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Fundamento constitucional do sigilo bancário

Agenda 24/12/2004 às 00:00

Note-se que não há referência expressa ao sigilo bancário na Constituição Federal, o que gerou e tem gerado grandes debates na doutrina e na jurisprudência sobre seu fundamento.

A dúvida gira em torno de saber se o sigilo bancário encontra guarida na Lei Maior ou apenas no direito infraconstitucional, a exemplo do que ocorre nos demais países. Vale a transcrição do entendimento do Min. Francisco Rezek de que o tema não é constitucional, a seguir:

"Parece-me, antes de qualquer coisa que a questão jurídica trazida à Corte neste mandado de segurança não tem estrutura constitucional. Tudo quanto se estampa na própria Carta de 1988 são normas que abrem espaço ao tratamento de determinados temas pela legislação complementar. É neste terreno, pois, e não daquele da Constituição da República, que se consagra o instituto do sigilo bancário – do qual se repetiu ad nauseam, neste país e noutros, que não tem caráter absoluto" (Mandado de Segurança nº 21.429-4/DF, Tribunal Pleno, DJ 16/10/95).

Surge ainda a indagação de que se deve esclarecer se a proteção constitucional da intimidade e vida privada (inciso X) e do sigilo da comunicação e dos dados (inciso XII), previstos pela Constituição Federal, em seu art. 5º, alcança o sigilo bancário, in verbis:

"X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...)

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;"

Em virtude da dificuldade em se distinguir vida privada de intimidade, melhor se utilizar a expressão direito à privacidade, a fim de englobar todas as hipóteses previstas no texto constitucional referentes à vida íntima.

Impende destacar o magistério de José Afonso da Silva:

"a esfera de inviolabilidade, assim, é ampla, abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo". (1)

Dessa forma, no âmbito da privacidade, conclui-se que não se pode deixar de levar em consideração as informações bancárias, que, indubitavelmente, revelam traços ou elementos da vida privada do indivíduo.

Sendo assim, o sigilo bancário seria um desdobramento da proteção à intimidade prevista no inciso X do art. 5º da Carta Magna, em consonância com o voto do Min. Carlos Velloso, em julgamento do RE 219.780, que faz residir "no inciso X, do art. 5º da Constituição, o sigilo bancário, que tenho como espécie de direito à privacidade" (STF, RE 219.780, DJ 10/09/1999).

Por outro lado, o inciso XII da CF é uma inovação da Constituição, o que desencadeou algumas dúvidas interpretativas. Não trata expressamente do sigilo bancário, mas, ao utilizar o termo "sigilo de dados", sem dúvida, abarca a proteção às informações bancárias.

Isto porque as informações bancárias não deixam de ser dados, mas o dispositivo da CF é amplo, protegendo outros dados além dos bancários. É a posição de Antonio Manoel Gonçalez, ao sustentar que o vocábulo ‘dados’, "certamente, refere-se a informações pessoais em poder dos bancos, entidades financeiras etc., que são indevassáveis. Trata-se de garantia constitucional aos cidadãos e os bancos deverão obedecer ao estatuído na Carta de Princípios". [2]

Entretanto, como não poderia deixar de ser, não faltam juristas que defendam o contrário, entre eles, pode-se citar Luiz Fernando Bellinetti que diz que o inc. XII do art. 5º da CF, apesar de ser mencionado como embasamento para o sigilo bancário, não se presta a tal finalidade e, de maneira radical, afirma ainda que a garantia do sigilo bancário torna-se meramente legal, se a revelação da informação não invadir a esfera da intimidade da pessoa. [3]

Outra interpretação é feita, no sentido de que os dados que quis o constituinte proteger foram apenas os dados informáticos, como conseqüente da evolução tecnológica. É a posição dos eminentes profs. Manoel Gonçalves Ferreira Filho [4] e Tércio Sampaio Ferraz Junior [5].

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Nesta linha de raciocínio, Celso Bastos e Ives Gandra, ao tecerem comentários à Constituição do Brasil, divagam:

"Uma inovação da Constituição foi estender a inviolabilidade dos ‘dados’. De logo, faz-se mister tecer críticas à impropriedade desta linguagem. A se tomar muito ao pé da letra, todas as comunicações seriam invioláveis, uma vez que versam sempre sobre dados. Mas pela inserção da palavra no inciso vê-se que não se trata propriamente do objeto da comunicação, mas sim de uma modalidade tecnológica recente que consiste na possibilidade das empresas, sobretudo financeiras, fazerem uso de satélites artificiais para comunicação de dados contábeis". (6)

Ademais, afirmam alguns que o dispositivo faz referência apenas ao fluxo da comunicação, ou seja, as informações estariam protegidas durante a transmissão entre remetente e destinatário.

Com efeito, o STF tem seguido esta interpretação, não alcançando a proteção do dado em si, mas sim sua comunicação. Veja o voto do Min. Nelson Jobim, proferido no julgamento do RE 219.780/PE:

"Passa-se, aqui, que o inciso XII não está tornando inviolável o dado da correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a interceptação da comunicação dos dados, não dos resultados. Essa é a razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por correspondência telegráfica e de dados é proibida a interceptação porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos, dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O que é vedado de forma absoluta é a interceptação da comunicação da correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a interceptação da comunicação telefônica? Para manter os dados, já que é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados. Nas demais, não se permite porque os dados remanescem, ficam no computador, nas correspondências etc" (RE nº 219.780/PE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10.09.99, p. 23).

