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A responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe por conduta culposa da equipe cirúrgica

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Agenda 09/12/2017 às 22:20

Não há unanimidade a respeito da configuração ou não da responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe por conduta culposa da equipe cirúrgica, mas há norma legal geral a respeito, bem como um conjunto de direcionamentos e circunstâncias trazidos pela doutrina e jurisprudência.

RESUMO: O presente trabalho tem a intenção de estudar a história mundial da responsabilidade civil médica, para melhor entender sua evolução e sua atual aplicação no território nacional. Também pretende analisar as normas e a legislação brasileira a respeito da responsabilidade civil médica, os pressupostos da responsabilidade civil médica, as espécies desta responsabilidade, os tipos de obrigações e as consequências advindas. Tudo isso para que, enfim, seja analisada a responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe diante de conduta culposa causadora de dano a paciente praticada por um membro da equipe cirúrgica. Sobre esta problemática, há legislação cível e consumerista que trazem normas gerais aplicadas ao tema. Mais precisamente, a doutrina e a jurisprudência se manifestam acerca do tema, com muita discussão a respeito, sem unanimidade, sendo variados os posicionamentos e dependentes de inúmeros fatores e detalhes de cada caso concreto.

Palavras-chave: responsabilidade civil; responsabilidade civil médica; médico cirurgião-chefe; cirurgia; equipe cirúrgica; conduta culposa; dano; paciente.

Sumário: 1 ESCORÇO HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA..1.1 A Origem.1.2 Roma.1.3 Egito.1.4 Franca..1.5 Grécia .1.6 A evolução no direito brasileiro.2 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA.2.1 Pressupostos.2.1.1 Conduta Omissiva ou Comissiva.2.1.2 Culpa.2.1.3 Dano.2.1.4 Nexo de Causalidade.2.2 Responsabilidade Civil Contratual e Extracontratual.2.3 Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva.2.3.1 Responsabilidade Civil Subjetiva..2.3.2 Responsabilidade Civil Objetiva.2.4 Obrigação de Meio e de Resultado. 2.4.1 Obrigação de Meio.2.4.2 Obrigação de Resultado.3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO CIRURGIÃO-CHEFE POR CONDUTA CULPOSA DA EQUIPE CIRÚRGICA.CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil médica cada vez mais ganha importância no mundo jurídico, tendo normas gerais e específicas a si aplicadas, bem como grandiosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito.

Aliado a isso, com a evolução da Medicina, do acesso a informações, e do caráter consumerista que vigora atualmente, a responsabilidade civil médica e todos os detalhes que a cercam estão sendo cada vez mais aplicados e sendo objeto de interessantes estudos.

Importa observar que, dentro da responsabilidade civil médica, há inúmeras matérias em debate constante, sem posicionamento pacífico, podendo ser citada como uma destas a responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe por conduta culposa de integrante da equipe cirúrgica que venha a causar dano a paciente.

Assim, o presente trabalho tem o objetivo de analisar com profundidade e denodo a matéria mencionada, objeto de muitos debates jurídicos, tanto por parte da doutrina quanto por parte da jurisprudência, que afeta na Medicina os profissionais atuantes como médico cirurgião-chefe de forma direta e, consequentemente, os demais integrantes da equipe cirúrgica, bem como o paciente envolvido.

Para tanto, o trabalho desenvolve-se através da pesquisa jurisprudencial, em livros de doutrina, em artigos científicos, bem como através da interpretação da legislação aplicável para uma ampla e devida compreensão do tema proposto.

No Capítulo I, restará verificado o escorço histórico da responsabilidade civil médica, sua origem e aplicação em diversas nações da antiguidade, verificando-se também quanto à evolução no direito brasileiro.

Isso porque, na antiguidade, o médico era visto como uma divindade, munido de poderes milagrosos, sendo este conceito modificado ao longo da história, quando se passou a entender que a Medicina não se tratava de uma conduta divina, mas sim de uma conduta humana.

A partir da mudança da concepção da Medicina como conduta humana, a responsabilidade dos profissionais médicos passou a ser objeto de estudo, definição, delimitação e aplicação, sendo modificada e aprimorada ao longo dos tempos.

