Resumo: Este artigo tem a finalidade de pautar a atual mudança da teoria das incapacidades sofrida no Código Civil através da Lei 13.146/15 conhecida como Estatuto da pessoa com deficiência. A mudança que iremos tratar se refere à alteração que declara o deficiente relativamente incapaz, ou seja, a partir da lei atual, a pessoa com deficiência tem maior autonomia para exercer seus direitos civis. Para que se compreenda a importância da Lei de inclusão, traremos à tona reflexões a respeito de: Estado Democrático de Direitos, princípio da igualdade e dignidade humana; que é algo inerente ao ser humano independente de quem seja. A teoria das incapacidades é uma forma de proteger as pessoas em seus negócios civis, por isso é questionável a decisão que revogou os incisos: I,II e III do art. 3º do Código Civil, (essa alteração será vista no artigo através da tabela “Alterações sofridas no Código Civil a respeito das incapacidades”) que agora passa a trazer maior responsabilidade aos deficientes no momento de exercer negócios civis. Esses questionamentos são tratados por diversos doutrinadores, por isso para reforçar o conteúdo exposto no artigo, trouxemos declarações de Nelson Rosenvald e José Fernando Simão com a finalidade de expor posicionamentos já formados a respeito do assunto.
PALAVRAS-CHAVES: Direitos. Dignidade. Igualdade. Deficiência. Incapacidade.
Sumário: Introdução; 1. Estado Democrático de Direitos; 1.1 O Princípio da Dignidade Humana; 1.2 Direitos Humanos; 1.3 Princípio da Igualdade; 2. Incapacidades do Código Civil brasileiro; 3. Considerações sobre o efeito da lei 13.146/15. Conclusão. Referências
Introdução
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 46,6 milhões de pessoas que declaram ter algum tipo de deficiência, ou seja, 23,9% da população brasileira. Com esses números expressivos nota-se a relevância da Lei 13.146 promulgada em 06 de Julho de 2015, conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Usando-se da supramencionada como base para elaboração desse artigo científico que têm como objetivo: expor a dualidade presente entre a Lei 13.146/15 com atual modificação do vigente Código Civil, que deixa de declarar o deficiente como absolutamente incapaz, ou seja, a partir de agora a pessoa com deficiência possui maior autonomia para exercer seus direitos civis. Essa autonomia pode se tornar perigosa, já que muitos não detêm de aptidão alguma para realizar negócios jurídicos. Contudo, é inegável considerar que a Lei de Inclusão se valeu como chave para a liberdade de exercer direitos.
Para que se compreenda as suas nuances, se faz necessário que se traga à tona reflexões a respeito de: Estado Democrático de Direitos, Direitos Humanos e Teoria das Incapacidades.
Nota-se que para a construção de um Estado Democrático de Direitos, é essencial que o ordenamento jurídico vigorante, tenha como o princípio base a dignidade humana. Nesse contexto, constata-se que a República Federativa do Brasil, o tem, como um dos seus princípios fundamentais. Nortear-se pelos Direitos Humanos, que se encontra positivados na CF/88, que deixa claro em seu texto a importância do respeito aos mesmos.
Expondo ainda a Teoria das Incapacidades, que tem como propósito proteger a relações negociais e patrimoniais, nota-se uma dualidade questionável na decisão que revogou os incisos: I,II e III do art. 3º do Código Civil, que agora passa a trazer maior responsabilidade aos deficientes no momento de exercer negócios civis.O presente artigo tem como propósito apresentar a relevância dos supracitados na construção da reflexão crítica e sistemática abordada no referido, usando-se de assertivas de alguns operadores do Direito, que contribuíram para uma maior compreensão a respeito da dignidade humana, incapacidades e a nova forma classificatória.
1. Estado Democrático de Direitos
A Constituição Federal de 1988 consagra no preâmbulo e no caput do art. 1°, o Estado Democrático de Direitos como um dos princípios fundamentais:“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Sendo assim; vários direitos, garantias e deveres foram assegurados e protegidos dentro da Constituição. Podem-se considerar tais direitos como o direito à vida, a dignidade da pessoa humana, respeito pelos direitos humanos, direitos sociais e a liberdade.
José Afonso da Silva interpreta o Estado Democrático de Direitos com a junção do Estado de Direito e Estado Democrático:
“A promoção de um processo de convivência social numa sociedade, livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses distintos da sociedade, há de ser um processo de libertação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de direitos individuais, coletivos, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas, suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.” (SILVA, 2009).
Lênio Streck e Bolzan de Morais apontam que:
“O Estado Democrático de Direito tem como princípios a constitucionalidade, entendida como vinculação deste Estado a uma Constituição, concebida como instrumento básico de garantia jurídica; a organização democrática da sociedade; um sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, de modo a assegurar ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, bem como proporcionar a existência de um Estado amigo, apto a respeitar a dignidade da pessoa humana, empenhado na defesa e garantia da liberdade, da justiça e solidariedade; a justiça social como mecanismo corretivo das desigualdades; a igualdade, que além de uma concepção formal, denota-se como articulação de uma sociedade justa; a divisão de funções do Estado a órgãos especializados para seu desempenho; a legalidade imposta como medida de Direito, perfazendo-se como meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo de normas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; a segurança e correção jurídicas.” (STRECK, DE MORAIS, 2006).
