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A hermenêutica da afetividade de Emmanuel Lévinas e sua contribuição para a interpretação e a aplicação do direito

É somente na outridade que o humano se realiza em plenitude. Disso decorre que a originalidade do humano se assenta na ética, compreendida como justiça para com o outro que existe, responsabilidade para com ele, abertura para que a infinitude de seu rosto fale por si mesma, incontível que é no “mesmo”.

As seguintes reflexões jusfilosóficas buscam evidenciar com brevidade a contribuição do pensamento de Emmanuel Lévinas (1980) para a interpretação e a aplicação do Direito, ressaltando como seu pensamento pode subsidiar, a um só tempo, a fundamentação existencial dos direitos humanos e a construção de uma teoria da decisão judicial democrática, tendo como cerne a ideia de alteridade.

Não se pretende, portanto, a abordagem exauriente da filosofia de Lévinas, senão a formulação de um convite à reflexão do leitor do presente artigo, obrado pela exposição sumária e parcial do chamado ético levinasiano, dirigido à consideração da alteridade nos pensamentos filosófico e jurídico.

Feita essa ressalva metodológica, impende assentar, em linha de partida, que  o fio condutor do projeto filosófico levinasiano passa pela crítica ao solipsismo egológico que acomete a filosofia ocidental, a qual tenciona apreender o outro na totalidade do eu, ignorando a infinitude da alteridade de seu rosto, incontível em qualquer tematização conceptualizante (LÉVINAS, 1980, p. 15).

Deveras, a fenomenologia de Edmund Husserl, a qual persegue a construção de uma ciência rigorosa a partir da redução fenomenológica operada na consciência doadora de sentido, padece de semelhante vício, ao subsumir a alteridade do outro na imposição de um sujeito cognoscente solitário (LÉVINAS, 1980, p. 16). Conquanto se volte às coisas mesmas, reconhecendo a intencionalidade da consciência, tem esta como a sede da apreensão da essência do conhecido, apreendendo-o em configuração dissonante de sua infinitude (HUSSERL, 2006, p. 89; MEGALE, 2007, p. 23) .

Para Lévinas (1980, p. 187) toda objetividade da compreensão somente pode ser buscada na alteridade, em relação com o Outro não subjugado ao império do Mesmo. A metafísica levinasiana é eminentemente heterológica, dado o absoluto Outro, inapreensível na solidão do ego.

Ademais, a ética precede a ontologia, precisamente porque o homem é, antes de tudo, ser-com-os-outros. Ser é exterioridade. Porquanto singularizado por seu logos, clarificando-se como “zóon politikon”, a existência humana é, desde já e sempre, existência para o outro; é somente na outridade que o humano se realiza em plenitude. Disso decorre que a originalidade do humano se assenta na ética, compreendida como justiça para com o outro que existe, responsabilidade para com ele, abertura para que a infinitude de seu rosto fale por si mesma, incontível que é no “Mesmo”, a quem cabe, porém escutá-lo, possibilitando o verberar de sua mensagem (LÉVINAS, 1980, p. 270).

Se a totalidade onicompreensiva do “Outro” a partir da egologia do Mesmo é falaciosa em sua totalidade, dada a diferença inescapável entre eles, à qual Lévinas designa de absolutamente outro, a hermenêutica somente pode operar-se em consideração a essa outridade, mirando diretamente o rosto que se lhe apresenta na linguagem e escutando fraternalmente o que ele diz, em modo de ser hospedeiro que acolhe, e não subjuga, o alter que quer comunicar.

Nesse diapasão, a retórica,  entendida em sua vertente decaída da erística dominadora, apresenta-se como forma violenta de discurso, que deve, por isso mesmo, ser extirpada da linguagem caso se almeje o acontecer da compreensão. Consubstancia a argumentação erística a suma injustiça, na medida em que não encara o rosto face a face, silenciando-o em catilinária que busca coisificá-lo no egologismo do “Mesmo”, aprisionando o incontível em proposições vazias, pretensamente veiculadoras de uma verdade proposicional (LÉVINAS, 1980, p. 57).

Ora, se a alteridade é infinitude, se a epifania do rosto realça a transcendência da outridade, que não se enquadra em qualquer conteudização, porquanto incontível, absolutamente outra, toda tentativa de apreendê-la na solitude do rosto, ignorando a hospitalidade da ausculta que deve permear toda a compreensão, conduzirá inevitavelmente ao mal-entendido, à violência incompreensiva.

