Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Direito à Vida x Liberdade de Crença

Ponderação frente aos Direitos da Personalidade

Exibindo página 1 de 3
Agenda 27/11/2017 às 10:06

Explora-se os direitos da personalidade sob um enfoque civil- constitucional, visando abordar, essencialmente, o conflito de valores abrigados em nossa Constituição, relacionados à recusa de transfusões de sangue.

Resumo: O presente trabalho objetiva explorar os direitos da personalidade sob um enfoque civil-[1]constitucional, visando abordar, essencialmente, o conflito de valores abrigados em nossa Constituição relacionados à recusa de transfusões de sangue e, assim, colocando em risco a própria vida, justificada em crença religiosa. O trabalho tratará os direitos fundamentais como um todo, através de uma base teórica concisa e válida para o enfrentamento da questão específica. O conflito entre a vida e a crença religiosa deve ser solucionado utilizando-se de uma ponderação, à luz de casos concretos, no propósito de que um direito não exclua o outro. Todavia, em situações limites, um deverá prevalecer, para atender a circunstância em questão. Vários fatores influem nesta atividade de ponderação, tais como a capacidade do sujeito e a possibilidade iminente de morte diante da recusa do tratamento. A doutrina majoritária entende, que caso o sujeito seja capaz, ele pode manifestar sua recusa, desde que a ausência da transfusão não ofereça iminente perigo de morte. Desta feita, de acordo com grande parte da doutrina, não pode haver recusa quando a ausência do tratamento puder levar à morte, pois o direito à vida seria, indubitavelmente, o primordial, o eixo sobre o qual se constrói os demais direitos.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Vida. Crença Religiosa. Testemunhas de Jeová. Colisão de direitos.

Abstract: This paper aims to explore the rights of the personality under a civil constitutional approach, aiming at addressing, essentially, the conflict of values ​​housed in our Constitution related to the refusal of blood transfusions and, thus, endangering one's life, justified in religious belief. The paper will deal with fundamental rights as a whole for a concise and valid theoretical basis for addressing the specific issue. The conflict between life and religious belief must be solved by considering, in the light of concrete cases, that one right does not exclude the other. However, in limited situations, one should prevail to meet the circumstance in question. Several factors influence this weighting activity, such as the ability of the subject and the imminent possibility of death in the face of refusal. The majority doctrine thus understands that if the subject is capable he can manifest his refusal, provided that the absence of the transfusion does not offer imminent danger of death. This time, according to much of the doctrine, there can be no refusal when the absence of treatment can lead to death, since the right to life would undoubtedly be the primordial one, the axis on which the other rights are built.

Key words: Fundamental Rights, Life, Religious Belief, Jehovah's Witnesses, Collision of rights, Weighting, Principle of the primacy

Sumário: Introdução. 1 Os Direitos Fundamentais – Direito à Vida x Liberdade de crença. 1.1 Direito à vida. 1.2 Direito à liberdade de crença. 1.3 Das Testemunhas de Jeová.  2. Do Conflito de Direitos: Direito à Vida x Direito à Liberdade de Crença. 2.1 Colisão de Direitos Fundamentais. 2.2 Ponderação à luz do caso concreto. 3 Recusa à Transfusão de Sangue e o Direito à Vida. 4. O princípio do primado do direito mais relevante. Referências.


Introdução

A Constituição Federal de 1988 surge num contexto de busca da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade, nas mais diferentes áreas. Elege a instituição do Estado Democrático de Direitos, o qual se destina “a assegurar o exercício dos direitos e garantias fundamentais”, positivados no art.5º da Carta Magna.

Aqui, trataremos da colisão de direitos fundamentais à vida e à liberdade de crença, com enfoque na comunidade cristã Testemunhas de Jeová, cuja doutrina não permite que seus fiéis se submetam à transfusão de sangue, independentemente das circunstâncias.

Deve o direito de liberdade de crença prevalecer sobre o direito à vida? A liberdade de escolha do sujeito – recusar ou não a transfusão de sangue - ainda que haja perigo de cessação de sua vida, deve prevalecer? O médico deve agir conforme seu Código de Ética, prevalecendo assim o ordenamento de que ele não pode deixar de usar todos os meios possíveis para preservação da vida? Em caso de recusa do paciente, pode o médico agir contrariamente? Em que casos ele poderia contrariar a liberdade de escolha do paciente? Como solucionar esse conflito? Qual seria o direito mais relevante?

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A lei infraconstitucional de nr.10.406/2002 – Código Civil brasileiro – protege os direitos da personalidade, positivados em seus arts. 11 a 21.

O Código Penal brasileiro traz em seu rol da Parte Especial, Título I – Dos crimes contra a pessoa - as penalidades contra os que atentam contra esses direitos individuais.

