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Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva.

Re-pensando o conceito das ações afirmativas

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5. PROBLEMA HERMENÊUTICO E MUDANÇAS SOCIAIS

O estudo do problema hermenêutico é de fundamental importância para a tentativa de ampliar os horizontes do conceito de discriminações positivas. É por meio da hermenêutica que o indivíduo deve se compreender e, com isto, refutar um sistema perverso de dominação que tanto mal lhe proporciona. Mas para que atinja esta finalidade é preciso entender a hermenêutica como ontologia fundamental.

Antes de mais nada, entretanto, é mister deixar explícito que para nós, o Direito não se encerra na norma jurídica. Lado outro, a tarefa da hermenêutica não é e nem pode ser a explicitação do conteúdo de uma regra de conduta, mas a compreensão do fenômeno jurídico em sua inteireza (neste sentido: Streck, 1997, Pessoa, 1997, entre outros).

É certo que a manifestação mais explícita do Direito é a norma (Bobbio, 2003). Esta, pelas próprias características, pressupõe abstração e generalidade. Não é possível conceber a idéia da produção de uma lei em situação casuística. Sem a possibilidade de conhecer efetivamente a totalidade da situação concreta que pretende regular, que pode apresentar infinitas peculiaridades, em alguns casos a aplicação da norma jurídica abstratamente enunciada pode levar a uma situação de injustiça ou, em outras palavras, a uma violação do consenso. A situação concreta efetivamente vivenciada, em alguns momentos, transforma a aplicação da norma jurídica num contra-senso, numa violação. Este exemplo é diuturnamente repetido nas relações intersubjetivas de um país.

Várias teorias tem sido construídas ao longo do tempo objetivando conferir razoabilidade ao processo de interpretação do Direito [16]. Nenhuma delas, entretanto, parece atacar o problema nas suas causas primárias e elementares. A nosso sentir, o grande problema da compreensão do fenômeno jurídico reside no desconhecimento dos fundamentos hermenêuticos do Direito. Os operadores de nossa ciência ainda se servem da hermenêutica como técnica de interpretação de um enunciado (Bleicher, 1980). O máximo a que se consegue chegar por intermédio desta visão é a proclamação de um espírito da norma posta, cuja legitimidade nem sempre fica evidenciada. Este espírito é sempre invocado para corrigir as distorções que a aplicação de uma norma ao caso concreto podem provocar. Alguns chamam este processo de interpretação lógica (na verdade, uma técnica de interpretação que busca resultados lógicos, mas nem sempre legítimos ). Seria bastante? Entendemos que não.

A hermenêutica não é técnica, mas fenômeno de compreensão. Ela não é auxiliar do Direito, mas sua essência. Essencialmente o Direito é hermenêutica (cf. Tárrega, 2001, Streck,1997, Ferreira, 2004). É um problema fundamental na atualidade (Bleicher, 1980), ainda que o Direito não tenha experimentado os notáveis progressos vivenciados nas outras ciências que se ocupam do tema, como, por exemplo, a filosofia e a teologia.

O sentido da compreensão não se identifica com a práxis do trabalho exegético, servindo a ele. A verdadeira compreensão do sentido daquilo que nos é dado deve extrapolar uma mera exegese prática de afirmação literal do sentido, porquanto deve ocupar-se das próprias condições de possibilidade do horizonte do entendimento. Em outras palavras, debaixo da idéia da busca da clareza de um texto existem problemas muito mais profundos e sérios que não podem ser desprezados, sob pena de comprometimento absoluto da aplicação dos conhecimentos hauridos.

A transposição dos limites estreitos da exegese jurídica como prática só se revela necessária, entretanto, se for igualmente superada a idéia sobre o Direito fornecida pelo positivismo jurídico. Acabado dentro de uma norma positiva o fenômeno jurídico não precisa ser compreendido. Em outras palavras, o Direito como técnica-jurídica carece tão só de uma técnica-hermenêutica.

É preciso ter em mente, consoante afirmado, que o caráter dogmático da epistemologia jurídica tradicional tem suas raízes assentadas no pensamento da Idade Média (Bleicher, 1980). A exemplo da Alta Escolástica, também o Direito de hoje quer vincular todos as soluções de seus gritantes problemas a uma concepção sistemática fechada. A implementação dos dogmas jurídicos foi estabelecida com o propósito de conduzir a uma forma objetiva de interpretação dos textos normativos, que se resume na busca de afirmação do sentido literal de um enunciado, sem maiores considerações. O princípio hermenêutico da Escolástica (na verdade mera técnica-interpretativa) vem sido constantemente repetido até nossos dias no campo jurídico.

