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Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva.

Re-pensando o conceito das ações afirmativas

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cidadão participa de maneira decisiva de todos os momentos ontológicos do Direito. No processo de formação da norma atua como propulsor de pressão social. Nesta fase ele reclama a revitalização do consenso inspirador e denuncia a leitura equivocada dos institutos e princípios que lhes são caros, deflagrando um momento capaz de redundar na produção de um enunciado genérico atento às suas reivindicações. Lado outro, o indivíduo deve compreender o Direito à luz de suas necessidades, produzindo uma crítica ideológica do modelo. A partir daí, deve resistir à concreção de um fenômeno jurídico capaz de gerar uma injustiça a partir de uma ontologia hermenêutica. Finalmente, atua também como co-partícipe no processo de reconstrução dos momentos ontológicos anteriores, feito pelo juiz na situação conflituosa concreta, uma vez que é exatamente a partir de suas considerações que o Estado vai poder atuar. Os modernos sistemas processuais têm permitido, inclusive, instrumentos de defesa coletiva que garantem a participação de determinado grupo ou categoria de pessoas nesta última ontologia hermenêutica.

Em razão do que se expôs, pode-se deduzir que o conceito tradicionalmente conferido às medidas de discriminação positiva resulta insuficiente para a compreensão do instituto, assim como limitador de suas potencialidades. Desta forma, é premente a necessidade de afirmação de novos parâmetros conceituais a partir das raízes do fenômeno jurídico, que estão calcadas no consenso social e teleologicamente informadas pelo bem comum. Neste diapasão, somente por meio de uma reconstrução da individualidade se pode atingir a essência das medidas antidiscriminatórias e entendê-las como providências tendentes à reapropriação do espaço público, usurpado pelo sistema capitalista de produção. Nesta medida, a compreensão do fenômeno em estudo somente se revela factível à luz da constatação de que o sistema social vigente é o grande propulsor das desigualdades sociais, cuja desconstrução somente se revelará possível a partir de uma ontologia hermenêutica do fenômeno jurídico.


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NOTAS

1 Os semitas, por exemplo, não carecem, em regra, de nenhuma proteção econômica governamental. Com relação a eles, portanto, as medidas de discriminação positiva não devem visar a garantia de ascensão social.

2 No ano de 2002, por exemplo, foi proclamada a Declaração de Madri no Congresso Europeu sobre incapacidade (realizado entre 20 a 23 de março). O segundo artigo do referido documento assinala que: "La Unión Europea, al igual que otras muchas otras regiones del mundo, há recurrido um largo camino durante lãs últimas décadas desde uma concepción paternalista sobre lãs personas com discapacidad hasta outra que lês faculta a decidir sobre sus proprias vidas. Los viejos enfoques baseados em grand medida em la compasión y em la indefensión se consideran inaceptables. La ación está girando desde el énfasis em la rehabilitación Del individuo hacia uma concepcón global que aboga por la modificación de la sociedad para incluir y acomodar lãs necessidades de todos los ciudadanos, incluidas las personas con discapacidad reclaman la igualdad de oportunidades y de acceso a los recursos sociales, como, por ejemplo, el trabajo, uma educación integradora, el acesso a las nuovas tecnologias, los serviços sociales y sanitarios, el deporte y actividades de ócio, y a productos, bienes y servicios de consumo."

3 Não é nossa intenção neste trabalho delinear o desenvolvimento histórico do instituto. Para quem desejar se aprofundar na historicidade da discriminação positiva, indicamos a insuperável obra de Barbosa Gomes (2001).

4 O termo "ação afirmativa" é preferido pela tradição americana enquanto que o "discriminação positiva" é mais usado na Europa (Gomes, 2001).

5 Esta visão é absolutamente compatível com a teoria sociológica do culturalismo, adotada, entre outros, por Alain Touraine e Claus Offe.

6Retórica, Livro II.

7 Interessantes estudos sobre sentimento e ética foram feitos por Souto ( 2004 ) e Boff (2003).

8 Advirta-se que a conclusão acima não está relacionada diretamente ao jusnaturalismo. Na verdade, o que queremos dizer é que os princípios e fundamentos do fenômeno jurídico já se apresentaram historicamente e, exatamente por isto, não podem mais ser modificados.

9 Na verdade, idéias como a teoria do Poder Constituinte Originário e do direito de revolução, outra coisa não são do que a afirmação da possibilidade sempre presente do Direito romper espúrias ligações com a classe dominante e se por à serviço do povo, já que é nele que reside seu fundamento último.

10 Um mandado de segurança, por exemplo, deferido a um homossexual relacionado ao direito de herança de um companheiro falecido é medida individual de discriminação positiva.

11 Expressão utilizada no sentido do que funda, do que constituí a base e a premissa do fenômeno jurídico.

12"Personas que nadie há elegido lhegan a tener más autoridad que los mismo gobiernos democraticamente elegidos, por ser depositarios de la ciência y representantes de la razión. El experto es sacralizado como el sacerdote de la nueva religión y, como todo sacerdote, pretende de lãs masas fé em sus oráculos" (Girardi, 2002: 133).

13 Para Lenio Luiz Streck (1997:427): "A modernidade propôs uma dupla possibilidade para a humanidade. Por uma delas, a realização da razão seria o desenvolvimento universal de um sistema social que concretizasse o princípio da igualdade formal, através da crescente redução das desigualdades reais no mundo moderno. Tal não aconteceu. Ao contrário, o que ocorreu foi a pós modernidade aprofundar a irracionalidade, aumentar as diferenças e consolidar relações cada vez mais alienadas. Foi isto o que os homens modernos fizeram de sua história. A razão foi assaltada no sentido de ser despida de sua vocação humanizadora."

