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A política externa independente e as relações Brasil e África:

Agenda 08/07/2019 às 17:00

Resgata-se um breve estudo do período caracterizado pela política externa independente (PEI), assim chamado devido à emancipação de ações diplomáticas frente à lógica bipolar da Guerra Fria.

Resumo: Este artigo trata das iniciativas da política externa brasileira para a África durante a Política Externa Independente (1961-1964), período das primeiras ações de relevância em relação ao velho continente, haja vista as dificuldades decorrentes dos vínculos mantidos à época com Portugal.


O oficial interesse pela África como fenômeno da década de 1960 se deu nos governos de Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964), período caracterizado como da Política Externa Independente (PEI) devido à independência de ações frente à lógica bipolar da Guerra Fria. Consiste no momento da política exterior brasileira em que se começou a esboçar uma política externa africana no Brasil, registrando-se iniciativas importantes em diversas áreas.

O presidente Jânio Quadros mandou como embaixador à Gana um jornalista negro, Raymundo Sousa Dantas, até então o único embaixador negro do Brasil, nomeado pelo próprio Presidente. Segundo Dávila (2011), a decisão de enviar seu adido de imprensa para Gana foi um exemplo típico da intenção de romper com o passado. Essa nomeação também tinha um sentido peculiar. A cor de Sousa Dantas gerava resistência entre diplomatas e intelectuais brasileiros, o que provocou no próprio embaixador uma reflexão existencial sobre a relação entre ser negro e representar o Brasil.

Em primeiro lugar, a nomeação de Sousa Dantas foi praticamente ignorada pelo Itamaraty. Já em Gana, o ministro se queixou ao Ministério das Relações Exteriores com relação à longa demora das respostas aos seus telegramas, uma delas chegando a longos cinco meses. O embaixador enfrentou aquilo como uma crítica racista ao seu nome para ocupar o cargo, no que o teria deixado ofendido e isolado. Em seu diário sobre a vida diplomática, escreveu enquanto estava nesse país da África Ocidental: “Felizmente, nem tudo é motivo de amargura. Recebo carta do Brasil, dando notícia dos estudos de meu filho Roberto. Foi um conforto, nesta manhã depressiva. Que Deus o ajude, e, por outro lado, que lhe tire da cabeça a ideia de ingressar na carreira diplomática. Sei o que sofrerá, por ser negro...” (DANTAS, 1965, p. 40).

A partir de 1960 começou o processo de abertura de embaixadas brasileiras na África e também de consulados. Abriu-se embaixadas em Costa do Marfim, Etiópia, Gana, Nigéria e Senegal, além de novos consulados em Angola, Congo, Moçambique, Quênia e Rodésia do Sul, atual Zimbábue (DIGOLIN, ASSIS, AGATA, 2016). Para várias embaixadas Jânio também enviou pessoas renomadas, tendo como exemplos o envio do escritor Rubem Braga para o Marrocos e do pintor Cícero Dias para a Tunísia (DÁVILA, 2011).

Ademais, como sublinhado por Cervo e Bueno (2008), a ênfase na política externa brasileira para a África nesse período aparecia em acordos culturais; no programa de bolsas para estudantes africanos de nível superior, que vinham para o Brasil por meio do IBEAA (Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos), criado em 1961; e na criação de um sistema de consultas firmado com a Organização Interafricana de Café (OIAC) - visando à defesa do seu preço no mercado internacional.

Apesar do curto governo, Jânio determinou que se fizesse reexame da política brasileira para o velho continente. Criou-se o Grupo de Trabalho para a África, formado no Itamaraty em 3 de março de 1961, “incumbido de apresentar conclusões sobre as missões diplomáticas e repartições consulares nos novos Estados africanos e de propor medidas concretas para o desenvolvimento das relações econômicas, comerciais e culturais entre o Brasil e o continente africano” (CERVO E BUENO, 2008, p. 320). A conclusão desse grupo de trabalho indicava que a presença brasileira na África deveria “estar isenta de qualquer tendência de intervencionismo ou atitude partidária nos assuntos locais ou nas questões ainda não-consolidadas internacionalmente” (CERVO E BUENO, 2008, p. 320).