No Capítulo II, serão abordadas questões específicas sobre a responsabilidade civil médica, mormente seus pressupostos, sua divisão em contratual e extracontratual, subjetiva e objetiva; e, por fim, será tratada a obrigação de meio e a obrigação de resultado.

É de grande e valiosa importância para a matéria foco desse trabalho a devida análise dos conceitos e controvérsias inerentes trazidas no Capítulo II, haja vista que as questões suscitadas no referido Capítulo irão nortear cada caso concreto e podem modificar drasticamente o rumo da perquirição da responsabilidade civil médica, dependendo como for interpretada e aplicada.

Ademais, o conteúdo do Capítulo II é imprescindível ao conhecimento tanto dos operadores do Direito quanto aos operadores da Medicina, de modo que tenham ciência das regras, direitos e limitações do atuar médico, podendo optar pelo desenvolvimento de sua atividade de modo devido, se precavendo de situações a si desfavoráveis facilmente evitáveis.

No Capítulo III será devidamente analisado e debatido o foco do presente trabalho, ou seja, irá trazer à baila a discussão central, concernente à responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe por conduta culposa de integrante da equipe cirúrgica que venha a causar dano a paciente.

Neste último Capítulo serão abordadas as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, com demonstração da opinião majoritária e minoritária a respeito.

Além disso, restará demonstrado que esta matéria possui inúmeras possibilidades na prática médica, trazendo os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais para cada situação apontada.


1 ESCORÇO HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

1.1 A Origem

O estudo da responsabilidade civil médica se torna cada vez mais interessante e necessário, haja vista a mudança da imagem do médico e do cenário que o mesmo encontra-se inserido.

Por muitos séculos, o médico foi relacionado à religião, milagre e mágica, mais adiante como um indivíduo exemplar sem qualquer dúvida da qualidade de seus serviços, como será apresentado abaixo.

Contudo, atualmente o médico e o paciente tem presente um distanciamento entre si, fazendo com que a massificação de sua relação transformasse a relação de confiança antes existente em uma relação de consumo.

Deste modo, torna-se muito importante conhecer, mesmo que de forma breve, a evolução da responsabilidade civil médica através dos tempos, a fim de melhor compreender os detalhes que cercam a teoria e a realidade desta matéria atualmente, bem como sua aplicação no sistema jurídico brasileiro, posto que a responsabilidade civil do médico possui seu alicerce na história.

Nos primórdios, a medicina não era conhecida como uma ciência, mas sim como um ato divino, religioso e cercado de misticismo, onde os médicos eram tratados como divindades, sem qualquer questionamento.

Porém, ao longo dos tempos, provavelmente quando o ato médico deixou de ser tratado como um ato divino e passou a ser visto como uma conduta humana, o mal resultado e o insucesso do procedimento médico passaram a ser atribuídos ao médico.

Neste sentido, Miguel Kfouri Neto (2010, p. 50):

Nos primórdios, curiosos e observadores que receitavam ervas ou outros tratamentos medicinais, eram considerados curandeiros, magos e sacerdotes dotados de poderes sobre-humanos. As atividades de combate às doenças não se preocupavam com seus estudos, e sim essencialmente com sua cura. Muito embora, já nesta época, era atribuída ao feiticeiro à culpa do mal resultado, caso o paciente não fosse curado. 

E mais:

Desde a antiguidade os povos têm preocupação em elaborar regras para a conduta profissional daqueles que exerciam a medicina. Porém, não existia a medicina da forma como conhecemos atualmente, pois não havia estudo de moléstias nem meios de especialização para sua prática. A Responsabilidade médica surgiu no momento em que o homem percebeu que a cura não era um ato divino, e sim ato realizado por pessoas com determinadas habilidades e práticas. Neste momento a realização da cura de moléstias passou a ser vista como profissão, surgindo daí a responsabilidade por sua prática. (OLIVEIRA, D., 2008).

Ainda:

A arte da medicina, nos primórdios da civilização, era essencialmente artesanal. A cura praticada era vista como um dom divino, até porque pouco se conhecia da anatomia e da fisiologia humanas.

Os métodos e rituais de cura não sofriam questionamentos, e os médicos eram reverenciados tal qual verdadeiros sacerdotes. Em contrapartida, o insucesso também lhes era cobrado na mesma proporção, pelo que a história da responsabilidade civil por vezes se confunde com o próprio desenvolvimento da reparação do dano médico. (DANTAS, 2013).