Ocorre que, desde a eclosão do Iluminismo, novos paradigmas de compreensão se tornaram possíveis graças ao avanço da hermenêutica. O pensamento de Kant descortinou possibilidades infinitas para a compreensão humana. Scheleiermacher, ao indicar a necessidade da subjetividade na interpretação, estabeleceu um marco que, no plano jurídico, jamais seria ultrapassado. As bases de uma nova hermenêutica foram ampliadas com a publicação, em 1927, de Ser e Tempo, de Heidegger (obra que o mundo jurídico recusa-se em conhecer). Para este extraordinário pensador a compreensão é questão existencial. A existência é marcada pela compreensão do ser. A hermenêutica não é mais considerada como uma arte de interpretar textos, mas uma tentativa de determinar a própria essência da interpretação da existência. Compreendida a existência, ela interpreta-se a si mesma no tempo e na história.

Na verdade, uma coisa só pode se manifestar dentro de uma totalidade já dada e toda a interpretação se move dentro de uma concepção prévia desta totalidade. A existência do ser-no-mundo (Dasein) projeta o horizonte de sua auto-compreensão. O mundo, portanto, encontra o seu fundamento no ser.

É certo que, consoante afirmado, a norma jurídica tem importância para o Direito. Esta constatação é inevitável e seu alcance não deve ser mitigado. Entretanto, a exata compreensão da norma só é possível através de uma ontologia hermenêutica do Direito como um todo. Somente aí será possível descortinar seus princípios fundantes e avaliar as conseqüências decorrentes de sua concreção.

Hodiernamente já se fala num processo de ampliação do círculo de intérpretes como sustentáculo do sistema pluralista do Direito ( Häberle:1997). É o salto que faltava para que a dogmática jurídica pudesse ser compreendida como poderoso instrumento de transformação social. Neste diapasão resulta perfeitamente possível e factível uma interpretação do Direito à luz dos interesses do indivíduo inserido em um contexto de marginalização social [17].

Para que isto ocorra, entretanto, parece necessária a atualização do discurso das pessoas inseridas em um contexto social desfavorável, que deve nortear-se para a redescoberta da individualidade e pelo rompimento definitivo com antigos dogmas que, longe de fornecer coerência ideológica ao pensamento, acabam aprisionando-o a aporias insustentáveis e inconciliáveis.

Pessoas excluídas e marginalizadas devem buscar estabelecer um modelo diferente daquele universalmente consagrado pelo capitalismo neo-liberal. Mas para que isto ocorra é fundamental que haja uma compreensão da natureza e dos fundamentos do Direito e de suas implicações neste cenário. As estratégias precisam urgentemente se ajustar à realidade e exatamente em função delas, instrumentos jurídicos devem ser potencializados e não simplesmente descartados. Em suma, a leitura ideológica do discurso do Direito, em quase todos os casos, poderá resgatar o consenso e o bem comum orientadores da produção da norma e, nesta medida, servir de instrumento para a concreção das conquistas das pessoas. Fazendo isto o individuo realiza, sem nenhuma dúvida, uma ontologia hermenêutica fundamental.

Dentro desta nova visão da hermenêutica e do Direito é possível determinar a inserção de medidas de discriminação positiva em cenários de produção e concreção do fenômeno jurídico e, com isto, alargar os horizontes de sua implementação.

Advirta-se, entretanto, que não são todas as medidas que podem ser consideradas de discriminação positiva. Para que isto aconteça é necessário que elas se revelem capazes de promover alguma mudança social.

É sabido, não existe sociedade estática. A estrutura social está em permanente construção. É possível defender, portanto, que todo fato social (e a manifestação do fenômeno jurídico é um fato social) provoque alguma forma de mudança na sociedade. Contudo, não é exatamente deste tipo de mudança que estamos nos referindo aqui. Na verdade, o que defendemos é que uma medida de discriminação positiva deve corresponder ao menos à possibilidade de alteração das bases jurídico-sociais da comunidade. Com isto não se quer dizer que seja necessário que esta alteração ocorra efetivamente. Absolutamente. Basta que ela se revele possível diante da implementação da medida.

Vamos imaginar um ator social residente numa pequena e distante comarca que se sinta perseguido pelas autoridades em razão de sua condição de homossexual. Ajuíza, em razão disto, uma medida judicial protetiva. Ao cabo do processo sua pretensão acaba sendo deferida. Sem dúvida que esta medida judicial é uma providência de discriminação positiva, já que, mesmo atingindo um único sujeito diretamente, é potencialmente capaz de provocar uma profunda mudança social, na medida que pode constituir-se em paradigma para que novas ações com o mesmo objetivo sejam adotadas.

