência que a maioria das práticas que ensejam o recurso à desconsideração da pessoa jurídica, para alcançar a pessoa física eivada de maus propósitos que por trás daquela se esconde, partem de sócios altamente majoritários, detentores da quase totalidade do capital societário, quando mais não sejam firmas familiares, fictícias, unipessoais ou, até, inexistentes (sem registro legal). Nessas hipóteses, os bens auferidos com o negócio estarão em nome daquele sócio quase dono, e a pessoa jurídica não terá patrimônio que garanta e honre os compromissos em seu nome assumidos, em denominados “golpes do colarinho branco”.

n) A desconsideração da pessoa jurídica pode ser invocada em todos os casos de fraude: à lei, ao contrato, contra credores ou à execução; e não somente quanto a dívidas em dinheiro como na obrigação de não fazer ou qualquer outra descumprida em que pareça cabível e recomendável.

o) Observa-se, por fim, que a desconsideração não se confunde nem acarreta a nulidade dos atos que propiciaram a atuação judicial. Os atos praticados não são anulados; apenas outras medidas são tomadas para corrigir e compensar, “distorcer” e desfazer o que de fraudulento houvesse sido praticado, indo buscar, no patrimônio ou na pessoa física de quem agira como se a pessoa jurídica fosse, essa compensação ou o cumprimento da obrigação assumida e não adimplida.

“Só se pode falar em desconsideração quando o sócio é alcançado independentemente do tipo e da estrutura da sociedade e de suas regras particulares de responsabilização.”

[7]



NOTAS

[1] JUSTEN FILHO, Marçal. “Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro”. Editora Revista dos Tribunais Ltda., São Paulo-SP, 1987, última capa.

[2] REQUIÃO, Rubens. “Curso de direito comercial”, 1º. Volume, 18ª. edição, Editora Saraiva, São Paulo-SP, 1988, p. 283:4.

[3] PEREIRA, Caio Mário da S. “Instituições de direito civil”, vol. I, 6ª. edição, Editora Forense, Rio de Janeiro-RJ, 1994, p. 208:9.

[4] FÜHRER, Maximilianus C. A. “Resumo de direito comercial”, Coleção Resumos - vol. 1, 17ª. edição, Malheiros Editores, São Paulo-SP, 1996, p. 76.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 64.

[6] FÜHRER, Maximilianus C. A. Op. cit., p. 76 (nota de rodapé).

[7] Idem, p. 78.

BIBLIOGRAFIA ADICIONAL

Código de Defesa do Consumidor, Lei nº. 8.078/90, Edição do DPDC/SDE/MJ, 1994.

Sobre o autor
João Celso Neto

advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CELSO NETO, João. Desconsideração da pessoa jurídica: (Conceitos e Considerações). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/595. Acesso em: 23 dez. 2024.

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