O Código de Ética Médica traz em seu ordenamento que ao médico é devida a obrigação de lançar mão de todos os recursos disponíveis para salvar vidas. Preconiza ainda, no caso de que trataremos, que o balizador para a transfusão de sangue, sem consentimento do paciente, deva ser o perigo iminente, ou não, de morte do sujeito.

Apresentaremos uma base teórica sólida para subsidiar o enfrentamento da questão específica.

Há correntes distintas em relação ao entendimento sobre qual seja o melhor posicionamento em casos específicos, todas bem fundamentadas e respeitadas, que nos ajudarão a adotar nosso posicionamento em relação à melhor solução do conflito.


1. Dos Direitos Fundamentais – Direito à Vida x Liberdade de crença

1.1 Direito à vida

A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo, em seu artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.  O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos, sendo certo que este é, para todos, o “direito dos direitos”, pois sem ele não há que se falar nos demais direitos.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu art.6º, III, dispõe que:

“1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei e ninguém poderá ser, arbitrariamente, privado de sua vida”

A vida é o direito mais precioso do ser humano. Sem ela, nada existe, sendo o advento de seu termo final a única certeza absoluta de toda a humanidade.

Por isso, na precisa síntese de BITTAR, é o direito “que se reveste, em sua plenitude, de todas as características gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez que se caracteriza um direito à vida e não um direito sobre a vida.”.

A Constituição Federal proclama, portanto, o direito á vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em duas acepções conforme Alexandre de Moraes (2005) “... sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna...”.

Como ente, todo ser humano tem direito essencial à vida. A ordem jurídica o assegura desde o nascimento, protegendo os interesses do nascituro (Código Civil, art. 2º).

Segundo o autor supracitado, o início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida de inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, formando o zigoto. Assim a vida viável começa quando se inicia a gravidez. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina.

1.2 Direito à liberdade de crença

Para Alexandre de Moraes (2005) a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação.

MORAES (2005, p.40) enfatiza que “A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”.

A CF/88 garante, em seu artigo 5º, VI, a inviolabilidade da liberdade de crença, assim sendo, a ninguém é dado o direito de violar a liberdade religiosa de outrem.

É o direito de cada ser humano, escolher livremente sua religião, prestando culto a Deus. Pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, inciso XVIII, “... Este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

Na concepção gramatical da palavra, verificamos os seguintes significados, segundo AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA:

“liberdade”. [Do lat. libertate] S. f. 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação: Sua liberdade, ninguém a tolhia. 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas.

Buscando, porém, um conceito estritamente jurídico, encontramos a seguinte definição:

“LIBERDADE”. S. f. (Lat. libertas) Faculdade que tem cada um de agir em obediência apenas à sua vontade.

A crença religiosa é um direito humano fundamental, reconhecido constitucionalmente prendendo-se à convicção pessoal que influencia a vida do crente. Isso é assim porque a religião organiza as relações postuladas pela situação de dependência do homem das realidades sobrenaturais. O ser humano adere a uma religião não por preferência pessoal e subjetiva, mas por crer numa realidade transcendente e superior a tudo. Essa crença leva o homem a manter comportamentos rituais que o aproxima de Deus e o faz obedecer a normas cujas origens e sanções estão além de qualquer poder humano, modelando, por essa razão, seus pensamentos e ações.

Se o homem, por ser autônomo, escolhe suas normas e valores, faz seus projetos, decide e age, a autonomia está ligada à liberdade individual, baseada na vontade, por isso, esta não pode ser imposta a ninguém.  A autonomia em saúde é o poder de decisão sobre a escolha do médico ou da medida terapêutica admitida, em razão de credo ou não, após consentimento por paciente capaz, por parente ou representante.

Se uma pessoa, por razão religiosa, não aceitar a transfusão de sangue quando for o único meio de salvar sua vida, o médico, ante o princípio da autonomia da vontade, tem o dever de fazê-la ou não?

“Libertas est naturalis facultas ejus quod cuique facere libet nisi si quid vi aut jure prohibetur”. O brocado latino, que significa que a “liberdade é a faculdade natural de fazer o que se deseja, desde que não haja proibição da força ou direito”, já nos traz um indício de onde encontraremos as limitações ao exercício da liberdade.

1.3 Testemunhas de Jeová

Aqui o enfoque será sobre a comunidade cristã denominada Testemunhas de Jeová.

Surgida em 1870, sua doutrina é propagada no mundo inteiro. São famosos por suas atividades de evangelizar de casa em casa, promovendo o conhecimento das Sagradas Escrituras a todos. Seus adeptos são estudiosos da Bíblia e isso é uma exigência de quem se compromete a ser uma Testemunha de Jeová.

Para as Testemunhas de Jeová, a rejeição de tratamento com uso de sangue e derivados para si e aos filhos, seja qual for a circunstância, é ponto fundamental de seus preceitos religiosos.

