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Um país com epidemia de normas

Agenda 07/11/2017 às 09:23

No que se refere à revogação ou alteração substancial de normas, o que era uma anomalia localizada mais no campo de direito tributário, hoje, alastrou-se por todo o universo  jurídico, não poupando sequer os textos constitucionais.

Há exatamente 31 anos, ou seja, em 1986, o saudoso professor Ruy Barbosa Nogueira publicava um artigo intitulado “Constituição no país da epidemia de normas”. Quem frequentou o ciclo de debates de questões práticas de Direito Tributário, que ele presidia com maestria, semanalmente, no Instituto Brasileiro de Direito Tributário, por ele fundado, e que até hoje perdura, sabe perfeitamente a razão do desabafo do grande mestre. No final de cada sessão semanal o professor anunciava o tema para o próximo debate, indicando os textos legais que deveriam ser examinados previamente pelos participantes (advogados, professores, membros da magistratura e estudantes dos cursos de mestrado e doutorado). Só que, chegando o dia assinalado para os debates, não raras vezes, os textos legais indicados haviam sido revogados ou alterados substancialmente.

Era uma anomalia localizada mais no campo de Direito Tributário; hoje, o mal se alastrou por todo o universo  jurídico, não poupando sequer os textos constitucionais. É claro que, na área do Direito Tributário, a fúria legislativa decuplicou, resultando em um sistema tributário dúbio, confuso, nebuloso e contraditório, em que se misturam normas constitucionais com as de leis complementares, de leis ordinárias gerais e especiais, de decretos, de  portarias, de  instruções normativas, de  pareceres normativos, de atos declaratórios etc., sem qualquer obediência à hierarquia vertical das leis. Como resultado, o contribuinte brasileiro gasta 2.600 horas de trabalho anual somente para dar cumprimento a todas as obrigações tributárias.

Atualmente,  o Brasil produz  cerca de 18 leis por dia, chegando ao total de 181 mil até outubro de 2017. Só que há um detalhe que nem todos conseguem perceber. Da mesma forma que as leis, em sentido amplo, são produzidas, com a espantosa velocidade, elas são imediata e rigorosamente descumpridas, ensejando o emperramento do Poder Judiciário, que se apresenta com um aspecto de uma massa falida irreversível. Afinal, decidir que o demandante tinha o direito subjetivo pleiteado, após quinze ou vinte anos de tramitação do processo, sem que ele possa usufruir dos efeitos materiais da decisão transitada em julgado não é fazer justiça [1], finalidade última da atividade jurisdicional exercida em regime de monopólio estatal pelo Judiciário.

 Quando uma lei é descumprida e surgem os efeitos indesejáveis que ela buscou prevenir, o que  faz o legislador? Normalmente, reage com a elaboração de outro instrumento normativo, uma lei complementar, por exemplo, no errôneo pressuposto de que ela goza de uma hierarquia superior à lei ordinária, e que, como tal, será cumprida. Quando descumprida a lei complementar, o legislador, muitas vezes, lança mão de uma emenda constitucional. Só para exemplificar, o descumprimento sistemático das normas da lei orçamentária anual, por ignorar as diretrizes da Lei nº 4.320/64, que dispõe sobre elaboração e controle dos orçamentos,  resultou na aprovação da Lei Complementar nº 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal que instituiu inúmeros mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária [2], com o objetivo de manter sempre equilibradas as finanças públicas. Não deu certo! O déficit público atingiu patamar dantes nunca visto. Isso fez com que o governante patrocinasse, a toque de caixa, e com aplausos da população leiga, a PEC de nº 141, que congelava as despesas públicas por vinte anos consecutivos. Nos debates que se travaram à época no Conselho Superior de Direito da Fecomércio, eu dizia que a PEC seria celeremente aprovada porque estava afastado de antemão o perigo de dar certo. Aquela PEC resultou na aprovação da Emenda Constitucional nº 95/16. Só que o déficit primário, que era de 139 bilhões, após a Emenda, saltou para 159 bilhões, e, agora, para 161.300 bilhões, mediante alteração da Lei nº 13.473/17, que fixou as Diretrizes Orçamentárias para o exercício de 2018. E há expectativa de seu aumento em vista da nova crise política deflagrada com a apresentação inoportuna da segunda denúncia contra o Presidente da República [3]. O remédio para os males da economia não pode ser o tratamento jurídico, uma noção elementar que vem sendo convenientemente ignorada. Há quem diga que a quantidade de leis está diretamente relacionada ao grau de corrupção de um país. Quanto mais corrupto o país, mais leis ele produz.