Assim, entendemos que tanto são medidas de discriminação positiva a reserva de cotas para negros em universidades federais, por exemplo, como a decisão judicial que garanta o exercício de um direito individual cuja fruição não se mostrava possível em face de um contexto social desfavorável.

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6. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E HORIZONTES ONTOLÓGICOS DO DIREITO ( CONDIÇÃO EXISTENCIAL DO HOMEM E PAPEL DO ESTADO [18]):

Evidentemente, pelas mais variadas razões, a própria sociedade pode adotar práticas de discriminação positiva [19]. Com isto não se quer dizer, entretanto, que o sistema jurídico seja colocado à margem da deliberação particular. Medidas discriminatórias devem estar previstas expressamente em lei porque, do contrário, poderiam se revelar ofensivas ao comando constitucional da isonomia. Em outras palavras, para que uma empresa privada, por exemplo, pratique medidas de discriminação positiva é necessário que elas encontrem amparo no sistema jurídico.

Na realidade, a afirmação da legitimidade de toda sorte de medidas antidiscriminatórias só pode se assentar no sistema jurídico. É por isto que elas devem ser estudadas à luz dos princípios do Direito.

Em face da afirmação da legitimação de uma ontologia hermenêutica fundamental do Direito o fenômeno da discriminação positiva ganha foros de dignidade jamais vistos no mundo jurídico. Na verdade, muitas decisões judiciais que reconheceram medidas afirmadoras da dignidade humana realizaram uma ontologia que resultou, como não poderia deixar de ser, na implementação de verdadeiras medidas afirmativas.

Citemos um exemplo. Recente estudo da Anistia Internacional denunciou que existem no mundo cerca de setenta países que, com fundamento na legislação positiva, perseguem homossexuais e transexuais [20]. Pois bem, entendido o Direito como ontologia hermenêutica fundamental, mesmo nestes países, esta perseguição não se revelaria possível, porquanto haveria séria violação do princípio consensual informador da ontologia do processo de construção do direito positivo. Exatamente em razão desta violação, seria perfeitamente lícito a qualquer prejudicado aspirar a não concreção do Direito neste caso. Mas de que forma opera-se a possibilidade de insurreição à estes diplomas discriminatórios? Vejamos.

O Estado, acima de uma realidade político-jurídica, é uma realidade existencial que determina, ou pelo menos condiciona, a existência de seus integrantes. Pode trazer o bem ao indivíduo ou, ao revés, tolher-lhe as possibilidades de progresso. É através do Direito que o Estado apresenta-se mais ostensivamente. O fenômeno jurídico para ser compreendido em sua inteireza deve ser considerado em três momentos ontológicos distintos [21]. O primeiro deles ocorre quando é editada uma norma de conduta obrigatória. Neste momento ocorre a imposição do "direito inautêntico, utilitário, manipulável" (Maman, 2002:76). Esta pode ser considerada a ontologia da norma. O segundo momento aparece quando da situação de pretensão de concreção da norma posta. O indivíduo compreende o comando positivado e pode aderir ao enunciado ou não. Pratica, portanto, um fato positivo (caso resolva cumprir a norma) ou negativo, caso resolva resistir à efetivação da lei. A ontologia deste momento pode ser entendida como sendo do fato. No caso da ocorrência de um fato negativo, ou seja, quando o particular resiste à concreção do Direito, surge um conflito a ser solucionado pelo Estado, instaurando um terceiro momento ontológico do Direito, que chamamos de ontologia da aplicação do Direito, ou da decisão. Neste momento o Estado reveste-se de sua compleição humana, vale dizer, ele se efetiva entre homens existentes, através de um processo dialógico. Enquanto a ontologia dos momentos anteriores é calcada na busca do consenso, neste último ela se orienta pela busca do bem comum e da Justiça, universo valorativo objetivado por um processo dialético (direito autêntico).

A realização desta ontologia hermenêutica fundamental conduz à conclusão de que o Direito não pode ser considerado apenas uma superestrutura baseada em regras. É preciso, antes de mais nada, "a compreensão do fenômeno jurídico enquanto fato institucional, que deve ser apreendido a partir das práticas sociais vigentes entre os membros do grupo ou, em outras palavras, das regras em seu contexto de utilização" (Kozicki,1997).

De qualquer forma, mister se desenhar separadamente os diferentes contextos pelos quais se revela possível a compreensão do Direito através da ontologia.

