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Aplicação da teoria do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro

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Agenda 21/11/2017 às 17:36

3. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

O Código Civil de 2002, ao tratar das hipóteses que podem ensejar a extinção do contrato, prevê o direito de resolução contratual em casos de inadimplemento, nos termos do artigo 475.

A regra supracitada traduz um direito potestativo do contratante lesado pelo inadimplemento requerer a resolução contratual. Ocorre que, existem situações nas quais o exercício do direito subjetivo de requerer a resolução do contrato pode ser questionado, diante do adimplemento substancial do contrato por parte do devedor. Sobre o tema, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 399) posicionam-se da seguinte forma:

 

O inadimplemento mínimo é uma das formas de controle da boa-fé sobre a atuação de direitos subjetivos. Atualmente, é possível questionar a faculdade do exercício do direito potestativo à resolução contratual pelo credor, em situações caracterizadas pelo cumprimento de substancial parcela pelo devedor, mas em que, todavia, não tenha suportado adimplir uma pequena parte da obrigação.

 

Nesse contexto, a teoria do adimplemento substancial vem ganhando cada vez mais relevância no âmbito do Direito contratual brasileiro.

Segundo José Roberto de Castro Neves (2014, p. 311), o “conceito de adimplemento substancial, de Origem no Direito anglo-saxão, foi contemplado no Código Civil italiano de 1942”.

Na legislação brasileira, a doutrina do adimplemento substancial, apesar de tratada no Anteprojeto de Código das Obrigações, do ano de 1965, não possui previsão expressa (NEVES, 2014, p. 311). Entretendo, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a sua existência e admitem a sua aplicação, com base nos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos.

Segundo essa teoria, ocorrendo o cumprimento quase integral de um contrato e sendo irrelevante a mora, estaria o credor impossibilitado de requerer a resolução contratual, podendo, contudo cobrar a parte da prestação inadimplida, bem como eventual indenização por perdas e danos.

De acordo com o Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil, o adimplemento substancial, decorrente dos princípios gerais do contrato, limita a aplicação do artigo 475 do Código, fazendo prevalecer a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva.

Ao tratar sobre o tema, Flávio Tartuce (2016, p. 455) frisa que a sua aplicação tem por objetivo a manutenção do contrato:

 

Pela teoria do adimplemento substancial (substantial performance), em hipóteses em que a obrigação tiver sido quase toda cumprida, não caberá a extinção do contrato, mas apenas outros efeitos jurídicos visando sempre à manutenção da avença [...].

 

Assim, a partir da análise da utilidade da obrigação em determinado caso concreto, considerando-se os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da conservação dos negócios jurídicos, poderá ser aplicada a teoria do adimplemento substancial para possibilitar a manutenção do contrato e evitar a onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa, preservando sempre a autonomia privada (TARTUCE, 2016, p. 454).

Isto é: caberá ao magistrado, sob a luz da boa-fé objetiva e da proporcionalidade, examinar casuisticamente a gravidade da infração contratual, para então decidir se a relação jurídico-econômica deverá ser desfeita (submetendo uma das partes a um sacrifício excessivo) ou mantida (cabendo ao credor pleitear a parcela da prestação inadimplida sem extinguir o contrato) (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).

A situação acima pode ser vislumbrada, por exemplo, em contratos de alienação fiduciária e compra e venda, quando o contratante após adimplir parcela substancial do débito, deixa de pagar parcela ínfima do contrato. Nesses casos, é comum que o credor, com base no artigo 475 do Código Civil, proponha em face do devedor ação de busca e apreensão ou de reintegração, para reaver o bem móvel ou imóvel.

Contudo, no cenário considerado acima, impor ao devedor a perda do bem corresponde a um sacrifício desproporcional, tornando assim abusivo o exercício do direito de resolução contratual por parte do credor, já que este dispõe da faculdade de ajuizar ação própria para perseguir o crédito remanescente (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).

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A análise de decisões judiciais revela que os Tribunais brasileiros vêm aplicando a teoria do adimplemento substancial para impedir o exercício desproporcional do direito de resolução contratual por parte do credor, prestigiando a manutenção do negócio jurídico em detrimento do seu desnecessário desfazimento, nos casos em que a técnica da ponderação de valores revele que a continuidade do contrato seja viável e compatível com os interesses dos contratantes. Nesse sentido, vejamos alguns julgamentos do Superior Tribunal de Justiça.

Através do julgamento do Recurso Especial nº 272.739/MG[1], o STJ decidiu pela manutenção de um contrato de financiamento com alienação fiduciária, indeferindo o pedido de busca e apreensão do bem, considerando que o devedor deixara de pagar apenas a última prestação, que havia sido depositada em juízo por ele. 

A decisão do Recurso Especial nº 469.577/SC[2] também indeferiu o pedido de busca e apreensão formulado pelo credor, em um contrato no qual o valor inadimplido equivalia a menos de 20% (vinte por cento) do valor dos bens, considerados essenciais à continuidade das atividades da devedora.

Nesse mesmo sentido, através do julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 607.406/RS[3], o STJ entendeu que o adimplemento substancial do contrato serve para afastar a medida de busca e apreensão do bem dado em reserva de domínio, porquanto restariam ao credor outros meios processuais para a cobrança de seu crédito.

Já no julgamento do Recurso Especial nº 293.722/SP[4], o STJ entendeu que o mero atraso no pagamento de uma parcela do prêmio de um contrato de seguro-saúde, por não se equiparar ao inadimplemento total, não desobriga a seguradora a arcar com os gastos para o tratamento de saúde do segurado.