Assim, verifica-se que a responsabilidade médica inicia de forma amena quando os indivíduos a retiram da seara divina/religiosa, exigindo penalização do médico que comete falhas em sua prática.

Porém, somente a partir do século XVI inicia-se um movimento para a codificação da responsabilidade médica, com o estabelecimento de sua culpa e castigo ou valor que o médico teria que arcar.

A história da reparação advinda do erro médico inicia-se documental e oficialmente com o Código de Hamurabi (aproximadamente 1790-1770 a.C.), o qual trazia disposições sobre a vida civil, bem como sobre reparação de dano físico (artigos 196 a 201).

Diretamente sobre erro médico era tratado nos artigos 218, 219 e 226, do mencionado diploma legal, com previsão de penas severas contra médicos que falhassem nos procedimentos prestados, as quais variavam desde o ressarcimento financeiro, até a amputação das mãos e mesmo morte do médico, sendo graduadas em conformidade ao dano causado, mas sem qualquer verificação de culpa do profissional.

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Traduzindo o Código de Hamurabi, E. Bouzon (apud PANASCO, 1984, p. 36/37) comenta o artigo 218, mencionando que:

Se o paciente não tiver sucesso em sua intervenção cirúrgica e o paciente morrer ou ficar cego e esse paciente for um “awilum” neste caso será aplicada contra o órgão considerado culpado, a mão do médico, a pena de talião. Esta era, sem dúvida, uma maneira drástica de evitar outras intervenções desastrosas desse médico. 

Miguel Kfouri Neto (2001, p. 38) leciona:

O primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o Código de Hamurabi (1790-1770 a.C.), que também contém interessantes normas a respeito da profissão médica em geral. Basta dizer que alguns artigos dessa lei (215 e ss.) estabeleciam, para as operações difíceis, uma compensação pela empreitada, que cabia ao médico. Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal.

Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção cirúrgica, o médico o matou – e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com uma certa satisfação profissional, como o faz hoje: a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto.

Se essa era a lei – prossegue Avecone -, pode-se imaginar com que serenidade o médico se preparava para uma cirurgia, com os meios de que então dispunha. Por óbvio, só operações de extrema simplicidade eram praticadas, também porque a anatomia era muito pouco conhecida.

Guilherme Martins Malufe (2000) menciona que:

O primeiro documento histórico que faz referência ao erro médico é o Código de Hamurabi (1790 – 1770 a. C.), que trazia também algumas normas sobre a profissão médica na época.

O Código dizia, por exemplo, que nas operações difíceis de serem realizadas, haveria uma compensação pelo trabalho. Por outro lado, era exigida muita atenção e perícia por parte dos médicos, pois caso algo saísse errado, penas severas eram impostas a eles.

Verifica-se, assim, que a medicina passou a ser extremamente arriscada e fatal aos próprios profissionais que a praticavam, haja vista os riscos corporais e fatais que se submetiam caso o procedimento médico não fosse considerado exitoso, posto que eram punidos sem verificação de culpa, da forma mais objetiva possível, limitando e prejudicando de forma geral a prática médica da época.

Após o Código de Hamurabi, Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas (2013) menciona que, do ano de 1500 até 600 a.C., vigeu a Lei de Moisés, sendo que:

[...] seu capítulo XXI do Êxodo, v. 18 e seguintes, espaço dedicado especificamente à reparação do dano corporal, através do procedimento conhecido como a Lei de Talião, assim como no Código de Hamurabi, já que praticamente coexistentes em países vizinhos, que durante mais de cinco séculos mantiveram em comum guerras, compra e venda de escravos, práticas cotidianas corriqueiras, etc., e até aproximadamente o ano 1000 a.C. não conheceram a indenização fixada por juiz, em quantidade determinada.

Nesta época, o castigo para o médico em caso de resultados adversos ou de má prática era superior ao preço que receberia pelo êxito. Assim, como exemplo, se por uma cura de um homem livre, pela qual receberia dez moedas de prata, obtivesse maus resultados, suas mãos seriam cortadas. Em tratando um escravo, e este ficasse inutilizado ou viesse a falecer, estaria obrigado a dar outro escravo.