6.1. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE PRODUÇÃO DA NORMA JURÍDICA

O Partido Comunista Português propôs, através da Direcção de Organização Regional da Guarda (DORG), mais de meia centena de propostas para inclusão no Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC) de 2000 tendentes à promoção do distrito de Guarda. As propostas que os comunistas consideram prioritárias para o distrito abrangem as acessibilidades, educação e ensino, equipamentos para corporações de bombeiros e instituições de interesse turístico, desportivo e social, indústria e emprego, cultura e ambiente. Referidas medidas foram sugeridas, segundo o próprio partido, "para fazer valer a necessidade de utilização do princípio da discriminação positiva". Ou seja, as medidas visam por fim ao isolamento da população por meio da construção de infra-estrutura necessária para o estímulo à "instalação de novas empresas e empresários que criem postos de trabalho com qualidade [22]".

Pelo que se vê, medidas destinadas a melhorar a qualidade de vida de pessoas que habitam um determinado local podem perfeitamente ser consideradas como instrumentos de discriminação positiva.

O processo de elaboração de uma norma jurídica, como vimos, pode ser revelado em sua natureza ontológica a partir da compreensão da espacialidade. A idéia que se formou e floresceu no constitucionalismo do Século XIX e se seguiu daí em diante, teve como fundamento a necessidade da criação de um espaço neutro, onde as virtudes e capacidades dos indivíduos pudessem se desenvolver livremente (Dray,1999, apud, Barbosa,2001). Esta neutralidade espacial, entretanto, somente pode ser concebida em termos teóricos, já que, na prática cotidiana, o que se observa é algo totalmente diferente. Na verdade, o que se percebe hodiernamente é a co-existência entre o espaço público e o privado na vida de uma comunidade. Ocorre que, consoante afirmado, o espaço privado no liberalismo, por sua própria natureza, não é inclusivo. De outra banda, a pretendida neutralidade do espaço público acaba, na prática, pondo-se à serviço da afirmação do modelo não inclusivo do espaço privado. A razão desta afirmação assenta-se no fato de que "el capilalismo destruye las formas de organización social y econômica diferenciadas que se oponen a su dinâmica, para imponer una forma única de organización social y de la producción" (Hernandez, 2002:01).

Em razão de medidas de discriminação positiva, entretanto, ocorre uma legítima ampliação do espaço público com o propósito de incluir as pessoas que o espaço privado acabou excluindo. O Estado de Direito, de maneira genérica e abstrata, só pode promover à esta inclusão por meio da produção legislativa. Mas para fazê-lo ele sempre esbarra na questão relacionada à desigualação formal de cidadãos, circunstância que acaba representando grave e injustificado óbice ao desenvolvimento de políticas de inclusão social.

Tal limitação só é possível, consoante afirmado, por aqueles que insistem em ter uma visão limitadora do Direito e se revelam incapazes de reconhecer nele qualquer possibilidade de transformação social. Na verdade, portanto, não se cuida de mudar normas ou princípios constitucionais para que o significado do Direito possa se impor. Basta que se transforme a própria visão de seus operadores. Esta transformação só é possível por meio da hermenêutica.

"O jurídico é alcançado pelo homem existente (Dasein) em sua constituição fundamental, isto é, dentro de sua estrutura existenciária e que se dá o nome de compreensão, a qual se desdobra nos fenômenos sucessivos da explicitação (Auslegen) e interpretação" (Maman, 2002: 72) Ou seja, quando edita a norma jurídica, o Estado reconhece, genérica e abstratamente, o modelo consensual de homem justo ideal.

A eclosão de regras de conduta (lei) é fenômeno de previsão e pode ser desvendado em sua natureza ontológica. Em outras palavras, enquanto a lei posta é ôntica, não se pode esquecer que ela foi produto de uma ontologia fundadora, que deve ser resgatada para que possa ser convenientemente compreendida. Disto resulta que o Direito não se encerra na compreensão literal de uma norma, uma vez que esta também não se confinar aos seus aspectos ônticos.

O processo de eclosão das normas do Direito, consoante se afirmou, pode representar uma abertura do espaço público a indivíduos excluídos socialmente. É perfeitamente possível conceber o Direito como instrumento de inclusão social. Para tanto, é necessário que ele se preste a atender demandas específicas de pessoas inseridas em situação de marginalidade e, para que isto ocorra, é necessária a participação dos oprimidos na vida da sociedade política. E a história do movimento social, ao menos no Brasil, está a indicar que esta participação cresce vigorosamente a cada dia (Tomazi, 2000).