No julgamento do Recurso Especial nº 1.200.105/AM[5], o STJ indeferiu o pedido de reintegração de posse de 135 (cento e trinta e cinco) carretas adquiridas através de contrato de leasing, considerando que mais de 80% (oitenta por cento) das prestações já haviam sido adimplidas e que a retomada dos bens inviabilizaria a continuidade das atividades empresariais da devedora, restando à credora, todavia, optar pela exigência do seu crédito mediante ações de cumprimento da obrigação ou postular o pagamento de uma indenização por perdas e danos.

A análise das decisões revela que os Tribunais brasileiros, de maneira geral, vêm reconhecendo a configuração do adimplemento substancial do contrato diante da aferição do percentual já cumprido da prestação, não havendo, atualmente, fórmula exata para balizar a aplicação da teoria, cabendo ao julgador analisar o caso concreto, em atenção à finalidade econômico-social do contrato e aos interesses envolvidos.

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem ressaltado por José Roberto de Castro Neves (2014, p. 311-313), a ideia de adimplemento substancial encontra fundamento no valor da equidade, pois na hipótese de cumprimento quase integral de uma obrigação, não pode ser dado o mesmo tratamento cabível para os casos de total descumprimento:

 

Por vezes, a prestação não é cumprida exatamente como deveria, porém ela é cumprida na sua quase totalidade. Embora o artigo 313 do Código Civil garanta ao credor o direito de exigir que a obrigação seja cumprida precisamente como ajustado, há que se adaptar esse conceito nas hipóteses nas quais o adimplemento não tenha sido integral, porém substancial. Afinal, não seria justo dar tratamento de uma falha completa, quando houve um cumprimento quase perfeito. Desenvolveu-se, assim, a teoria do adimplemento substancial.

 

Neste contexto, o Poder Judiciário poderá decidir pela manutenção do negócio jurídico, caso entenda que o descumprimento não afetou de maneira relevante os benefícios almejados pelas partes através do contrato, e que ainda haja utilidade no cumprimento da prestação, com base no parágrafo único do artigo 395 do Código Civil (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 399).

Em suma, trata-se de uma mudança paradigmática, através da qual o direito subjetivo ou potestativo de resolução contratual deve ser relativizado, em homenagem aos direitos da personalidade, cabendo ao Poder Judiciário, portanto, decidir sobre a eficácia de uma cláusula resolutória expressa, sopesando o que já foi objeto de cumprimento em determinado contrato com a parcela ainda não adimplida. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).

Nesse diapasão, a aplicação dessa teoria coaduna-se com a atual etapa de constitucionalização do Direito Civil, que condiciona a validade das relações civis à observância das garantias constitucionais.

Na brilhante lição de Paulo Luiz Netto Lôbo (1999, p.13/14), a constitucionalização do direito civil alterou o conteúdo, a natureza e a finalidade dos institutos do direito civil, dentre os quais o contrato, representando a etapa mais significativa do processo de mudança paradigmática enfrentada pelo direito civil, na transição do modelo de Estado liberal para o Estado social:           

 

O conteúdo conceptual, a natureza, as finalidades dos institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o contrato, não são mais os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da ideologia liberal oitocentista, cujos traços marcantes persistem na legislação civil. As funções do Código esmaeceram-se, tornando-o obstáculo à compreensão do direito civil atual e de seu real destinatário; sai de cena o indivíduo proprietário para revelar, em todas suas vicissitudes, a pessoa humana. Despontam a afetividade, como valor essencial da família; a função social, como conteúdo e não apenas como limite, da propriedade, nas dimensões variadas; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato.

 

 Por todo o exposto, conclui-se que a o estudo da teoria da adimplemento substancial possui grande importância, haja vista que a sua aplicação é compatível com os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos, bem como com a equidade, não violando os princípios da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade e nem tampouco contrariando a regra prevista no artigo 475 do Código Civil de 2002, mas representando um meio de compatibilização do direito de resolução contratual com o fenômeno de constitucionalização do Direito Civil.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Código Civil. Texto da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Vade Mecum Saraiva / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Juliana Nicoletti. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, 4v.

 

Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-de-direito-civil-enunciados-aprovados.  Acesso em 04 out. 2016.

 

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/507. Acesso em: 25 fev. 2013.

 

MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set. 1998. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/383. Acesso em 14 jun. 2016.

 

NEVES, José Roberto de Castro. Direito das Obrigações. 5 ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2014.

 

PESQUISA de Projeto de Lei. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=98A0507635C997B1C49FEF66764D343B.proposicoesWeb2?codteor=848554&filename=Tramitacao-PL+699/2011.  Acesso em 06 out. 2016.

 

PESQUISA de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp?vPortalArea=471.  Acesso em 18 out. 2016.

 

PESQUISA de Processos do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea. Acesso em 18 out. 2016.

 

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 6 ed. São Paulo: Método, 2016.

 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2006, 2 v.

 

Sobre o autor
João Daniel Correia de Oliveira

Analista Judiciário, Área Judiciária. Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas (2022). Especialização em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, FALEG (2021). Especialização em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA em parceria com a Escola Brasileira de Direito, EBRADI (2019). Especialização em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo (2019). Especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Daniel Correia. Aplicação da teoria do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5256, 21 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60851. Acesso em: 15 nov. 2024.

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