Durante e após os períodos acima mencionados, inúmeros outros diplomas e manuscritos foram elaborados, nos mais diversos povos, mas os detalhes e informações precisas sobre os mesmos se perderam no tempo e acabaram sendo esquecidos ao longo dos séculos.

Finalizada a menção sobre a origem da responsabilidade civil médica de forma geral, cabe abordar a continuidade histórica desta matéria de forma sistemática, nas principais nações com suas especificidades, como será discorrido a seguir.

1.2 Roma

A responsabilidade civil atual foi fortemente influenciada pelo direito romano.

No ano de 286 a.C., com a Lei Aquilia, Roma passou a direcionar ao Estado o controle das lides, retirando da esfera particular, bem como passou a estabelecer a reparação/indenização do dano e não mais a punição/vingança pessoal.

Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 04/05) afirma que:

A diferenciação entre a ‘pena’ e a ‘reparação’, entretanto, somente começou a ser esboçada ao tempo dos romanos, com a distinção entre os delitos públicos (ofensas mais graves, de caráter perturbador da ordem) e os delitos privados. Nos delitos públicos, a pena econômica imposta ao réu deveria ser recolhida aos cofres públicos, e, nos delitos privados, a pena em dinheiro cabia à vítima. [...] O Estado assumiu assim, ele só, a função de punir. Quando a ação repressiva passou para o Estado, surgiu a ação de indenização. A responsabilidade civil tomou lugar ao lado da responsabilidade penal. É na lei Aquilia que se esboça, afinal, um princípio regulador da reparação do dano.

Miguel Kfouri Neto (2001, p. 38) assim ensina sobre a responsabilidade civil médica em Roma:

Entretanto, com a Lex Aquilia de Damno, plebiscito posterior a Lei Hortensia, do século III a.C., formulou-se conceito de culpa, bem como fixaram-se algumas espécies de delitos que os médicos poderiam cometer, como o abandono do doente, a recusa à prestação de assistência, os erros derivados da imperícia e das experiências perigosas.

Como consequência, estabelece-se a obrigação de reparar o dano, limitando-o ao prejuízo econômico, sem se considerar o que hoje se define como dano moral.

Ainda:

A Responsabilidade Civil como hoje a conhecemos recebeu grande influência do Direito Romano. Foi em Roma que se solidificou a idéia de que a vingança privada não deveria ter lugar na vida em sociedade, cabendo ao Estado o poder – e mais – o dever de tutelar as relações interpessoais, disciplinando a indenização devida pelos danos causados por um particular a outrem.

Não se excluiu de todo a punição retributiva. A diferença passou a ser a permissão ou não do Estado para que pudesse ser aplicada. (DANTAS, 2013).

Por fim:

Poucos textos sobreviveram a esta época. Foi a obra de Justiniano, depois do modernismo da Lei Aquília, a que recompilou, codificou e promulgou a legislação da época através do Corpus Juris Civilis. Dentro dos livros que compunham este tratado, o Digesto é o livro que traz a matéria civil, e nele se indica a forma de valoração do prejuízo patrimonial (gastos médicos, diminuição de renda por conta de incapacidade temporária, gastos futuros, etc) e extrapatrimonial (prejuízos psicológicos e à honra).

Prejuízos que eram valorados segundo a Lei Aquília, já que considerava que o homem livre não tinha preço, ao contrário do escravo. Este último, quando ‘danificado’, gerava ao seu ‘dono’ o direito à indenização, que variava segundo a extensão do dano e a qualificação do escravo, ou seja, sua aptidão para a execução de determinadas tarefas. (DANTAS, 2013).

Deste modo, verifica-se que através da Lex Aquilia nascem os primeiros direcionamentos e princípios da responsabilidade médica, eliminando-se as severas sanções da idade média, bem como analisando-se a culpa de forma individualizada, pela conduta do médico e não somente pelo resultado do procedimento.

Neste período, a medicina ganhou mais foco profissional e foi possibilitada sua evolução, pelo fato do Estado ter modificado o sistema legal da época relativo à responsabilização do profissional médico.

1.3 Egito

No Egito, a profissão do médico era de muita importância, ocupando o topo da sociedade da época, sendo comparada ao sacerdócio.

