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Da incompetência dos juizados especiais fazendários

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Agenda 18/09/2017 às 14:00

Impossibilidade de se proferir sentença líquida (reflexo na fase executiva)

Nas ações condenatórias, pode ocorrer de o juiz ter dificuldade concreta na fixação do quantum debeatur, para fins de propiciar uma sentença líquida, o que acarretará a declaração de incompetência dos Juizados Especiais Fazendários, na medida em que não se estará diante de uma causa cível de menor complexidade (art. 98, I, da Constituição Federal).

Se o Juizado Especial, nessa circunstância, não declarar a sua incompetência acarretará: ou a deturpação do procedimento sumariíssimo, pela necessidade da prática de vários atos processuais na fase executiva (equivalente a uma justiça paralela, morosa); ou, respeitando-se  o procedimento sumariíssimo (célere, simples, informal, oral e econômico), haverá a violação dos princípios do efetivo contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), porquanto as partes não terão a oportunidade ou mesmo tempo hábil para exercer o seu direito.

É preciso, pois, bem entender o que seja sentença líquida no tocante aos Juizados Especiais Fazendários. O art. 38, parágrafo único, da Lei nº 9.099/1995 dispõe que: “Não se admitirá sentença condenatória por quantia ilíquida, ainda que genérico o pedido”. Tal dispositivo é inerente ao Sistema dos Juizados Especiais, diante das normas de integração (art. 1º da Lei nº 10.259/2001 e art. 27 da Lei nº 12.153/2009).

Os arts. 17 da Lei nº 10.259/2001 e 13 da Lei nº 12.153/2009 dispõem que nas obrigações de pagar quantia certa, após o trânsito em julgado da decisão, o pagamento deve ser providenciado por meio de requisição ou precatório. Isso significa que não há liquidação nos Juizados Especiais Fazendários.

A fase executiva, como se vê, resume-se à determinação do pagamento do valor devido. Obviamente que, se for necessário atualizar o valor, por força da decisão definitiva, o ente público deverá ter ciência prévia (antes da emissão da ordem de pagamento), em homenagem ao sagrado princípio do contraditório (art. 5º, LV, da Constituição Federal).

Nessa linha de raciocínio, a prolação de sentença líquida é obrigatória, sob pena de nulidade “por ferir expressa disposição de lei, além de contrariar o princípio da celeridade.”[48] Também é o entendimento de Joel Dias Figueira Júnior:

Dessa feita, a sentença será líquida, a fim de que possa ser executada imediatamente após a sua prolação, sem a necessidade de instauração de qualquer fase procedimental intermediária (liquidação), sob pena de nulidade.[49]

Logo, não se admite uma sucessão de atos processuais na fase executiva, sob pena de violar frontalmente o princípio da celeridade processual dos Juizados Especiais Fazendários.

Visto isto, o Enunciado nº 32 do FONAJEF merece um exame mais detido, visto que pode gerar entendimentos, a nosso juízo, equivocados. Diz o citado enunciado: “A decisão que contenha os parâmetros de liquidação atende ao disposto no art. 38, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95.” [50]

No nosso entendimento, sentença líquida é aquela que: a) determina expressamente o valor devido; b) “fica na dependência da elaboração de cálculos aritméticos simples.”[51]

Por cálculos aritméticos simples na fase executiva, deve-se entender como aqueles que dependam apenas da apuração da correção monetária e dos juros devidos, mas de modo algum podem compreender o exame de documentos relativos ao caso concreto (constantes ou não dos autos).

Esta circunstância pode ocorrer nas obrigações de trato sucessivo, cuja satisfação se dá por atos continuados. Nas ações de recálculo de vencimentos de servidores públicos, por exemplo, é muito comum o postulante requerer o pagamento das parcelas vencidas (diferenças), o que exigirá a especificação do valor total devido na sentença, provavelmente através da análise documental (holerites).

Nestes casos, não há como delegar a especificação do valor devido para a fase executiva, porquanto a sentença deve ser líquida e inexiste liquidação nos Juizados Especiais Fazendários. Anote-se que a pretensão de postergar a definição do valor devido para a fase executiva, significa que o juiz não está diante de uma causa de menor complexidade (art. 98, I, da Constituição Federal), pois se estivesse, já teria definido o valor na sentença.