Na verdade é perfeitamente lícito supor que a atuação dos movimentos sociais no plano jurídico está intimamente ligada à formulação de pretensões de atendimento a demandas sociais. Em outras palavras, o desejo mais acentuado de uma organização de pessoas é a edição de medidas de discriminação positiva. Referidos movimentos podem ser vistos desde a Antiguidade (escravos, religiosos e mercadores). Também nas Idades Média, Moderna e Contemporânea os movimentos sociais de camponeses, operários, etc. podem ser sentidos no seio da sociedade. Na fase atual do capitalismo industrial monopolista que se multiplicam os movimentos ecológicos, pacifistas, feministas, etc" (Tomazi,2001:222).

Foi a partir dos anos 30 que começaram a surgir associações de trabalhadores no Brasil. Normalmente, no seio da massa, sob a atuação de líderes carismáticos, agentes de educação popular e religiosos, " formaram-se as comunidades, associações e movimentos populares de todo tipo" (Boff, 2004:46). Referidos movimentos, em um determinado momento histórico, passaram a privilegiar uma estratégia de participação nas decisões políticas do país, a partir da vontade de "modificar a realidade circundante e de gestar as sementes de um outro tipo de sociedade, mais participativa, popular e democrática" (Boff, 2004:46). Exatamente neste momento aquelas associações se transformaram em movimentos sociais.

A organização das massas e a explicitação de suas demandas têm influenciado cada vez mais as decisões políticas do país, materializadas na edição de leis.

A ontologia do processo de eclosão das normas jurídicas está, portanto, cada vez mais orientada na conformidade dos interesses de atores sociais. São as pessoas, titulares afinal do Poder Constituinte Originário, que reclamam participação nas decisões políticas do Estado. Elas pretendem ser ouvidas e atendidas em suas pretensões. O critério da maioria já não pode mais legitimar as leis do Estado, uma vez que o atendimento às demandas de indivíduos inseridos num contexto social desfavorável é extremamente necessário para a manutenção sadia do sistema. Afinal, são exatamente os excluídos que se encontram em situação de conflituosidade em relação ao Estado. A pretensão de por fim a este conflito é fenômeno que deve orientar a ontologia de produção das leis. O consenso fundamentador da atividade legislativa deve se legitimar, portanto, no atendimento de demandas que impliquem em reduzir situações de conflito no corpo social e isto só será possível caso se lance mão de medidas de discriminação positiva.

6.2. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE CONCREÇÃO DO DIREITO PELO CIDADÃO (DIREITO DE RESISTÊNCIA)

O Direito é instrumento de controle social. A despeito de insinuações em contrário, pode-se dizer que todo controle deve "oferecer ao indivíduo alternativas para as ações que visem satisfazer as suas necessidades" (Souto, 2003:176). A norma jurídica deve sempre buscar, ao definir situações, entregar aos indivíduos instrumentos que permitam um ajustamento maior aos meios sociais, porquanto é instância pacificadora do estado de tensão resultante do próprio processo associativo, que pressupõe do indivíduo a outorga de parcela de sua liberdade para a constituição do grupo.

Dentro desta perspectiva, supõe-se inicialmente que a norma não deva pretender regular na inteireza todos os fatos sociais. Absolutamente esta não deve ser sua tarefa. O fim buscado pela norma deve ser o de estabelecer parâmetros aceitáveis de atuação do indivíduo perante o grupo. Referidos parâmetros traduzem expectativas de comportamento que, espera-se, sejam flexíveis por natureza, na medida que a rigidez só faria aumentar "a tensão entre o individual e o coletivo" (Souto, 2003: 177). Em razão desta característica da norma, é latente a idéia de que é absolutamente necessária a aceitação, em determinados casos, de um comportamento divergente, que não pode ser previsto pela lei, mas que, nem por isso, se revela atentatório aos interesses coletivos disciplinados. Em outras palavras, se é fato que a norma pretende ser uma instância de controle social, não menos certo que suas limitações intrínsecas determinam a necessidade de que, na aplicação ao caso concreto, ela apresente certa dose de maleabilidade. Do contrário sucumbiria no propósito de instância pacificadora.

Além disto, consoante afirmado no início deste trabalho, não são somente os indivíduos inseridos em um movimento social que podem ser sujeitos de medidas de discriminação positiva. Ora, até mesmo uma única pessoa pode ser beneficiária delas. Acentuar a necessidade do aspecto grupal das medidas antidiscriminatórias seria o mesmo que exigir que os destinatários estivessem organizados em torno de uma ideologia comum com um projeto delineado. Com isto, entretanto, ainda permaneceriam excluídos indivíduos sem capacidade de organização. Ocorre que são exatamente estas pessoas as que mais precisam de medidas de discriminação positiva. É por isto que se propõe um resgate da subjetividade e da individualidade do ator social, muito embora o caráter grupal não seja descurado por completo, na medida que a possibilidade de mudança social é determinante para a caracterização do instituto.