Pelo motivo de ser equiparada ao sacerdócio, a atividade do médico possuía privilégios e imunidades, porém, desde que os médicos orientassem suas condutas profissionais aos mandamentos provenientes do documento conhecido como “Livro Sagrado”, um verdadeiro acervo de regras que deveria ser cumprido à risca.

Sendo que, mesmo que o paciente estivesse morrendo, o médico ainda seria obrigado a seguir o contido no referido documento, não podendo usar outras formas para salvá-lo, sob pena de aplicação de diversas sanções severas contra si, inclusive morte.

Wanderlei Lacerda Panasco (1984, p. 37) leciona que:

No Egito os médicos possuíam uma alta posição social. Confundindo-se, muitas vezes, com os sacerdotes. Grandes potentados procuravam suas cidades para se tratarem. [...] Eram eximidos dos tributos e geralmente auxiliados mediante fundos públicos. [...] De acordo com alguns autores, existia um livro com as regras do exercício da ciência médica, as quais os médicos deveriam respeitar, convenientemente. Respeitadas as regras, mesmo que o paciente viesse a morrer não eram punidos, o que não ocorria em caso contrário.

Ainda:

No Egito, os médicos possuíam elevada posição na sociedade. No entanto, o exercício da profissão deveria o médico guiar-se pelas regras determinadas em um livro, mesmo que isso acarretasse a morte do paciente, já que o uso de outros métodos não descritos no livro poderia gerar punições para o médico. (OLIVEIRA, D., 2008).

Pela breve exposição, verifica-se de forma clara o exagero e a falta de lógica da aplicação prática de normas à responsabilidade civil médica no Egito.

1.4 França

A França trouxe uma mudança ao cenário da responsabilidade civil médica da idade média, além disso, aprimorou as concepções romanas sobre a matéria.

Uma das principais mudanças foi a distinção entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal, que anteriormente eram apenadas com o mesmo tipo de penalidade.

Conforme ensina Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 5):

O direito francês, aperfeiçoando pouco a pouco as idéias românicas, estabeleceu nitidamente um principio geral da responsabilidade civil, abandonando o critério de enumerar os casos de composição obrigatória. Aos poucos, foram sendo estabelecidos certos princípios, que exerceram sensível influência nos outros povos: direito à reparação sempre que houvesse culpa, ainda que leve, separando-se a responsabilidade civil (perante a vítima) da  responsabilidade penal (perante o Estado); a existência de uma culpa contratual (a das pessoas que descumprirem as obrigações) e que não se liga nem a crime nem a delito, mas se origina da negligência ou imprudência. Era a generalização do principio aquiliano: in lege Aquilia et levissima culpa venit, ou seja, o de que a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar.

Importante mencionar que, com a criação das universidades, aproximadamente no século XIII, os graduados em medicina passaram a ter reconhecimento profissional, advindo, com isso, organizações médicas que trouxeram proteção aos seus membros.

Hildegard Taggesell Giostri (2004, p. 26) explica que, “mesmo com toda essa evolução, foi somente em 1.335, por decreto de Jean I, Rei da França, é que se restringiu o exercício da medicina aos formados nas universidades.”

Séculos depois, houve uma determinação da Academia de Medicina de Paris de que a responsabilidade médica se restringiria a apenas moral e não pecuniária, tendo como justificativa os diversos aspectos e particularidades que envolvem tratamentos e procedimentos médicos, sendo corroborado este entendimento pelas Cortes de julgamento durante muito tempo.

Pelo referido entendimento, somente haveria a responsabilização médica se houvesse a prova de falha grave e grosseira, negligência, imprudência ou imperícia manifesta, sendo que cabia sempre ao autor/paciente o ônus desta prova.

Havendo, assim, um caráter de imputabilidade muito forte relacionado aos médicos naquele momento, sendo ainda mais firmado pela figura do perito médico, que exercia importantíssimo papel no norte dos processos relacionados a imputações de má prática profissional.

Sobre a responsabilidade civil na França, colhe-se clara explicação: 

Os franceses assumiram postura bastante peculiar quanto à responsabilidade médica, tendendo à imputabilidade, em virtude da multiplicidade de fatores – e do caráter subjetivo da maioria deles – capazes de influenciar os resultados de um procedimento médico.