A proliferação de normas não fica apenas no nível infraconstitucional. Aqui é oportuno lembrar as palavras do saudoso Roberto Campos, que foi um homem de uma visão extraordinária:

“O problema brasileiro nunca foi fabricar constituições; sempre foi cumpri-las. Já demonstramos à saciedade, ao longo de nossa história, suficiente talento juridicista – pois que produzimos sete constituições, três outorgadas e quatro votadas – e suficiente indisciplina para descumpri-las rigorosamente todas!”.

Na verdade, o que temos hoje não é mais aquela Constituição de 1988 que restabeleceu a democracia. Tirante o núcleo protegido por cláusulas pétreas, tudo o mais foi mexido e remexido por quatro Emendas de Revisão e noventa e sete Emendas Constitucionais [4]. A penúltima delas, a de nº 96/17, confere status constitucional a um preceito normativo que nada tem de constitucional: determina que “as práticas esportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis, nas condições que especifica”. Mal sabem os legisladores que normas da espécie acabam tornando impossível ao STF continuar agindo como o guardião da Constituição, a tempo e de forma eficiente. Talvez eles saibam. Exatamente porque sabem, as emendas semelhantes  não param de ser produzidas com tanta facilidade. É mais fácil aprovar uma Emenda do que aprovar uma lei complementar para preencher os imensos vazios deixados pela Constituição. Tudo é uma questão de vontade política.

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Sob a bandeira das reformas que está na moda, várias delas estão em tramitação ou em preparação: reforma trabalhista, reforma previdenciária, reforma tributária, reforma política etc.

Costuma-se dizer que as reformas são necessárias porque nada no mundo é estático. Concordo. Só que as reformas não podem ser feitas apenas para remediar os resultados catastróficos visíveis a todos. É preciso diagnosticar as causas, do contrário, novas reformas serão necessárias em breve espaço de tempo. Aliás, se diagnosticada a causa seguida de sua remoção, a reforma torna-se desnecessária. É como a felizmente naufragada lei de execução fiscal administrativa que tentou substituir a execução fiscal judicial, porque o governo ficou assustado com o estoque das execuções e a morosidade do Judiciário, em média 15 anos para ultimação do processo de execução fiscal contra cinco anos de duração de um processo administrativo de natureza fiscal. Demonstramos que a causa da morosidade estava no ajuizamento de execuções sem critério qualitativo do crédito tributário, misturando devedores que distribuem dividendos semestrais com milhares de pequenos devedores em lugar incerto e não sabido e sem possibilidade de localizar bens para a penhora.  Apresentamos uma proposta substitutiva exigindo a penhora administrativa como requisito da execução fiscal junto à CDA, porque o importante é a observância dos princípios do  devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, pouco importando a autoridade (judicial ou administrativa) que ordena a penhora, sem a qual o processo não tem andamento. O projeto está paralisado no Congresso Nacional, onde sofreu inúmeras emendas acrescentando dispositivos com elevado grau de sadismo burocrático. Mas, na  prática, a União já está  dando preferência aos créditos de elevado valor para não transformar o Judiciário em um órgão de investigação do paradeiro do executado e de seus bens.

Na reforma  da Previdência Social, por exemplo, é preciso identificar a causa ou causas do seu déficit, em vez de simplesmente reduzir os benefícios previdenciários. É preciso saber o exato montante destinado à Previdência Social por conta da fabulosa arrecadação de sete contribuições de seguridade social onde se insere a Previdência junto à Assistência Social e à Saúde. Sabe-se que a arrecadação dessas contribuições sociais atinge quase o dobro da arrecadação de todos os impostos federais. Sucessivos governos têm mantido silêncio quanto à receita cabente à Previdência Social, dando destaque apenas ao seu déficit. E mais, até o advento da EC nº 93/2016, que prorrogou a DRU [5] até o ano de 2023, 20% da receita pertencente à Previdência social era rigorosa e mensalmente desviado de suas finalidades.