A hermenêutica da afetividade levinasiana, em sua abertura fraterna para a ausculta do outro, a revelar, além do texto, a existência que a partir dele se quer comunicar, enormes contribuições oferta à hermenêutica jurídica, mormente à luz de um Estado que se autoproclama Democrático de Direito, cultor dos valores do pluralismo e da igualdade.

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Causa espécie notar que, não raras vezes, discursos especializados exteriores ao sistema jurídico, são retoricamente manipulados da cotidianidade judiciária como discursos de dominação, a impedir a ausculta dos argumentos das partes em juízo, cerrando o debate sob a pretensa onicompreensão dos especialistas sem coração, tão bem retratados por Max Weber (2004, p. 166).

Maria Helena Megale, Professora Titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das principais estudiosas do pensamento levinasiano na seara jurídica, observa com argúcia esse fenômeno:

No plano da filosofia levinasiana, despreza-se a retórica quando esta se apresenta como forma violenta de discurso. Atesta- se a violência, isto é, a injustiça quando o discurso se dá de forma oblíqua sem o enfrentamento do outro. Só o discurso face a face pode ser justo. Por isso, se condena o argumento erístico. De igual modo, recusaram-no Platão e Aristóteles, por não admitirem a falácia. Entendo que Lévinas rejeita a retórica quando tomada esta como discurso falacioso, portanto injusto, próprio da lisonja, da propaganda, da abordagem indireta, oblíqua, desleal, anônima, fraudulenta. Trata-se do discurso traduzido em investidas contra a verdade e a liberdade. A retórica nesse sentido, melhor dizendo, a erística consiste em injustiça necessitada de chamar a seu auxílio a psicologia, a demagogia e a pedagogia para levar o outro ao erro e para explorá-lo, como mostra Lévinas. (MEGALE, 2010, p. 179).

Caso emblemático é o da aplicação dos direitos fundamentais sociais, com o manuseio inapropriado da cláusula da reserva do possível, equivocadamente identificada com uma escassez natural de recursos, apregoada pelos discursos economicistas que visam à subjugação do jurídico ao puro fático (MACEDO, 2017, p. 216).

Tal arrazoado, no mais das vezes, tematiza solitariamente o Outro que se apresenta no processo como sujeito de direitos, impedindo que sua alteridade seja ouvida na hospitalidade da linguagem, o que se processa a partir da artificiosa ideia de que seu pleito, sequer compreendido, oneraria em demasia as finanças do Estado, ignorando-se a submissão da lei orçamentária a União e a prelazia dos direitos fundamentais ante qualquer argumento constitucionalmente não-fundamentado (MACEDO, 2017, p. 227).

Não menos arquetípico é o que se passa com as súmulas vinculantes, as quais sufocam a alteridade das sempre novéis demandas que se apresentam perante o Poder Judiciário, sob a pretensa identidade isomórfica de casos supostamente idênticos, cristalizados em uma intepretação apresentacional e inautêntica.

Desvia-se o olhar do rosto do outro, esquivando-se desde a linha de partida de sua infinitude que se quer escutada, a qual é objetificada e violentamente dominada sobre a imposição autoritativa do verbete sumular, utensiliarmente instrumentalizado como ente intramundano (MACEDO, 2016, p. 37).

Por outra banda, a originariedade do ser-para-os-outros, a incompletude do humano que só se perfaz, e desde sempre, em abertura para a alteridade, para o rosto que tem algo a dizer, impõe a inafastável responsabilidade do “Eu” perante os “Outros”, a qual tem na justiça sua realização.

Diversamente de Martin Heidegger (2012), Lévinas (1980) concebe a Ética, e não a ontologia, como a filosofia primeira, dado o débito originário do “eu” para com os “outros”, a repercutir nos deveres fundamentais do indivíduo para com seus semelhantes, a merecerem a positivação jurídica. Assaz elucidativa, a esse respeito, é a seguinte passagem da obra levinasiana:

O terceiro observa-me nos olhos de outrem – a linguagem é justiça. Não é que haja rosto primeiro e que, em seguida, o ser que ele manifesta ou exprime se preocupe com a justiça. A epifania do rosto como rosto abre a humanidade. O rosto na sua nudez de rosto apresenta-me a penúria do pobre e do estrangeiro; mas essa pobreza e esse exílio que apelam para os meus poderes visam-me, não se entregam a tais poderes como dados, permanecem expressão de rosto. O pobre, o estrangeiro, apresenta-se como igual. A sua igualdade na pobreza essencial consiste em referir-se ao terceiro, assim presente no encontro e que, dentro da miséria, a Outrem já serve. [...] Por isso com outrem ou discurso é não apenas o pôr em questão da minha liberdade, o apelo que vem do Outro para me chamar à responsabilidade, não apenas a palavra pela qual me despojo da posse que me encerra, ao enunciar um mundo objetivo e comum, mas também a pregação, a exortação, a palavra profética. A palavra profética responde essencialmente à epifania do rosto, duplica todo discurso, não como um discurso sobre temas morais, mas como momento irredutível do discurso suscitado essencialmente pela revelação do rosto enquanto ele atesta a presença do terceiro, de toda a humanidade, nos olhos que me observam. (LÉVINAS, 1980, p. 191).