Havia uma forte corrente doutrinária que defendia a necessidade de que não só o dano fosse efetivamente comprovado através de perícia, realizada por profissionais destacados, mas que também se provasse que este mesmo dano decorreu de manifesta imprudência, imperícia ou negligência.

O próprio ato de questionamento e pedido de ressarcimento era por vezes encarado como uma tentativa de enriquecimento ilícito, ou ainda como uma forma torpe de buscar vingança contra o médico, em virtude de um resultado desfavorável, causado de forma não intencional por parte do mesmo. Se alegava que o profissional não poderia ser responsabilizado pelo acaso, pelos acontecimentos causados pelo destino, e que nenhum médico – em princípio – laboraria em busca do fracasso. (DANTAS, 2013).

Durante os anos de 1825 e 1833, aproximadamente, a experiência de imputabilidade dos profissionais médicos descrita acima acarretou em situações extremamente danosas e graves a pacientes, levando o legislador a avaliar aquele cenário de imputabilidade.

Porém, a mudança do mencionado cenário se iniciou efetivamente no julgamento de um caso onde se discutia a má prática profissional médica, na Corte Civil do Tribunal de Cassação de Paris, provocando uma verdadeira revolução na jurisprudência francesa e na jurisprudência de outros países.

A respeito, vale trazer o ensinamento de Miguel Kfouri Neto (2001, p. 44/45):

Newton Pacheco ressalta a prudência e circunspecção com que as Cortes francesas apreciavam a responsabilidade médica, verificáveis pela análise de mais de um século de jurisprudência.

Referido autor passa a narrar, então, a verdadeira revolução operada na jurisprudência francesa, de 1832 em diante, desencadeada a partir do processo em que sobressai a atuação do Procurador Dupin: ‘O caso, em resumo, foi o seguinte: O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como conseqüência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foulcault ingressa em juízo contra o médico. Nasceu daí um dos mais famosos processos submetidos à justiça francesa.

A sociedade dividiu-se. A Academia Nacional de Medicina da França pronunciou-se a favor do médico e, solicitada pelo Tribunal, nomeou quatro médicos, dos maiores obstetras da época. O resultado do laudo foi o seguinte: 1. Nada provado que o braço fetal estivesse macerado; 2. Nada provado que fosse impossível alterar a versão manual do feto; 3. Não havia razões recomendáveis para a amputação do braço direito e, muito menos, do esquerdo; 4. A operação realizada pelo Dr. Helie deverá ser considerada uma falta grave contra as regras da arte.

Apesar da imparcialidade do laudo, a Academia impugnou-o e outro é emitido por outros médicos, que chegam a conclusão contrária à primeira manifestação dos Delegados da Academia.

O Tribunal de Domfront condenou o Dr. Helie ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos.’

Doutrinou, então, o Procurador Dupin – e a ensinança ainda hoje revela-se atual: ‘[...] do momento em que houve a negligência, leviandade, engano grosseiro e, por isso mesmo, inescusável da parte de um médico ou cirurgião, toda a responsabilidade do fato recai sobre ele, sem que seja necessário, em relação à responsabilidade puramente civil, procurar se houve de sua parte intenção culposa’.

Oportuno transcrever trecho do parecer do Procurador-Geral André Marie Jean-Jacques Dupin no referido julgamento, citado por Genival Veloso de França (2010, p. 206/207):

O médico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são às vezes; não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do juiz determinar cada caso sem afastar-se dessa noção fundamental: para que um homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; que tenha sido possível agir com mais vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos e que a ignorância sobre esse ponto não seja admissível em sua profissão.

Para que haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção: basta que tenha havido negligência, imprudência, imperícia grosseira e, portanto, inescusáveis. [...]

Que os médicos se confortem: o exercício de sua arte não está em perigo; a glória e a reputação de quem a exerce com tantas vantagens para a humanidade não serão comprometidas pela falta de um homem que falhe sob o título de doutor. Não se sacam conclusões e dificilmente se conclui partindo do particular ao geral e de um fato isolado a casos que não oferecem nada de semelhante. Cada profissão encerra, em seu seio, homens das quais ela se orgulha e outros que ela renega.

Deste modo, na França operou-se uma mudança da situação de imputabilidade que se praticava na época, tendo em vista o posicionamento extremado e causador de danos graves e demasiadamente danosos a pacientes que estavam sendo gerados.