Quanto à reforma tributária, sob o disfarce da simplificação tributária, em vez de procurar aumentar o peso da carga tributária [6] deveriam os governantes dimensionar o tamanho do Estado e estimar o seu custo. Por isso, sempre digo que a reforma política deve preceder a reforma tributária. Se cada aumento tributário for seguido pela criação de novos órgãos e cargos públicos, como vem acontecendo, de nada valerá a reforma feita. Não há recursos que bastem para financiar este Estado paquidérmico. Simples Secretarias de governo vêm sendo transformadas em Ministérios por razões puramente políticas, muitas vezes, para atrapalhar a ação da Justiça. Enxugados os órgãos e entidades estatais que servem de cabide de empregos públicos e eliminados os incentivos fiscais espúrios poderá haver drástica redução de tributos retornando ao nível razoável de imposição da década de 90.

A reforma trabalhista, por sua vez, deveria preocupar-se com a expansão de empregos [7], a fim de conferir dignidade de que tanto fala a Constituição Cidadã aos milhões de desempregados que vivem na miséria total.

Enfim, as produções legislativas são ilimitadas porque elas visam dar tratamento jurídico como panaceia para todos os males, não distinguindo problema jurídico dos problemas de  natureza econômica, política, social, educacional etc. Basta tão só a lei para liquidar com os problemas existentes. Arregaçar as mangas, ou botar a mão na massa para resolver os problemas ninguém quer. Ora, as leis não são autoaplicáveis. Alguém deve operá-las e de forma constante, consciente e efetiva. E o chamado fiscal da lei precisa passar a fiscalizar efetivamente o cumprimento das leis. Não pode ficar na base da lei que “pega” e lei que “não pega”, principalmente se movidos por interesses pessoais. Do contrário de nada adiantará as comoventes proclamações como as que constam da Constituição Cidadã que soam como anedotas ante a realidade existente. Exemplifiquemos algumas delas: a) a educação é dever do Estado com a colaboração da sociedade [8], quando ela é dever da família com colaboração do poder público; b) no plano político as normas conduzem ao chamado presidencialismo de coalizão, um misto de presidencialismo e de parlamentarismo que se distancia cada vez mais da democracia; c) no campo social predominam os mirabolantes processos de inclusão, todos eles utópicos (o Fundo de Erradicação da Pobreza não passa de uma tomação de dinheiro, pois os desníveis socioeconômicos se acentuam cada vez mais. O Bolsa Família, por sua vez, sustenta aposentados e pensionistas e até defuntos); d) no setor de segurança pública, os presos têm mais direitos do que os trabalhadores, só que a maioria dos estabelecimentos prisionais não oferece condições mínimas de dignidade ao preso; e) a saúde é um direito do cidadão, porém, muitos morrem nas filas do SUS; f) tudo que é circunstancial ou conjuntural está sendo constitucionalizado por via de Emendas, provocando a desmoralização total do Estatuto Magno; g) finalmente, a Constituição emprega 4 vezes a palavra “deveres” ao passo que emprega 44 vezes a palavra “garantias”, e 76 vezes a palavra “direitos”. É um verdadeiro hino à irresponsabilidade e à preguiça mental e física.

Para finalizar, os textos legais em seu sentido amplo refletem a cultura do individualismo arraigado entre nós, desde os tempos imemoriais. O ter está incorporado na mente do povo. Muitos quebram rotineiramente as barreiras éticas para cultivar o ter a qualquer custo. Enquanto não houver uma reorientação da cultura para o coletivismo, que aumenta a empatia entre as pessoas e constroem pontes em vez de abismos que separam os poucos que vivem como nababos da grande maioria que vive abaixo da linha da miséria, as leis continuarão refletindo essa irrealidade que conduz, em última análise, à elaboração de uma constituição poética, que Roberto Campos denominava de “uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação de efêmero, e ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas”.