O indivíduo é quem deve suportar, na situação concreta, os efeitos de uma norma positiva. Ele pode ajustar seu comportamento à regra ou, do contrário, resistir a sua efetivação. Quando surge um fato social sujeito às regras do Direito, portanto, um novo momento ontológico é fundado. Trata-se de uma abertura à previsão, de estabelecimento de possibilidades. Ocorre que, consoante afirmado, este momento está afastado daquela primeira ontologia que resultou na compreensão da norma. Dentro da perspectiva do Direito este segundo momento é muito mais importante que o primeiro. É através dele que o jurídico deixa de ser inautêntico e pode ser autêntico. É somente neste segundo momento que o Direito poderá tornar-se concreto.

A compreensão do caráter institucional de nossa ciência exige a consideração de um ponto de vista interno. "A postura do usuário em relação ao sistema pode assumir mais de um aspecto" (Kozicki,1997). Desta forma, o indivíduo pode tentar legitimamente impedir os efeitos concretos que uma formulação genérica prescreveu.

Sustenta Wittgenstein [23] que os jogos de linguagem (e os enunciados jurídicos, para ele, são jogos de linguagem) fundamentam-se numa epistemologia eminentemente antropológica. Em outras palavras, é preciso um consenso entre as pessoas que se comunicam sobre as regras do jogo para que a compreensão se torne minimamente possível. A linguagem é mera atividade, ou forma de vida, que supõe consenso informador como pressuposto de qualquer compreensão.

Ora, se a compreensão do conteúdo do Direito se abre a um consenso lingüístico, evidentemente que a participação do cidadão no processo é por demais relevante. Esta participação do ator social no horizonte do Direito constitui uma ação hermenêutica. Na verdade, o individuo realiza uma ontologia hermenêutica fundamental do fenômeno jurídico.

O resultado desta ontologia vai determinar a ação do sujeito. Tanto ele pode aderir ao enunciado legal e pautar seu comportamento na conformidade da regra abstrata, como pode reconhecer a inaplicabilidade da regra à sua situação específica. No primeiro caso o Direito se concretiza. No segundo estabelece-se um conflito que deverá ser mediado por nova ontologia, agora desencadeada pelo Estado.

O Direito não deve ser considerado como mero processo de subsunção de uma lei a uma situação concreta. Ele não se esgota aí. Em outras palavras, a objetividade racional da fórmula de adequação lógico-dedutiva não pode garantir, por si mesma, a solução substancialmente justa para um caso concreto. A busca da justiça como instância teleológica do sujeito do fenômeno jurídico é horizonte que somente se efetiva pela ontologia hermenêutica fundamental.

A resistência não é modalidade de desobediência. Ao contrário, é possibilidade conferida a todos de demonstração de que a situação abstrata descrita pela lei positiva não corresponde ao caso concreto vivenciado. Esta possibilidade decorre da realização da ontologia hermenêutica pelo indivíduo. Ele entende que a norma abstrata ao se concretizar, afasta-se de seus princípios fundantes e, portanto, não pode ter o condão de promover a justiça que se almejou quando do processo de construção da norma. Algumas peculiaridades fugiram do alcance da previsão do legislador e, por isto, ela não tem cabimento no caso.

O dissenso - o termo é de Bobbio (2003) - exercido dentro dos limites estabelecidos pelas regras jurídicas é salutar e assim deve ser considerado. É exatamente a resistência do cidadão que será capaz de estabelecer o caráter dialético da aplicação da norma jurídica. O Juiz deve buscar uma posição de síntese e, para que isto ocorra, é necessário ampliar os horizontes da participação individual. A tipologia da resistência determina a possibilidade de explicitação de novos parâmetros axiológicos informadores de uma situação de consenso, que compete ao Direito resgatar. É neste sentido que deve ser utilizada.

Na verdade, pode-se dizer que existe uma fase prévia à concreção do Direito, que supõe a adesão do indivíduo a um comando normativo, o que nem sempre acontece, uma vez que "os empobrecidos do mundo têm perversidades a denunciar em nome de verdades e causas pelas quais vale lutar; caso contrário a vida não tem um mínimo de sentido, nem valem os sacrifícios pagos para preservar a dignidade básica de comer pelo menos uma vez ao dia, de morar com os filhos pouco melhor do que os animais, de participar, pela palavra e pela prática, da sociedade da qual são marginalizados ou excluídos." (Boff, 2004:17).