O ministro Afonso Arinos, chanceler de Quadros em 1961, tinha a ideia de que ao Brasil estaria reservado o papel de destaque no mundo afro-asiático, dadas suas características étnicas e culturais. Este mundo afro-asiático seria marcado, em grande parte, por nações subdesenvolvidas e recém-independentes. O próprio Jânio acreditava que o Brasil deveria ajudar no contato entre a África e o restante do Ocidente. Como relembra Cervo e Bueno: “Comparada às gestões anteriores, a de Jânio deu atenção especial às relações com a África Negra. A frase ‘Portugal pode perder Angola; mas o Brasil não!’ a ele atribuída é ilustrativa” (2008, p. 319).

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Devemos lembrar que, ao mesmo tempo em que o Brasil desenvolvia uma política externa distinta, rebeliões violentas irrompiam nas colônias portuguesas na África, de modo que o país tentou adotar uma posição mais firme em relação à descolonização africana. Dávila (2011) salienta que a mudança proposta pela PEI, questionando as relações com Portugal e apoiando a descolonização, foi saudada por aqui pelos inimigos de Salazar e do colonialismo, tais como José Honório Rodrigues e Álvaro Lins.

No início do governo Quadros, mais precisamente em 22 de janeiro de 1961, o antigo funcionário colonial português, Henrique Galvão, sequestrou o navio do país ibérico Santa Maria no litoral da América do Sul, visando levá-lo até Angola para incitar uma rebelião contra Portugal. A primeira insurreição em Angola ocorreu um mês mais tarde, quando supostos militantes do MPLA foram presos em consequência do sequestro. Após ser perseguido por navios de guerra portugueses e norte-americanos, o Santa Maria atracou em Recife, de maneira que o presidente Jânio concedeu asilo a Galvão e seus companheiros, ganhando protestos de Portugal.

Havia, entretanto, complicações na política externa brasileira para a África na década de 1960. A primeira consistia na contradição entre a linha de argumentação utilizada pelo Itamaraty no período, segundo a qual o país tinha plena convicção anticolonial, sendo favorável à autodeterminação dos povos, ao passo que, por outro lado, possuía laços especiais com a ex-metrópole, oficializados, inclusive, pelo Tratado de Amizade e Consulta. Esse tratado consagrava a comunhão política entre ambos e previa consultas em todos os problemas internacionais de comum interesse, dificultando a possibilidade de manifestação oficial do Brasil a favor da emancipação das colônias portuguesas no continente vizinho. O problema é que esta contradição não convencia muitos governantes africanos, que identificavam essa inconsistência da posição brasileira (PENNA FILHO; LESSA, 2007).

A segunda se refere ao fato de que a África do Sul não era aceita pela maioria das nações africanas, exatamente pela dominação da minoria branca sobre a maioria negra, regime que lembrava o colonialismo. Resulta daí que a situação do Brasil perante os Estados africanos ficava desconfortável em virtude da existência de um significativo intercâmbio comercial com a África do Sul, o qual se manteve até 1975.

Haja vista a forte relação que o Brasil mantinha com Portugal, fato é que algumas vezes Brasília enfrentou essa questão em favor de nações africanas. Como disse Amorim: “Entre 1961 e 1964, até o golpe militar, houve uma tentativa de ação mais consistente. Não só continuamos a abrir Embaixadas nos países africanos, como nossos representantes na ONU passaram a adotar posições mais firmes com relação à descolonização na África, inclusive no que dizia respeito às colônias portuguesas” (2011, pp. 476-477).

Apesar dos desafios, a Política Externa Independente foi o primeiro momento considerável da política externa brasileira em direção à África, no que se somou ao Pragmatismo Responsável do governo Geisel, e, em maior amplitude, ao período Lula como os pontos altos de uma relação histórica oscilante e dependente, sobretudo, de vontade política.


Referências bibliográficas:

AMORIM, Celso. Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011.

CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico: O Brasil e o desafio da descolonização africana, 1959-1980. Tradução Vera Lúcia Mello Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

DANTAS, Raymundo Sousa. África difícil: missão condenada (diário). Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1965.

DIGOLIN, Kimberly Alves; ASSIS, Jonathan de Araujo de.; AGATA, Débora. O continente africano na política externa brasileira: de Jânio Quadros a Lula da Silva. In: Cadernos do Tempo Presente, n. 24, jun./jul. 2016, pp. 94-109. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/tempo/article/viewFile/5664/4681>. Acesso em: 27 out. 2017.

PENNA FILHO, Pio; LESSA, Antonio Carlos Moraes. O Itamaraty e a África: as origens da política africana no Brasil. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 39, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2561/1520>. Acesso em: 27 out. 2017.

Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. A política externa independente e as relações Brasil e África:: período de inovações e desafios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5850, 8 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62554. Acesso em: 22 nov. 2024.

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