Para eles “O sangue é entendido como sinônimo de vida e a transfusão, como um pecado que corrompe sua pureza”.

Quem desconhece sua doutrina, condena, veementemente, a sua recusa à transfusão de sangue. Talvez sejam mais conhecidos pela sua radical ideia contrária à transfusão de sangue do que por toda sua história.

É interessante mostrar os fundamentos bíblicos em que eles se baseiam para tais convicções. O primeiro dele consta em Gênesis 9:3-4: “Tudo quando se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde. A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis”.

Levítico 17:10-14, in verbis:

“E qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que comer algum sangue, contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo. Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pela alma. Portanto tenho dito aos filhos de Israel: Nenhum dentre vós comerá sangue, nem o estrangeiro, que peregrine entre vós, comerá sangue. Também qualquer homem dos filhos de Israel,ou os estrangeiros que peregrinam entre eles, que caçar animal ou ave que se come, derramará o seu sangue e o cobrirá com o pó; Porquanto a vida de toda a carne é o seu sangue; por isso tenho dito aos filhos de Israel: Não comereis o sangue de nenhuma carne, porque a vida de toda a carne é o seu sangue, qualquer que o comer será extirpado”.

Deuteronômio 12:23

“Somente esforça-te para que não comas sangue; pois o sangue é vida; pelo que não comerás a vida com a carne”.

Atos 15:28-29

“Pois pareceu bem ao espírito santo e a nós não impor a vocês nenhum fardo além destas coisas necessárias: que persistam em se abster de coisas sacrificadas a ídolos, de sangue, do que foi estrangulado e de imoralidade sexual. Se vocês se guardarem cuidadosamente dessas coisas, tudo irá bem com vocês.”

Em suma, para os pertencentes a essa comunidade, o sangue representa a vida.

Acreditando nisso, então eles evitam tomar sangue por qualquer via não só em obediência a Deus, mas também por respeito a ele como dador da vida, independentemente, se isso puder levá-los à morte ou não.

Mas graças ao avanço tecnológico, já existem técnicas de tratamento com hemoderivados fracionados que substituem a transfusão total de sangue, como a circulação extracorpórea, utilizando somente a proteína albumina ou o fator Rh, por exemplo. Expansores de volume de plasma isentos de sangue, hemodiálise e hemodiluição mediante uso de circuito fechado, não se utilizando de sangue, são aceitáveis pelas testemunhas de Jeová.

Segundo Guilherme Rabello, membro da Colih (Comissão de Ligação com Hospitais), órgão que a Associação Torre de Vigia, que reúne as testemunhas de Jeová, mantém para acompanhar casos médicos: “A gente não fala em punição para quem descumpre. Mas é a integridade de um princípio que deve ser preservada. A Bíblia não fala em exceção”, afirma o engenheiro.

Segundo Rabello, estão barradas a transfusão de sangue total e a de qualquer um de seus quatro principais componentes (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma), porque eles mantêm a simbologia bíblica do sangue.

Quanto à terapia com hemoderivados fracionados (receber só a proteína albumina ou o fator Rh, por exemplo), cabe ao fiel decidir.

Nesse passo, trazemos o caso de Luana Manske. Uma menina de nove anos, com leucemia aguda, precisava de uma transfusão de sangue. Mas os pais, adeptos da religião Testemunhas de Jeová, não autorizaram o procedimento.

Seus pais, testemunhas de Jeová, não assinaram a autorização para a transfusão de sangue, e a Unimed entrou na Justiça. "Como a menina era menor de idade, a Justiça autorizou sem dificuldades", lembra o advogado da Unimed Vitória, Marcelo Devens.

O pai de Luana, o empresário Evanildo Manske, disse que conversou com os médicos sobre os impedimentos que sua religião impõe. Segundo ele, os médicos utilizaram no tratamento hemoderivados fracionados do sangue, ou seja, pequenas quantidades de elementos do sangue.

Este tipo de procedimento é considerado pelas testemunhas de Jeová como "uma questão de consciência", ou seja, o fiel decide se quer ou não aceitar. Para salvar a filha, ele aceitou.

"Os médicos me garantiram que não foi transfusão. Não aceitaria pertencer a uma religião que teria que deixar um filho morrer para agradar a um ser num universo que a gente nunca viu. Não sou um fanático. Quem é pai sabe", afirma.

Luana, aos 10 anos, concluiu o tratamento. Seus pais criaram uma página no Facebook para que amigos pudessem acompanhar sua recuperação. A família segue como testemunha de Jeová e Luana foi batizada na religião e já retornou para a escola.

Sobre a autora
RUBIA MARA SILVA

Acadêmica de Direito na Faculdade Pitágoras de Betim

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!