Precisamos de reformas, sim, mas não daquelas elaboradas por poetas do direito, porém aquelas que resultam do poder soberano do povo e dentro das reais possibilidades financeiras do Estado.


Notas

[1] Ao término da demanda, muitas vezes, o autor da ação já faleceu ou está muito debilitado pela idade para poder usufruir do resultado material da decisão judicial. E, quando a demanda é contra o poder público, grande parte  dos autores vitoriosos acabam morrendo na fila interminável dos precatórios judiciais, objetos de moratórias por sucessivas emendas constitucionais.

[2] Apresentação mensal do balancete de receitas e despesas; relatório bimestral da execução orçamentária; relatório quadrimestral das metas fiscais. Esses documentos são produzidos de forma informatizada, fazendo parte de inútil burocracia estatal; ninguém os examina, avalia e propõe medidas concretas previstas na lei para manter a  saúde financeira do Estado. Preferem, nas proximidades do final de cada exercício, dar uma solução legislativa, alterando as metas fiscais não atingidas por falta de controle e fiscalização.

[3] Por que não deixar a denúncia contra o Presidente para após o término do seu mandato?  Por acaso há o perigo de prescrição dos crimes que lhe são imputados? Como governar o país com o Presidente  no limbo por tão longo tempo?

[4] O Brasil somente perde para o México, que emendou a sua Constituição mais de 300 vezes.

[5] DRU significa desvinculação das receitas da União. É sucessora do Fundo de Estabilização Fiscal que, por sua vez, sucedeu ao Fundo Social de Emergência criado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1/94 em face da situação de emergência que atravessava o país. Hoje 30% das receitas da União ficam desvinculadas, isto é, o governante pode gastar à sua discrição e não segundo a lei orçamentária vigente. O governo chama isso de medida importante para organizar as contas públicas e a economia, com a concordância incondicional da nossa competente mídia. Pergunta-se, como é possível  falar-se em organizar as contas públicas descumprindo os preceitos da Lei Orçamentária Anual que direcionam as despesas a serem feitas no exercício, segundo o princípio da legalidade das despesas, um corolário do princípio da legalidade tributária? Com esse discurso falacioso, o que era excepcional e efêmero vem se perpetuando, convivendo normas orçamentárias para organização das finanças públicas com normas da DRU voltadas para desorganização parcial das contas públicas.

[6] A bandeira da simplificação do sistema tributário para aliviar a carga tributária tem sido o discurso dos últimos vinte anos, sempre resultando em minipacote tributário com elevação de tributos ou criação de tributo novo, como aconteceu com a extinta CPMF.

[7] Tamanha é a proteção dispensada aos que estão empregados que fica mais fácil ao empresário fazer rolar uma bola quadrada do que despedir um empregado tomado de preguiça crônica.

[8] Há uma ligeira confusão entre educação e ensino fundamental. Por sinal, o ensino no Brasil está distorcido, configurando uma pirâmide invertida. Há muito mais investimento no ensino superior do que no ensino fundamental, contribuindo para a formação de um contingente de 68% de analfabetos funcionais somados os egressos do ensino fundamental e do ensino médio, a refletir na qualidade do ensino superior. Segundo dados da OCDE para o biênio 2014-2015 o Brasil gastou no ensino superior U$ 11,7 mil por ano situando-se bem próximo da média dos países filiados a esse organismo internacional que foi de U$ 16,43 anual por aluno. No ensino fundamental o Brasil gastou apenas U$ 3.800 mil por ano contra a média dos países filiados a OCED que foi de U$ 8.700 por ano no mesmo biênio 2014-2015. Em outras palavras, o nosso país gasta com o ensino superior cerca de três vezes mais do que gasta com o ensino fundamental. Por isso dizemos que o sistema educacional brasileiro está invertido e pervertido, pois ele peca exatamente na base. E aqui é oportuno reproduzir as palavras de Arthur Conan Doyle:  “Nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”.
 

Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Um país com epidemia de normas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5242, 7 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61627. Acesso em: 5 nov. 2024.

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