Data vênia, não há como se coadunar com este raciocínio, pois "do ângulo do interessado, ver as informações que lhe digam respeito acessadas estática ou dinamicamente é indiferente, no que diz respeito ao que passa a ser de conhecimento de terceiro". [7]

Não se pode negar a tortuosa redação deste inciso, mas, mesmo assim, não cabe interpretar a Constituição, caracterizada por conter normas gerais e abstratas, de maneira restrita, afastando o sigilo bancário.

Note-se que a Constituição garantidora de direitos também os restringiu para evitar abusos. O objeto da tutela é dúplice: de um lado, a liberdade de manifestação de pensamento; de outro lado, o segredo, como expressão do direito à intimidade. [8]

O Min. Marco Aurélio, em decisão plenária, MS 21.729-4, julgado em 5/10/95, publicado no DJ de 10/10/95, proferiu que "em última análise, tenho que o sigilo bancário está sob a proteção do disposto nos incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal".

Está com total razão o eminente Ministro, visto que a Carta de 1988, ainda que não de forma explícita, teve a intenção de acobertar as informações bancárias, quando assegura o sigilo dos dados pessoais e protege todos os direitos da personalidade.

Arnoldo Wald, enfaticamente, entende que tanto a proteção da intimidade e da vida privada, como a de dados sobre a pessoa, constituem fundamentos constitucionais para garantir o sigilo bancário [9].

Portanto, ainda que suscitem dúvidas e até mesmo existam posições contrárias, a doutrina e a jurisprudência têm compreendido o fundamento jurídico do sigilo bancário a partir dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição.

Então, vale lembrar que os direitos e garantias fundamentais elencados no art. 5º da Carta Magna possuem o status jurídico de cláusulas pétreas, ou seja, matérias que não podem ser alterados por Emenda Constitucional, de acordo com o disposto no art. 60, § 4º, inciso IV.

Aliás, o sigilo bancário como direito fundamental foi a conclusão do 24º Simpósio Nacional de Direito Tributário, no qual se reuniram os mais renomados juristas do país em derredor do tema: Os Direitos Fundamentais do Contribuinte. [10]

É com base neste fundamento que o jurista Ives Gandra da Silva Martins explica que "não pode qualquer autoridade, entidade bancária ou profissional detentor de informações de terceiros, sem autorização judicial, repassar tais informações, mesmo que legítima a pretensão do solicitante". [11]

E é também por isso que se deve ter muita cautela em qualquer intromissão externa no âmbito familiar, o que levou Antonio Magalhães a concluir que:

"as intromissões na vida familiar não se justificam pelo interesse de obtenção de prova, pois, da mesma forma do que sucede em relação aos segredos profissionais, deve ser igualmente reconhecida a função social de uma vivência conjugal e familiar à margem de restrições e intromissões".

Daí porque todas as provas obtidas em desatendimento ao direito à intimidade e à privacidade não poderão ser utilizadas como meios probatórios no processo criminal, pois constituem o que se convencionou denominar de fruits of the poisonouis tree (frutos da árvore envenenada).

Sobre o assunto, cabe aqui a transcrição do Acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª região:

"Em respeito às garantias asseguradas pelo Texto Constitucional, é providência inasfatável a prévia chancela do Poder Judiciário para a quebra do sigilo bancário para fins de instrução processual, posto que, à evidência, tal medida consiste em ato de extrema violência em face do direito à intimidade, assegurado aos cidadãos. (...) A prova documental consistente nas informações obtidas por intermédio da quebra do sigilo bancário encontra-se eivada de nulidade, porquanto não colhida nos termos do imperativo da lei, devendo ser declarada sua ineficácia para a solução do presente feito, em razão do flagrante desrespeito ao princípio constitucional da inadmissibilidade, no processo, da prova ilícita, conforme previsto no inciso LVI do artigo 5º da Carta Magna" (ACR 10207, proc. 2000.03.99.047346-4/SP, Quinta Turma, DJU 17/12/2003, p. 237, juíza Ramza Tartuce)


Notas

1 Curso de Direito Constitucional, 11ª ed., p. 202.

2 A Questão do Sigilo Bancário. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas nº 9, p. 156/157.

3 Limitações Legais ao Sigilo Bancário. Revista de Direito do Consumidor nº 18, p.151.

4 "O direito anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui são dados informáticos". Comentários à Constituição de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, v. 1, p. 38.

5 Sigilo Bancário. Cadernos de Direito Bancário, do Mercado de capitais e da Arbitragem, p. 14.

6 Ob. cit., p. 73.

7 MARCO AURÉLIO GRECO. Sigilo das Operações de Instituições Financeiras. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo nº 9, p. 154.

8 ADA PELLEGRINI GRINOVER. Liberdades Públicas e Processo Penal, 2ª ed., São Paulo, RT, 1982, p. 190.

9 O Sigilo bancário no projeto de lei complementar de reforma do sistema financeiro e na lei complementar n. 70. Cadernos de Direito Tributário e Finanças públicas nº 1, p.200.

10 VÂNIA SICILIANO AIETA. A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, pp. 113-114. Apud PAULO QUEZADO. Ob. cit., p. 36.

11 Sigilo de dados que devem as autoridades fiscais manter sob risco de responsabilidade civil. Revista Dialética de Direito tributário nº 9, p. 69.

Sobre a autora
Manoela Bastos de Almeida e Silva

Advogada, especialista em direito tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Manoela Bastos Almeida. Fundamento constitucional do sigilo bancário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 535, 24 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6088. Acesso em: 24 nov. 2024.

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