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O que não foi dito acerca da lei estadual do Rio de Janeiro que permite o licenciamento veicular, ainda que inadimplido o IPVA

Agenda 19/10/2017 às 10:15

A Lei 7.718/2017 do RJ nasce da teimosia do TJRJ em não subordinar-se ao STF. Mas tudo indica que nos aguardam novas arbitrariedades, como um selo de mau pagador em nossos CRLVs e a permanência da necessidade de pagamento de multas de trânsito para a realização de licenciamento.

Acaba de ser publicada no diário oficial do Estado no Rio de Janeiro (ERJ) – 10/10/2017 -, a Lei Estadual nº 7.718/17, que dentre outras providências, permite ao proprietário de veículo automotor realizar o licenciamento anual de seu veículo, ainda que esteja inadimplente quanto a sua obrigação tributária junto ao Estado do Rio de Janeiro, no caso, o pagamento do imposto sobre a propriedade de veículo automotor (IPVA). Embora a Lei 7.718/2017 do ERJ nos pareça benéfica, a mesma deflagra o grave estado de contradição, entre os poderes judiciário e legislativo, bem como, nos alerta quanto à malícia legislativa.

A Lei 7.718/2017 do ERJ, de autoria do Deputado Jorge Picciani, recebeu a seguinte redação, inclusive, já vigente:

Art. 1º - A inadimplência do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores - IPVA, não poderá ser usada pelo Poder Executivo, como motivo impeditivo para que os proprietários dos veículos possam, junto ao DETRAN, vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa e licenciar veículo para a obtenção do Certificado de Registro e Licenciamento Anual, conforme prescreve o inciso III do Art. 22 do Código de Trânsito Brasileiro - CTB (Lei nº 9.503/1997).

Parágrafo Único - O DETRAN deverá fazer constar, caso exista inadimplência, no ato da vistoria tratada no caput, no Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo, os exercícios onde ocorreram a inadimplência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA.

Art. 2º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Em síntese, o impedimento da realização de vistoria devido ao inadimplemento do IPVA e/ou de multas de trânsito e a apreensão de veículo constituem ato de confisco pelo Estado, com a finalidade de coerção do contribuinte ao pagamento do tributo inadimplido – IPVA. Contudo, a não prática ou princípio do não confisco encontra-se previsto em nossa Constituição, onde, em seu art. 150, IV, expressamente aponta que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco. Também é vedada a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo, a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Ainda, não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais, conforme previsão sumular, respectivamente das súmulas nº 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal (STF).

A contradição entre os poderes judiciário e legislativo ultrapassa a questão do princípio da independência dos poderes, já que deveriam ser harmônicos entre si. Torna-se fácil constatar tal contradição, quando observamos o Enunciado 11 dos Juizados Especiais da Fazenda Pública e da Turma Recursal Fazendária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), que prevê ser lícito o condicionamento da realização de vistoria visando o licenciamento anual ao pagamento das multas e tributos pendentes. Em verdade, o judiciário contradiz a si próprio, já que o TJRJ julga e enuncia de forma avessa à jurisprudência e entendimento sumulado do STF.

Enfim, a Lei 7.718/2017 do ERJ foi promulgada com o propósito de fazer valer no Estado do Rio de Janeiro, o que a jurisprudência e sumulados do STF já fizeram valer em todo o território nacional; a Lei 7.718/2017 do ERJ nasce da ineficiência e teimosia do TJRJ em não subordinar-se ao STF.

Se por um lado, demonstro o entendimento consolidado do STF, a insubordinação do TJRJ a respeito do tema – coerção do contribuinte ao pagamento de tributo ou multa por infração de trânsito, por meio de atos confiscatórios -, e a promulgação da Lei 7.718/2017 do ERJ, em outras palavras, a contradição entre os poderes judiciário e legislativo, por outro, devo demonstrar o que há de oculto nesta norma. A lei estadual, que apenas tem dois artigos, no parágrafo único do art. 1º impõe que O DETRAN deverá fazer constar, caso exista inadimplência, no ato da vistoria tratada no caput, no Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo, os exercícios onde ocorreram a inadimplência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. Descrevo o que isso significa: Os atos de licenciamento, emplacamento, registro e outros apenas acontecem após o pagamento de taxas, ou seja, tributos, assim, a promulgação desta lei é um acréscimo ao erário público; por via de consequência, o condutor passará a ter registrado em seu certificado de registro e licenciamento de veículo (CRLV) a observação no tocante aos tributos devidos, vale dizer, o condutor agora poderá ser parado em uma blitz, onde será possível, com toda a certeza, afirmar quais débitos são devidos; por fim a recente lei estadual, nada disse quanto a possibilidade de licenciamento do veículo com multas por infrações de trânsito inadimplidas.