Concluindo, o direito francês trouxe, na era moderna, as primeiras normatizações, doutrinas e jurisprudência a respeito da responsabilidade médica nos dois últimos séculos até os dias atuais, servindo como suporte ao direito brasileiro e de vários outros países.

1.5 Grécia

Na Grécia, já havia um cenário mais avançado em relação à responsabilidade médica, posto que aproximadamente no século V a.C iniciou-se um importante desenvolvimento da medicina, desenvolvendo-se igualmente o tratamento jurídico a questões relativas a esta matéria.

Claramente se verificam elementos contrários à Lei de Talião.

Além disso, na Grécia nasceu Hipócrates, autor do juramento até hoje repetido pelos graduados em medicina e responsável por apontar a medicina como uma arte humana e não de divindades.

Ou seja, a medicina foi, a partir disso, tratada como de caráter científico e não mais religioso.

Como menciona Miguel Kfouri Neto (2010, p. 54), dos estudos desta medicina “científica” resultou o Corpus Hippocraticum, que se resume em uma construção filosófica aristotélica, que começa a transformar a medicina em uma ciência mais racional e menos empírica, cuja síntese mais conhecida é o juramento citado. 

E Fernanda Schaefer (2002, p. 21) menciona que o referido juramento de Hipócrates (“pai da medicina”) foi atualizado no ano de 1948 pela Declaração de Genebra, sendo a partir disso recitado pelos graduados nas colações de grau de medicina pelo mundo afora.

Como a medicina estava em seu ápice de desenvolvimento e era tratada efetivamente como uma ciência, este posicionamento moderno trouxe consigo importantes alterações referentes a apuração da responsabilidade médica.

Segundo Mariana Massara Rodrigues de Oliveira (2008, p. 21): 

Lentamente, vai se firmando o princípio de que a culpa do médico não se presume somente pelo fato de não ter ele obtido êxito no tratamento, mas de que ela deve ser analisada e individualizada com base na conduta seguida pelo profissional.

Assim, na Grécia, a responsabilidade civil do médico somente restaria caracterizada se fosse provada a inobservância aos preceitos e práticas médicas.

Como ensina Eduardo Dantas (2009), esta evolução foi normatizada através da elaboração da Lei Geral de Reparação, em Atenas, que passou a regulamentar verba indenizatória para pacientes vítimas de danos voluntários (doloso) e involuntários (culposo)

Urge mencionar a importância de Platão para a transformação ocorrida na Grécia, através de seu pensamento filosófico de que uma indenização à vítima teria o condão de modificar o ódio em futura amizade.

Neste norte, urge mencionar:

Platão foi responsável por uma pequena evolução, ao propor deixar de lado a Lei de Talião e se pensar apenas na indenização baseada na idéia filosófica de que o valor compensatório a ser pago poderia conduzir à transformação do ódio em amizade. E ainda, ao desenvolver a idéia do dano estético, ao propor aplicar as seguintes normas:

- Em caso de tentativa de homicídio da qual resultassem apenas lesões, o infrator seria condenado a indenizar a vítima em uma quantia "X".

- Se a tentativa de lesão fosse bem sucedida, deveria pagar o dobro.

- Se quisesse produzir um dano e deixasse seqüela estética, pagaria o triplo.

- Se a lesão estética fosse incurável, o pagamento indenizatório seria em quádruplo. (DANTAS, 2013).

Em resumo:

A efervescência cultural produzida da junção entre filosofia e ciência atingiu seu apogeu na Grécia, permitindo o intercâmbio entre disciplinas antes afastadas, tais como a filosofia e a anatomia, possibilitando que os métodos de análise, diagnóstico e cura pudessem ser exercidos de forma mais racional e lógica. A medicina se transformava cada vez mais em ciência, e na medida em que sua importância crescia, as atenções do Estado para ela se voltavam, cujo efeito era sentido através das diversas regulamentações que davam forma a sua natureza.

Esta mudança de pensamento permitiu alterações significativas no que tange à apuração das responsabilidades médicas. Antes culpado pelo insucesso de suas interferências sob qualquer condição, o profissional da medicina – sob a égide dos ensinamentos de Platão e Aristóteles – passou a ser responsabilizado não mais pelo resultado em si, mas por sua conduta profissional, por sua atitude de acordo com cada caso concreto.