A ontologia hermenêutica fundamental que pode resultar numa resistência legítima, por si mesma, já é importante e fundamental medida de discriminação positiva. Ainda que, num primeiro momento seja dirigida indiscriminadamente a toda a sociedade, na verdade só ela pode orientar o discurso de determinados resistentes inseridos em uma situação de marginalização social e é exatamente aí que se converte em medida discriminatória positiva.

Para esclarecer o que se foi afirmado, é necessário citar um exemplo. Imagine-se que trabalhadores rurais ocupem uma área durante alguns anos, mas ainda não tenham direito ao usucapião. Algumas delas, entretanto, cederam suas posses a especuladores. Neste momento é editada uma norma jurídica diminuindo os prazos para usucapião de áreas cultivadas pelos próprios posseiros. Evidentemente que a ontologia hermenêutica do especulador não é a mesma dos trabalhadores rurais. A concreção do Direito, neste caso, indica a necessidade de uma discriminação positiva, uma vez que somente os primeiros serão contemplados com a usucapião.

6.3. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE CONCREÇÃO DO DIREITO PELO JUIZ

Consoante afirmado, pode acontecer que o sujeito, ao realizar sua ontologia hermenêutica em relação a uma norma positiva, entenda que ela não deva ser aplicada ao seu caso concreto e específico, quer porque revelou-se absolutamente injusta para regular a situação efetiva, quer porque outras possibilidades se lhe apresentaram como mais eficazes para sua existência. Neste caso não há concreção do Direito e surge a necessidade do desencadeamento de um novo momento ontológico hermenêutico tendente a efetivá-lo.

Este último momento ontológico é realizado pelo juiz, a quem compete tornar concreto o Direito em face de uma situação controvertida.

Alguns juízes, entretanto, não têm compreendido bem os seus papéis. Isto ocorre, segundo aponta Lênio Streck, apoiado em Ferraz Jr., porque o sentido comum teórico, que é o conhecimento que se encontra na base de todos os discursos científicos e epistemológicos do Direito, se encontra impregnado de uma espécie de habitus (Bourdieu) ou seja, um conjunto de "crenças e práticas que, mascaradas pela communis opinio doctorum" (1997:422), propiciam a eles uma apreensão acrítica do significado de expressões, de categorias e da própria atividade judiciária, banalizada e rotinizada exatamente em função desta errônea compreensão do fenômeno jurídico e de sua própria inserção no processo.

Exatamente em razão desta rotinização "os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes, suplicante e suplicado. Neste sentido, pode-se dizer que existe uma espécie de coisificação das relações jurídicas" (Streck, 1997:420).

Na verdade, a investigação que os juízes tem feito do fenômeno jurídico se resume ao ôntico, isto é, a maneira pela qual o Direito se apresenta de maneira sensível e palpável. Não há preocupação em descobrir o verdadeiro ser do fenômeno. Entretanto, "a generalidade da pesquisa ontológica dá-lhe (ao direito) um sentido mais amplo do que as investigações ônticas das ciências positivas, pois propõe indagar a condição do ser e não o significado do ente" (Maman,2003:71).

A visão da grande maioria dos juízes em relação ao Direito, portanto, parece absolutamente insuficiente, na medida que fecha todas as portas para uma transformação social. Neste cenário é difícil entender como medidas de discriminação positiva podem ter o alcance pretendido pela sociedade. Em outras palavras, a garantia de direitos através da ontologia da produção legislativa pode sucumbir diante do descomprometimento do julgador com um modelo transoformador.

Na verdade, como momento ontológico, não fica o juiz, quando da concreção do Direito, adstrito a nenhum dado ôntico específico. Ele deve considerar as várias possibilidades existentes. Em primeiro lugar buscará o resgate da ontologia da norma e identificará a situação de consenso inspiradora. Sua finalidade será de pacificação. Nesta primeira fase, portanto, o juiz não busca necessariamente a justiça, mas a paz social, instância que melhor exprime o consenso. Somente no caso desta pacificação se revelar impossível na situação específica o juiz deve tornar concreto o Direito através da afirmação axiológica da justiça.