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Neste cenário, a desnecessidade de adimplemento do IPVA para licenciamento do veículo não deduz a possibilidade de realização do licenciamento quando houver multas de trânsito inadimplidas. Aqui está uma manobra do ente público, a possibilidade de realizar o licenciamento de veículo apenas através da quitação de multas de trânsito fará com que proprietários de veículos - na proporção da competência de cada ente para aplicação e arrecadação de multas por infração de trânsito - ao pagamento em massa de multas de trânsito.

Aponto que os municípios também serão beneficiados pelo pagamento em massa das multas por infrações de trânsito, o sentido desse benefício: apesar do IPVA ser paga o Estado, 50% de seu valor é repassado para o munícipio em que o veículo é registrado. 

Outra questão importante quanto à Lei nº 7.718/2017 do ERJ, é sua constitucionalidade. Nossa Constituição prevê que será competência privativa da União legislar sobre trânsito e transportes (art. 22, XI da CRFB/88), bem como, que em seu art. 24, I, caberá concorrentemente a União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre o direito tributário. Nesse ponto, afirmo que a Lei do ERJ é constitucional, pois se refere ao direito tributário, e não ao trânsito e aos transportes.

O precedente do STF – julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1654 – embasa a afirmativa feita no parágrafo anterior. Ao menos, inclina-se no sentido do reconhecimento da constitucionalidade da Lei 7.718/2017 do ERJ. Quando matéria semelhante foi defrontada em nosso supremo tribunal, naquela oportunidade, a Lei nº 194/94 do Estado do Amapá, que em seu art. 154, § único previa que seria vedado a retenção ou apreensão do veículo pelo não recolhimento  do  imposto  devido  no  prazo  regulamentar,  quando  este  for  licenciado  no  Estado,  mas  o inadimplemento impede a renovação da licença sob qualquer hipótese, que por sua vez, foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1654, de relatoria do Ministro Maurício Corrêa; restou decidido, conforme publicado no dia 19/03/2004 que a sanção administrativa em virtude do inadimplemento do pagamento do IPVA, seria matéria afeta à competência dos Estados-membros.  

Continuamos cegos diante da realidade, assim, nos aguardam novas arbitrariedades estatais, um “selo de mau pagador” em nossos CRLVs, uma sujeição a um Tribunal de Justiça – TJRJ -, que possivelmente não se subordinará a tal lei estadual, a permanência da necessidade de pagamento de multas de trânsito para a realização de licenciamento, além de um parecer da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), que muito possivelmente opinará pela inconstitucionalidade da lei estadual sob o fundamento de tratar-se de uma matéria de competência exclusiva da União para legislar, assim como o fez quanto à Lei 7.003/2015 do ERJ, que previa a impossibilidade do DETRAN/RJ suspender ou cassar o direito de dirigir com base na soma de pontos perdidos por infrações cometidas em data anterior à data de renovação da carteira de habilitação, o que evidentemente é uma questão procedimental administrativa e não de trânsito. Ou seja, tendo ou não aplicabilidade e eficácia a Lei 7.718/2017 do ERJ, o contribuinte será o prejudicado.   

Sobre o autor
Alan Savedra

Doutorando em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGS-IESP-UERJ), mestre em Teoria e Filosofia do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ), pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Direito e Ciências Sociais (DECISO) do IESP-UERJ, pós-graduado em Gestão Jurídica e Processo Civil pelo Instituto Brasileiro de Mercados e Capitais (IBMEC) e graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Advogado, professor convidado na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), na Universidade Castelo Branco (UCB), na Universidade de Vassouras (UNIVASSOURAS) e do Curso de Direito de Trânsito na Prática no Instituto Abreu Bindé (IAB), articulista e palestrante. | Tel.: (21) 99118-0926 | E-mail: alan@savedraedanille.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAVEDRA, Alan. O que não foi dito acerca da lei estadual do Rio de Janeiro que permite o licenciamento veicular, ainda que inadimplido o IPVA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5223, 19 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61246. Acesso em: 21 nov. 2024.

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