A culpa médica, para ser atestada, deveria ser objeto da análise de outros profissionais que, em colegiado, emitiriam seu parecer. A culpa, portanto, só seria declarada se houvesse desatenção aos preceitos ou descumprimento das práticas e procedimentos médico-sanitários usualmente aceitos à época. (DANTAS, 2013).

Portanto, verifica-se o moderno cenário apresentado pela Grécia no que diz respeito a apuração da responsabilidade médica, proveniente do conceito da medicina como uma ciência, bem como dos grandes e conhecidos estudiosos e mestres lá existentes que foram cruciais para esta transformação.

1.6 A evolução no direito brasileiro

No Brasil, a origem da responsabilidade civil se deu com as Ordenações do Reino, que era baseada no direito romano, mencionado como fonte subsidiária do direito.

Mais adiante, em 1830, no Código Criminal há disposição expressa sobre o dever de satisfação, dever de ressarcimento ao dano causado pelo autor do fato danoso à vítima.

Naquela época, não havia distinção entre responsabilidade civil e criminal, pois a responsabilidade civil sempre vinha sendo atrelada à responsabilidade criminal.

A mudança deste posicionamento veio com o ilustre Teixeira de Freitas, conforme explica Néri Tadeu Câmara Souza (online):

Uma próxima fase, a terceira, tem início pela genialidade de Teixeira de Freitas, o qual não concordava que a responsabilidade civil estivesse ligada à responsabilidade criminal. Ele observava, em seus escritos, que o ressarcimento do prejuízo ocasionado pelo delito passava a ser abordado como competência de legislação civil. Isso ocorria, segundo ele, em conseqüência da Lei de 3 de dezembro de 1841 ter derrogado o Código Criminal, tendo revogado-lhe o art. 31 e o § 5º do art. 269 do Código de Processo. Nessa mesma época, portanto, o instituto da responsabilidade civil se consolida como independente da responsabilidade criminal, passando, também, a se fundamentar no conceito de culpa, desenvolvendo-se a teoria da responsabilidade indireta, sendo admitida a presunção de culpa no dano causado por coisas inanimadas. Desenvolve-se, na mesma época, o princípio da responsabilidade dos funcionários públicos.

Complementando, Marilise Kostelnaki Baú (2001, p.11) assim afirma:

No Brasil-Colônia, as Ordenações do Reino determinavam a obrigação de satisfação do dano, conforme comenta Valler, ao mencionar o art. 21, que tratava da obrigação do delinqüente de reparar o dano causado com o delito. O art. 22 determinava manter que a satisfação devesse ser a mais ampla possível e que, em caso de dúvida, a interpretação fosse feita em favor do ofendido. O art. 29, de sua vez, tratava da obrigação dos herdeiros do delinqüente em satisfazer o dano até o limite dos bens herdados.

Até o começo do século, a responsabilidade civil, no Brasil, no referente ao funcionário público, prevista na Constituição Federal, e quanto ao transporte de coisa, estabelecida no Código Comercial. Lei específica surgiu, pela primeira vez, em 1912, versando sobre a regulamentação da responsabilidade das estradas de ferro. O princípio norteador, genérico, sobre a responsabilidade aquiliana, adveio com os artigos 159 e 160 do Código Civil, de 1916. Dessas regras emanam todas as demais obrigações de reparação de danos.

Por muitas décadas, a doutrina brasileira tinha como passível de indenização através da responsabilização civil o descumprimento de normas contratuais e de normas legais.

Posteriormente, com o advento da Constituição Federal de 1988, houve o estabelecimento da indenização por danos morais; e em 1990, com o Código de Defesa do Consumidor, houve a previsão da responsabilidade objetiva.

A partir disso, a responsabilidade civil toma novos rumos, em uma nova era de direitos, conforme será abordado ao longo deste trabalho.

Sobre a autora
Carolina Heloisa Guchel Berri

Advogada. Pós-Graduanda em Direito Tributário Integrante da banca Nemetz & Kuhnen Advocacia Empresarial

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERRI, Carolina Heloisa Guchel. A responsabilidade civil do médico cirurgião-chefe por conduta culposa da equipe cirúrgica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5274, 9 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62644. Acesso em: 23 dez. 2024.

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