Pode afirmar que é um Estado que aduna anseios do Estado Liberal e do Estado Social, mas que não deixa de abranger as reivindicações sociais, econômicas e políticas. É um Estado que visam direitos e obrigações para todos, sem distinção.
Dessa forma, qualquer indivíduo é considerado um cidadão que têm direitos e deveres que devem ser garantidos e cumpridos de acordo com as normas.
1.1 O princípio da Dignidade Humana
A dignidade é algo que sempre fez parte do homem, embora, por vezes, não tenha sido considerada em todos. Ou seja, muitos tiveram sua dignidade negligenciada e não reconhecida no decorrer da história da humanidade.
O princípio da dignidade humana, de acordo com Nunes (2002, p.45), é o “principal direito fundamental constitucionalmente garantido”.
Tal princípio situado no rol de direitos fundamentais apresentado na Constituição Federal de 1988, tendo como os artigos 1° ao 4°:
Art. 1º, III da Constituição Federal:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.’’
Art. 4°, II da Constituição Federal:
“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
II – prevalência dos direitos humanos.’’ (grifo nosso)
Segundo a observação de Comparato:
“A nossa Constituição de 1988, [...], põe como um dos fundamentos da República ‘a dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, inciso III). Na verdade, este deveria ser apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas como um dos seus fundamentos.”
E mais na frente:
“se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa, cujas especificações individuais e grupais são sempre secundárias.” (COMPARATO 1998, apud, VANINI, 2005, p.176)
Outra interessante definição relacionada à dignidade da pessoa humana foi feita por Scarlet:
“[...]temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (SCATLET, 2001, apud SANTANA, 2010, p.60, grifo nosso)
Conforme Marcelo Novelino:
“[...]a dignidade da pessoa humana possui três dimensões normativas: I) metanorma, para atuar “como diretriz a ser observada na criação e interpretação de outras normas […] ”; II) “princípio, que impõe aos poderes públicos o dever de proteção da dignidade e promoção dos valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna; e, III) uma regra, a qual determina o dever de respeito à dignidade, seja elo Estado, seja por terceiros […]”(NOVELINO, 2016, apud CARVALHO, REZENDE, 2017, p. 254).
Considera assim a dignidade humana como o ponto moderador do Estado e do Direito, sendo aplicável em toda interpretação e podendo ser apontada como fundamental a todos as relações, e por consequência a existência de qualquer pessoa, indiferentemente se as mesmas possuírem alguma limitação, sendo visual, de locomoção, física auditiva, cognitiva e outras.
O Princípio da Dignidade Humana é necessário, para que qualquer indivíduo consiga exercer os direitos que lhe são assegurados, para a obtenção de uma vida digna.
1.2 Direitos Humanos
A origem do conceito dos Direitos Humanos encontra-se na filosofia, dos “direitos naturais”, supostamente atribuídos por Deus. Por isso, muitos filósofos defendem a não existência de diferenças entre os direitos humanos e os direitos naturais, sendo John Locke um dos mais importantes filósofos a desenvolver tal teoria.
Os Direitos Humanos são os direitos e liberdades que todos os seres humanos possuem, indistintamente. Estando compreendidos em um enorme conjunto de direitos, como por exemplo, direitos políticos, econômicos, culturais, civis e sociais. Sendo assim, abrange o direito à liberdade, à vida, à moradia, à saúde, à educação, à paz, ao progresso e ao meio ambiente, dentre vários outros.
A ONU proclamou uma declaração que deve ser respeitada por todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E de acordo com essa Organização, os Direitos Humanos “são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O que são direitos humanos, 2017).
1.3 Princípio da Igualdade
Como previsto em variados trechos da Constituição Federal de 1998, destacando o caput do Art. 5°, o princípio da igualdade:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (grifo nosso).
Ressaltado por Coutinho (2013, apud, SCHMIDT, 2016, p. 15), a igualdade tem sido identificada “como peça-chave na concepção e no desenho das normas por legisladores, em sua implementação por meio de iniciativas de política pública e em sua interpretação por juízes e tribunais”.
Dessa forma, além da igualdade na lei, o objetivo é a busca da igualdade concreta, sendo essa na atual realidade onde tudo se ocorre, e que por vezes para tornar alguém igual, necessite desigualar outrem.A dificuldade diante disso seria saber até que ponto o tratamento desigual não gera um ato inconstitucional.
De acordo com Rui Portanova, na paráfrase de Marcelo Amaral da Silva (2003, p.1):
“A interpretação desse princípio deve levar em consideração a existência de desigualdades de um lado, e de outro, as injustiças causadas por tal situação, para, assim, promover-se uma igualização. [...]. Sua razão de existir certamente é a de propiciar condições para que se busque realizar pelo menos certa igualização das condições desiguais.” (SILVA, 2003, apud SILVA, 2011).
Dessa maneira, o Princípio da Igualdade teria uma aplicação dupla: uma teórica, que seria de “repulsa os privilégios injustificados” e de prática, com uma contribuição na diminuição dos “efeitos decorrentes das desigualdades em um caso concreto”. Assim, a igualdade passaria a figurar como “ponte entre o direito e a realidade que lhe é subjacente” (SILVA, 2003, apud SILVA, 2011).
Vale salientar que a proteção das pessoas com deficiência deve ser feita através das leis sendo essa a teoria, e o cumprimento das mesmas na prática. Só desta forma a dignidade será completa e protegerá a igualdade sem discriminação.