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Também não há de se cogitar na determinação de pagamento administrativo das parcelas pretéritas, não só em razão do disposto no art. 169, § 1º, da Constituição Federal (dotação orçamentária), mas também em razão das Leis nº 10.259/2001 e 12.153/2009 determinarem o pagamento, após o trânsito em julgado, por meio de requisição ou precatório (princípio do devido processo legal).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação nº 0022195-68.2010.8.26.0053, da Comarca de São Paulo, Desembargador Relator Firmino Magnani Filho, da 5ª Câmara de Direito Público), reconheceu-se, por unanimidade, que os casos que dependam de liquidação há incompatibilidade com o rito dos Juizados Especiais. O caso concreto envolvia suposta irregularidade na conversão dos vencimentos para o padrão monetário da Unidade Real de Valor (URV). Destacamos o seguinte trecho:

No presente caso a situação se mostra até mais grave, pois caso a ação seja julgada procedente, via de consequência será necessário liquidar o título, já que inviável ao juízo sentenciante proferir sentença líquida de plano. Mas o procedimento de liquidação é incompatível com o Juizado Especial, seja ele Estadual, Federal ou da Fazenda Pública, pois este instituto não se comunga aos princípios reitores do juizado. Neste sentido a Lei nº 9.099/1995, que por expressa disposição legal se aplica subsidiariamente ao Juizado Especial Federal e ao Juizado Especial da Fazenda Pública, dispõe que não se admitirá sentença condenatória por quantia ilíquida, ainda que genérico o pedido (artigo 38, parágrafo único). Ora, nítida se torna a incompetência do Juizado Especial.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reafirmou este entendimento, por unanimidade, em causa que envolvia recálculo de quinquênios e da sexta parte, na Apelação nº 0038687-38.2010.8.26.0053, da Comarca de São Paulo, Desembargador Relator Reinado Miluzzi, da 6ª Câmara de Direito Público.

Neste cenário, não é possível exigir, ainda mais do réu ente público, que ofereça vários cálculos no processo de conhecimento. Também não é possível que o juiz estabeleça o parâmetro do cálculo antes da sentença, sob risco de prejulgamento. Daí, ou o juiz na ocasião da prolação da sentença elabora o cálculo das parcelas vencidas (observando-se os descontos legais, como a contribuição previdenciária, imposto de renda etc.) ou, se não tiver condições, deve declarar a incompetência dos Juizados Especiais Fazendários, pois não se estará diante de uma causa cível de menor complexidade (art. 98, I, da Constituição Federal).

A nosso juízo, a declaração da incompetência é de rigor, porquanto não se trata de cálculo simples, já que haverá necessidade de conferência de vários documentos (holerites, por exemplo) por longo tempo (observando-se a prescrição quinquenal, por exemplo), de detectar mensalmente gratificações que devam adentrar na base de cálculo de uma verba específica, por exemplo, de se apurar os descontos legais etc.

Veja-se que nestes casos não se estará diante de uma complexidade jurídica ou probatória, mas, sim, de uma complexidade concreta para se proferir uma sentença líquida.

Não resta dúvida de que aos Juizados Especiais Fazendários incumbem à elaboração de cálculos simples para fins de proferirem sentenças líquidas. O Enunciado nº 103 do FONAJEF menciona a respeito: “Sempre que julgar indispensável, a Turma Recursal, sem anular a sentença, baixará o processo em diligências para fins de produção de prova testemunhal, pericial ou elaboração de cálculos.”[52]

Alexandre Freitas Câmera descreve um caso concreto interessante, o qual entendemos que a incompetência dos Juizados Especiais se deu em virtude da complexidade de se proferir sentença líquida, ou seja, por ter demandado a elaboração de cálculo complexo. Vejamos o caso citado pelo doutrinador:

Permito-me, neste ponto, trazer à colação um exemplo extraído de minha experiência pessoal: fui advogado de um condomínio edilício em um processo em que certo condomínio edilício em um processo em que certo condômino afirmava que as cotas condominiais que dele eram cobradas estava sendo calculadas erradamente. Sustentava ele que o erro se devia ao fato de que a fração ideal que correspondia ao seu apartamento havia sido mal calculada, e que a fração oficialmente constante da matrícula de seu imóvel era maior do que na verdade deveria ser. Pedia, então, que se calculasse a fração ideal correta, para que se pudesse declarar (e este era, stricto sensu, seu pedido) seu direito de pagar a cota condominial no valor menor. Ao ser acolhido seu pedido, o valor da cota condominial por ele devida seria reduzida em menos de dois reais por mês. Estava-se, pois, diante de uma pequena causa. Não tendo havido conciliação, entendeu-se que o processo não poderia prosseguir, porque a determinação da verdadeira fração ideal de uma unidade autônoma em condomínio exigiria perícia complexa, a ser feita em todas as unidades do condomínio (afinal, a modificação da fração ideal de uma das unidades desequilibra a equação, já que a soma das frações ideais deve corresponder a um inteiro, e ao modificar uma das frações ideais, diminuindo-a, deverá ser feito um aumento em alguma outra fração ideal, de outra unidade, para que a equação permaneça equilibrada), o que não poderia ocorrer em um processo simplificado como o dos Juizados Especiais Cíveis.

Portanto, quando se estiver diante de pequenas causas de grande complexidade (assim consideradas em lei) ou de causas que, em tese, seriam de competência do Juizado Especial Cível mas que, na prática se revelam mais complexas do que o processo do Juizado Especial Cível é capaz de suportar, deve-se proferir sentença terminativa, extinguindo-se o processo sem resolução de mérito.[53]

Alexandre Freitas Câmara prevê outra impossibilidade da fixação do quantum debeatur, o que, a seu juízo, culminará na extinção do feito. Trata-se da hipótese da ausência de conhecimento de toda a extensão da obrigação na ocasião da prolação da sentença. Descreve o doutrinador:

No microssistema processual dos Juizados, como já se teve a oportunidade de ver, é possível formular-se pedido genérico (cf. supra, nº 10). Deve o juiz, pois, buscar elementos que lhe permitam determinar, na sentença de procedência do pedido do demandante, o quantum devido a ele pelo demandado.

Pode acontecer, porém, de se chegar à audiência de instrução e julgamento sem que se possa encontrar nos autos qualquer elemento para determinação do quantum debeatur. Pense, por exemplo, em uma demanda de reparação de danos sofridos em acidente de trânsito na qual o demandante tenha formulado pedido genérico por não ter sido possível ao demandante, no momento do ajuizamento da demanda, determinar a extensão total da obrigação (porque, e.g., está ele ainda se submetendo a tratamento médico ou fisioterápico, não lhe sendo possível, no momento do ajuizamento da demanda, determinar o custo total desse tratamento).  Nesse caso, como em qualquer outro em que se formule pedido genérico, fica o juiz do Juizado Especial Cível impedido de proferir condenação genérica. Deve o juiz, pois, buscar os elementos que permitam a formação de seu convencimento acerca do quantum debeatur. Questão relevante, contudo, é a de saber o que fazer quando, em casos como o do exemplo que acaba de ser figurado, a audiência de instrução e julgamento se realiza quando ainda não é possível determinar-se toda a extensão da obrigação... Nesse caso, a meu juízo, caberá ao juiz extinguir o processo sem resolução de mérito, na forma do art. 51, II, da Lei nº 9.099/95, uma vez que o processo terá se tornado mais complexo do que é suportável pelos Juizados Especiais Cíveis, fundamentando-se essa extinção no próprio art. 98, I, da Constituição da República, que limita a área de atuação dos Juizados Especiais Cíveis às causas de menor complexidade.[54]

Portanto, é preciso ter em mente que a competência absoluta determinada pelas Leis nº 10.259/2001 (art. 3º, § 3º) e 12.153/2009 (art. 2º, § 4º) não é um dogma, muito menos tem força para sobrepor os ditames do inc. I do art. 98 da CF/88 (causas cíveis de menor complexidade). Se não for possível a prolação de sentença líquida, o juiz deve reconhecer a incompetência do Juizado Especial Fazendário, uma vez que não se está diante de uma causa cível de menor complexidade.

Sobre o autor
Manoel José de Paula Filho

Procurador do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA FILHO, Manoel José. Da incompetência dos juizados especiais fazendários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5192, 18 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60514. Acesso em: 22 nov. 2024.

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