IV – Conclusões
Após o enquadramento da questão, nos termos acima, passamos às considerações finais do presente trabalho.
É fato consumado, que atualmente a função judicante vem frustrando as expectativas, tanto dos jurisdicionados como também a daqueles que militam diuturnamente nos mais diversos foros, País afora.
No entanto, preliminarmente deixe-se registrado que tal despautério não é exclusividade do Poder Judiciário. Basta olharmos para o amadorismo com que vêm sendo exercidos os cargos políticos, tanto no Executivo, quanto no Legislativo, seja Federal, Estadual ou Municipal.
Reforma do Judiciário é uma forma mal disfarçada de encobrir com uma cortina de fumaça os olhos da população para os reais problemas do País: a falta de emprego, escolas de qualidade, hospitais com atendimento digno, transportes, moradias em locais decentes, saneamento básico, acesso irrestrito à informação etc. Isso para citar alguns direitos básicos que a Constituição Federal desde 1988 procurou assegurar, e que os Poderes Políticos há quase duas décadas vem fazendo tábula rasa.
Por óbvio, todos queremos um Judiciário eficiente. Pois as cortes de justiça são sempre a última esperança dos cidadãos, vítimas da criminalidade, dos maus comerciantes e por mais paradoxal que seja, de nossos governantes, nos quais depositamos periodicamente nossa confiança, para, logo após, constatarmos que fomos traídos pelo discurso fácil.
Entretanto, não é de hoje que os poderes políticos (diga-se Legislativo e Judiciário) vêm orquestrando mecanismos legais negando aos cidadãos a prestação efetiva de tutela jurisdicional, principalmente quando as fazendas públicas assumem a posição de rés nos processos Brasil afora. Tal expediente descaradamente vem sendo utilizado por meios legislativos e até mesmo pela porta aberta das espúrias medidas provisórias. E o pior: com o aval do próprio STF.
Assim foram as famigeradas leis 4.348/64, 5.021/66, 8.437/92, 9.494/97; as medidas provisórias 2.180-35/2001 etc. Todas de duvidosa constitucionalidade, limitadoras de remédios instrumentos constitucionais legítimos como o mandado de segurança, a ação civil pública e a ação popular.
De outra forma, a bandeira hasteada no mastro da mais nova aposta legislativa, a implementação da referida súmula vinculante, é mais uma forma mal disfarçada de trazer para o direito brasileiro expedientes incompatíveis do direito anglo-saxão.
Tal ponto não passou despercebido pelo eminente prof. Ronaldo Poletti para quem:
" A súmula
vinculante induz a um direito judicial, lastreado na orientação
jurisprudencial dos tribunais, desta feita da cúpula do Judiciário, enquanto o
nosso direito é processual. O juiz julga segundo as leis e não a sua bondade
(secundum leges non de legibus). Não se deve julgar de acordo com os
precedentes, mas de acordo com as leis (non exemplis sed legibus iudicandum
sit). A norma é anterior à sentença, não decorrente dela. Não compete ao
órgão jurisdicional dizer o direito em tese, mas compor conflitos de
interesse. O juiz declara a vontade da lei, que não emana da sentença, porém
do momento em que se dá a sua violação. A vontade da lei preexiste à
decisão judicante.
O que caracteriza o direito é a interpretação. Não há direito sem
interpretação. A regra do efeito vinculante inibe a interpretação do direito
pelos seus aplicadores.
Tais colocações não representam qualquer adesão ao positivismo legalista,
mas decorrem da dogmática que há séculos vem sendo construída, com bases
doutrinárias (8)".
Acresça-se que tal constatação é prática antiga no direito brasileiro, que aliás vem desde de 1891, quando o eminente Rui Barbosa importou do direito norte-americano o controle incidental de constitucionalidade e mais recentemente o fizeram as Leis 9.868/99 e 9.882/99, ao importar, também do sistema anglo-saxão, a figura do amicus curiae.
Sob os argumentos de que o fim justifica os meios, quer-se cegar o Judiciário pondo fim a sua atuação hermenêutica e criativa, verdadeiro fator de evolução do direito.
Como demonstrado acima, a evolução da ciência jurídica passou por períodos históricos, formados na forja dos embates sociais e filosóficos, nos chegando aos dias de hoje como conquistas efetivas contra o arbítrio de soberanos sagazes e ávidos por acúmulo de poderes. De forma que aceitar o remédio amargo que ora nos é oferecido é permitir um retorno ao positivismo exacerbado, às sentenças matemáticas, contrariando a essência do direito e a própria evolução social. Citando novamente Luiz Flávio Gomes, ilustramos nossa argumentação;
"A súmula vinculante é instrumento do Direito do segundo milênio. Não serve para guiar a Justiça do terceiro milênio. Institutos da era analógica não são úteis para a Justiça da era digital. É um atraso e grave retrocesso. Faz parte de uma ética tendencialmente autoritária, de uma sociedade militarizada, hierarquizada. A justiça de cada caso concreto não se obtém com métodos de cima para baixo. O contrário é que é o verdadeiro. O saber sistemático (generalizador) está dando lugar para o saber problemático (cada caso é um caso). Por isso é que devemos nos posicionar contra ela (9)".