A linguagem é, portanto, justiça, e só pode sê-lo se vivenciada como permanente ausculta do outro. Há que se assumir diante dele a postura de hospedeiro deixando que seu comunicado verbere em sua outridade, a fim de – para empregar uma construção de Maurice Merleau-Ponty (1974, p. 24) – revivê-lo como outro eu mesmo, jamais anulando-o ou impondo sobre ele aquilo que se deseja ouvir.

Nesse passo, assoma com vivacidade o fundamento da responsabilidade da comunidade para com cada um de seus membros, dos “eus” para com os “outros”, a refletir, no ordenamento constitucional, na impositividade da assistência ao desvalidos e do oferecimento de serviços públicos essenciais de qualidade, a serem custeados com o exercício do poder de tributar, legítima invasão patrimonial na esfera dos afirmados responsáveis.

A fraternidade como decorrência do estatuto do humano fundamenta existencialmente os direitos humanos como normas universais. Cuida-se, aqui, de universalidade existencial, e não racionalista ou a-história. A cooriginariedade da absoluta estranheza do Mesmo diante do Outro, assim como o convite existencial à sua acolhida, edifica a igualdade na responsabilidade, da qual dimanam os deveres universais do “eu” e de “todos” perante “os outros”:

É a minha responsabilidade em face de um rosto que me olha como absolutamente estranho – e a manifestação do rosto coincide com esses dois momentos – que constitui o fato originário da fraternidade. [...] No acolhimento do rosto (acolhimento que é já a minha responsabilidade a seu respeito e em que, por consequência, ele me aborda a partir de uma dimensão de altura e me domina), instaura-se a igualdade. Ou a igualdade produz-se onde o Outro comanda o Mesmo e se lhe revela na responsabilidade; ou a igualdade não é mais do que uma ideia abstrata e uma palavra. Não se pode separar o acolhimento do rosto de que ela é um momento. O próprio estatuto do humano implica a fraternidade e a ideia do gênero humano. (LÉVINAS, 1980, p. 191-192).

Com efeito, a metafísica de Lévinas, e sua conseguinte hermenêutica da afetividade, ciosa da existência da alteridade que se quer ouvir na morada hospitaleira e fraterna da linguagem, impõe ao jurista cada vez mais a persecução de um modelo participativo de processo judicial, o qual franqueie em sua mais lata a extensão a mostração da outridade, o dizer das partes em juízo e dos vários outros que se manifestam a partir delas, tomado não como mero parlatório, mas como efetiva construção democrática de um provimento jurisdicional lavrado no acontecer compreensivo argumentativamente erigido.           


REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: UNICAMP; Petrópolis: Vozes, 2012.

HUSSERL, Edmund. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. Da reserva do possível à máxima efetividade: uma reflexão hermenêutica sobre a concretização dos direitos fundamentais sociais. 2017. 255 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

______. Direito, utensiliaridade e (in)autenticidade: reflexões hermenêuticas à luz de “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, de Clarice Lispector. In: OLIVEIRA, Alfredo Emanuel Farias de; BASTOS, Paula Vilaça; COSTA, Rafael Oliveira (Orgs.). Direito,hermenêutica e política: estudos em homenagem à Professora  Maria Helena Damasceno e Silva Megale. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2016.

MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. A fenomenologia e a hermenêutica jurídica. Belo Horizonte: Fundação Vale Ferreira, 2007.

______. Hermenêutica da afetividade ou uma introdução à filosofia de Emmanuel Lévinas. In: MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva (Org.). A invocação da justiça no discurso juspolítico. Belo Horizonte: Imprensa Universitária da UFMG, 2013.

______. O induzimento como forma de violência e injustiça no processo juspolítico: a premência da educação, janela de esperança para a lucidez. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, n. 100, p. 173-216, jan./jun., 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O homem e a comunicação: a prosa do mundo. Tradução de Celina Cruz. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Sobre o autor
Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. A hermenêutica da afetividade de Emmanuel Lévinas e sua contribuição para a interpretação e a aplicação do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6231, 23 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61892. Acesso em: 21 nov. 2024.

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