14 Não é preciso ir muito longe para descobrir este novo paradigma científico. Basta abrir um tratado de física para se confrontar com um discurso de relatividade de massa, de espaço-tempo e de probabilidade (física quântica ). Hipóteses são edificadas com base em teorias filosóficas para explicar formas energéticas cada vez mais sutis. Partículas elementares são cada vez menores e seu comportamento individual se revela "anômalo como o de indivíduos humanos singulares e as regularidades observáveis se referem antes a conjuntos massificados de numerosas partículas sub-atômicas que formam, antes um mundo de possibilidades e tendências e não de fenômenos e coisas" (cf. Souto, 1997: 27).

15 Substancialmente considerado o Direito não pode descurar-se de seu princípio consensual informador e da motivação teleológica ao bem comum. Despido destas características o fenômeno jurídico apresenta-se absolutamente desfigurado e, portanto, despido de legitimidade.

16 Não seria possível, neste trabalho, elencar o pensamento das várias correntes da hermenêutica jurídica. Para quem desejar se aprofundar no tema deve ser consultada a obra de Carlos Maximiliano ( 1941 ).

17 Esta afirmação não deve causar estranheza já que durante os últimos Séculos o Direito foi sempre interpretado na conformidade dos interesses da classe dominante.

18 Já tivemos oportunidade de desenvolver as linhas gerais do raciocínio a seguir no artigo Direito e ontologia hermenêutica fundamental:alguns paradigmas para a compreensão do fenômeno jurídico, ainda não publicado, bem como no Justiça, ethos e ontologia hermenêutica fundamental do direito: o amor como enunciado-dirigente axiológico, igualmente não publicado até o presente momento.

19 Em 1993, por exemplo, a PUC-Rio atribuiu a estudantes negros pobres bolsas de estudo de 100%, reclassificando-os em vagas abandonas por outros candidatos.

20 Cf. http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2004/06/28/ult32u8597.jhtm, acesso em 29 de junho de 2004.

21 Seguindo as pegadas de Solon Spanoudis na apresentação da tradução de um texto de Heidegger (1981), necessário um esclarecimento preliminar acerca das expressões ôntico e ontológico, existenciário e existencial. Fazemos isto com o escopo de superar a singela idéia hoje presente no Direito, herdada do positivismo jurídico, que nossa ciência é um dado (fenômeno ôntico portanto), já que totalmente identificado com a lei positiva. Nossa argumentação é de que o Direito é fenômeno existencial e por isto sua compreensão só será possível por meio de uma ontologia hermenêutica. Pois bem, a palavra existência não pode ser traduzida por realidade, como costumeiramente se faz. Existência vem do verbo ek-sistere; ek sistência é algo que emerge, se manifesta, se desvela. Tudo o que é percebido, entendido, conhecido de imediato, é ôntico. A lei positiva é ôntica. São dados necessários para a descoberta do que se manifesta, do que se descortina, vale dizer, da existência. Pode-se dizer, a partir daí, que o Direito também é ôntico? Entendemos que não (para nós, evidentemente, o Direito não se resume na norma positiva). Heidegger parte da vida cotidiana para mostrar os fenômenos ônticos e seus aspectos ontológicos. Uma das características fundamentais do ser humano é a perspectiva "futural" (Heidegger, 1981:12). O homem sente-se sempre impelido a ir adiante, a prever a eclosão de possibilidades. Por exemplo, a partir da ciência de que Jarbas matou Jonas, o homem passa imediatamente a especular sobre o futuro de Jarbas. Será condenado? Será preso? Agiu bem? Foi movido por ciúmes? Cumprirá a pena? Será absolvido? É inocente? O prever, neste exemplo, "é o ontológico, aquilo que possibilita as diversas maneiras de se prever o resultado; é uma característica primordial, fundamental do ser humano, uma existenciália, entre outras e não se confunde com causa" (Heidegger, 1981:13). Mas a partir de que dados o homem pode prever o que acontecerá com Jarbas? A lei positiva é um dado ( embora não seja o único ), na medida que ela prevê uma sanção para aqueles que cometem um homicídio ou mesmo reconhece causas que excluem o crime; a reação das pessoas contra (ou mesmo a favor) o comportamento de Jarbas, observáveis sistematicamente, também pode servir de parâmetro possibilitador de uma previsão; a condição econômica de Jarbas, se ele é rico, se ele é pobre, se pode constituir um bom advogado ou não, enfim, também isto tudo influirá na previsão sobre seu futuro. Todos estes dados correspondem ao ôntico ou existenciário.

22 A totalidade das medidas apresentadas pelos comunistas estão em http://freipedro.pt/tb/030200/polit4.htm acesso em 04/06/2004.

23 Esta é a posição que Wittgenstein sustenta na segunda fase de seu trabalho, por ocasião da publicação das Investigações Filosóficas.

24 Já tivemos oportunidade de estudar o direito de defesa como pressuposto de eficácia política do ato administrativo. No referido estudo se advoga a tese de que " o administrado tem o direito de ser ouvido antes da tomada de uma decisão pela administração, sempre que tenha que suportar os efeitos resultantes deste ato. A necessidade desta prévia audiência tem dupla finalidade, de um lado é garantia do cidadão e de outro é recomendada pela boa administração" (Ferreira, 1997: 18).

Sobre os autores
Luiz Alexandre Cruz Ferreira

professor da Unicastelo, mestrando em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (SP)

Alexandre Mendes Crus Ferreira

bacharelando em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz; FERREIRA, Alexandre Mendes Crus. Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva.: Re-pensando o conceito das ações afirmativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 528, 17 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6054. Acesso em: 23 nov. 2024.

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