Não poderíamos também deixar de tecer alguns comentários acerca da passagem do i. mestre Calmon de Passos, quando acena para uma súmula vinculante extremamente ampla, equiparada à lei formal e com força interpretativa autêntica, à similitude com as leis ditas interpretativas emitidas pelo Poder Legislativo.
Tal posição, concessa máxima vênia, é de uma inconstitucionalidade flagrante, por violadora do cânone da tripartição dos poderes, pois atribui função legiferante aos tribunais, que apesar de superiores, são membros do Poder Judiciário, a quem só cabe aplicar o direito à espécie e não a sua formulação. Tal posicionamento representa clara usurpação de poder, dogma inarredável erigido à rigidez máxima conforme art. 60, § 4°, inciso III, da Carta Magna.
Nessa mesma ordem de idéias, a independência do dos Poderes Constituídos foi erigida a princípio constitucional sensível, capaz de viabilizar o instrumento excepcional da intervenção federal, conforme artigo 35, inciso IV da CF 88.
Desse modo, não poderia a poder constituinte derivado (reformador), violar todo um sistema elaborado pelo constituinte originário instituindo um mecanismo atentatório ao livre convencimento motivado do órgão judicante. Também nesse ponto, encontramos respaldo nos textos de Luiz Flávio Gomes:
"A inconstitucionalidade da súmula vinculante é evidente. Toda interpretação, dada por um Tribunal a uma lei ordinária, por mais sábia que seja, jamais pode vincular os juízes das instâncias inferiores, que devem julgar com absoluta e total independência. A súmula vinculante viola a independência jurídica do juiz, isto é, sua independência interna (dentro da e frente à própria instituição a que pertence) (10)"sem grifos no original.
Por derradeiro, sem negar o valor fundamental da segurança jurídica, decantado em verso e em prosa, elencado no artigo 5° caput da CF 88, de proteção obrigatória pelo Estado, pugnamos pela proteção de outro valor também fundamental: a justiça das decisões, que somente será alcançada com o amadurecimento das discussões jurídicas que envolvem os mais diversos diplomas legislativos do arcabouço jurídico brasileiro.
A formação do Direito, como bem sabemos, tem origem nas controvérsias, que são sadias e nesse aspecto, as decisões dos tribunais superiores, por serem mais maduras e refletidas, emitidas por julgadores, em tese mais experimentados, fruto de um colegiado, vão se tornando bastante úteis àqueles que militam nos foros mais diversos País afora, não como força obrigatória, mas através da persuasão racional de julgadores e jurisdicionados.
No entanto, tais precedentes não guardam em si mesmos, a força da obrigatoriedade, enrijecedora de outras manifestações capazes de se adaptarem a outros contextos sociais ou mesmo a outras bases fáticas.
Dessa forma, do conflito entre a segurança jurídica como direito fundamental, individual ou coletivo, e o da justiça, como objetivo fundamental, insculpido no art. 3°, inciso I – ambos pertencentes ao gênero, princípios fundamentais – há que se buscar harmonizá-los, sob os auspícios da proporcionalidade, muito em voga nos dias de hoje, de maneira a construir interpretações que ora privilegiem um, ora outro, sem que contudo se negue efetividade a qualquer deles, num autêntico balanço de bens, regidos pelos sub-princípios da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
BIBLIOGRAFIA
1 – BONAVIDES, Paulo; "Curso de Direito Constitucional", 4ª Edição, Malheiros, São Paulo – SP, 1993;
2 – MAZZILLI, Hugo de Nigro; "A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo", 16ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2003;
3 – GOMES, Luiz Flávio
4 – PASSOS, José Joaquim Calmon de. Súmula vinculante. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 10, janeiro, 2002.
5 – POLLETI, Ronaldo Rebello de Britto; Súmula Vinculante.
6 – EVANDRO LINS E SILVA, Evandro; "Crime de Hermenêutica e Súmula Vinculante"
NOTAS
1
LINS E SILVA, Evandro; Art. Cit.2
GOMES, Luiz Flávio; art. Cit.3
Robert Alexy, apud Paulo Bonavides, ob. cit.4
GOMES, Luiz Flávio; art. Cit.5
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Súmula vinculante. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 10, janeiro, 2002.6
CALMON DE PASSOS; art. Cit.7
MENDES, Gilmar Ferreira; entendimento manifestado no julgamento do Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.° 382.298/RS, Informativo do STF n.° 347.8
POLLETI, Ronaldo Rebello de Britto; Súmula Vinculante.9
GOMES, Luiz Flávio; art. Cit.10
GOMES, Luiz Flávio; "A dimensão da magistratura no Estado de Direito, São Paulo, RT, 1997, p. 202 e ss".(*) NOTA DE ATUALIZAÇÃO
A PEC nº 29/2000, do Senado Federal (antiga PEC nº 96/1992, da Câmara dos Deputados) pode ter seu andamento acompanhado clicando aqui.