A reconstrução dos momentos ontológicos precedentes, feita pelo juiz quando da concreção do Direito, se orienta, num primeiro momento, pela observação dos dados ônticos mais sensíveis: a lei que emergiu da primeira etapa e o fato que surgiu da segunda etapa, tendo como o norte hermenêutico seus próprios valores, que não são singelas emanações subjetivas, mas uma axiologia fundada no processo histórico de realização de uma síntese a partir do desenvolvimento de um movimento dialético. Em outras palavras, a ontologia de concreção do Direito realizada pelo juiz é a reconstrução da ontologia da norma na busca do consenso, exprimida pela possibilidade de pacificação, bem como, se necessário, a reconstrução da ontologia do fato, com a proclamação da solução justa para uma situação que não pode ser pacificada.

A concreção do Direito, portanto, é também um momento ontológico-hermenêutico. Não se trata de interpretar o sentido de uma lei, mas as possibilidades desta lei de fazer justiça ao caso concreto. Este deve ser o objetivo do aplicador que, para conseguí-lo tem que compreender a si mesmo.

Somente mediante a observação das possíveis conseqüências da concreção do Direito em relação ao sujeito pode-se atingir o "direito autêntico". E isto se dá com o escutar do pulsar do indivíduo na sociedade. É por isto que o cidadão tem o poder de resistir (para Ihering, dever de resistir). Somente após escutar todos os interessados e analisar os argumentos justificadores da resistência, bem como outros dados ônticos levantados, poderá o juiz orientar sua ação hermenêutica. A tarefa do julgador, portanto, não pode ser compreendida como a mera adequação de um fato à uma norma. Absolutamente não. O juiz deve pacificar conflitos e dizer a justiça.

Na ontologia de aplicação do Direito não cabe simplesmente a pergunta: o que diz a lei? Existem outros dados para se considerar. Existem outros entes. O fato e o valor, conforme diz Miguel Reale (1960), são entes que devem ser apreciados neste momento. Mas não só eles. Ainda existem outros. A expectativa do juiz em editar um enunciado justo, que é momento ontológico, "se abre a inúmeras possibilidades além das mencionadas, no sentido ôntico; possibilidades riquíssimas do ser humano" (Heidegger 1981:14). O juiz deve considerar a situação em toda a sua inteireza e não pode ficar limitado na consecução deste processo. Seria um contra-senso. É o mesmo que imaginar que a lei pudesse regular toda a pletora de situações concretas de maneira homogênea. Sabemos todos que isto não é possível e nem mesmo desejável.

Mas então, em determinados casos, é lícito ao juiz decidir contra a lei, como apregoam os adeptos do direito alternativo? Para nós isto jamais acontecerá. A lei, criada em um momento ontológico, se apresenta onticamente no mundo impregnada de sua essência vital, que pode ser traduzida pelo consenso e o bem comum. O juiz, no momento da aplicação do Direito, deve reconstruir o fenômeno ontológico da edição da lei e, nesta operação, resgatar seus fundamentos consensuais e teleológicos. Se eles não se mostrarem presentes na situação efetiva esta lei não pode se ajustar ao fato concreto e, então, o julgador deverá suprir eventual lacuna. Não agirá contra a lei. Ao contrário, simplesmente declarará que ela não pode ter aplicação ao caso concreto porque, específica e ocasionalmente, não conduz à uma solução justa. Ele estará agindo em favor da lei, que foi criada exatamente para orientar um processo de construção de uma solução justa.

Quando torna o Direito concreto o juiz deve utilizar-se de seus valores, de suas impressões e indicar suas escolhas. Referido processo, entretanto, não conduz a um subjetivismo, consoante em princípio seria lícito supor. A necessidade de reconstrução dos momentos ontológicos precedentes e a possibilidade concreta conferida aos resistentes de manifestar as suas razões determinam, através da síntese dialética, a verificabilidade objetiva da axiologia deduzida. Em outros termos, é pressuposto necessário para a ontologia de distribuição da justiça a participação do interessado. Esta participação, para ser efetiva, não pode ser considerada dentro de um contexto puramente formal, mas essencialmente substancial. A participação, portanto, no horizonte de concreção do Direito, é pressuposto de eficácia política do ato [24] e, desta forma, é exatamente ela que afasta a pura subjetividade do julgador e permite a efetivação de uma ontologia hermenêutica fundamental do fenômeno jurídico.

Sobre os autores
Luiz Alexandre Cruz Ferreira

professor da Unicastelo, mestrando em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (SP)

Alexandre Mendes Crus Ferreira

bacharelando em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz; FERREIRA, Alexandre Mendes Crus. Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva.: Re-pensando o conceito das ações afirmativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 528, 17 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6054. Acesso em: 23 nov. 2024.

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