6. EXAME VITIMOLÓGICO
Exame vitimológico é aquele que visa pesquisar fatores que se relacionam à vítima no que tange aos precedentes pessoais, familiares e sociais, considerando os aspectos físico-psíquico, psicológico, social e ambiental, no intuito de obter dados que possam indicar o temperamento, caráter e personalidade da vítima, revelando a potencial tendência a vitimização e “colaboração” com o evento delituoso29.
Conforme expõe Oliveira, o exame vitimológico tem por intuito obter uma visão geral da personalidade da vítima que possui condutas que possam precipitar o delito30.
Este exame pode auxiliar a vítima a amadurecer a sua conduta, caráter e personalidade, evitando ataques futuros e traz à sociedade uma benéfica prevenção do delito, lidando com as causas que possam trazê-lo à tona31.
O exame vitimológico analisa os fatores exógenos e endógenos no processo vitimizatório, sendo elaborado por profissionais muldisciplinares: médicos, psicólogos, antropólogos, psiquiatras, dentre outros, auxiliando o juiz a verificar o perigo que a vítima traz a si própria, contribuindo para a convicção do magistrado. É necessária autorização judicial para que se realize o exame em questão, posto que deve ser realizado por peritos aptos, além da permissão da vítima, cujo objetivo é evitar constrangimentos e vitimização secundária, deverá ser realizado quando imprescindível para elucidar o delito32.
Hodiernamente, a ciência propicia medidas precisas de funções fisiológicas com os modernos polígrafos eletrônicos, além dos avanços das experiências científicas que analisam as influências dos fatores genéticos, como a hereditariedade através de gráficos dos registros de família, trazendo à baila o conhecimento de anomalias, implicações e dificuldades expostas por traços hereditários humanos, mormente no que tange à problemática criminal. Tais avanços podem e devem ser utilizados para o estudo e auxílio das vítimas, cuja principal vitimização é serem relegadas a segundo plano na realidade social33.
Não se verifica a utilização de nenhum desses métodos modernos no Brasil.
7. VITIMODOGMÁTICA
É o ramo da Vitimologia que estuda a participação da vítima no crime, analisando a real contribuição desta no fato34.
Por meio desses estudos se percebeu que a vítima não pode mais ser tratada como um ser inerte face ao crime, pois ela interage com o seu agressor, e, em alguns casos, cria situações de risco para si própria, influenciado o resultado danoso35.
Em relação à vítima, deve-se ressaltar que ela poderá, além de sofrer a vitimização primária (decorrente de sua relação com o infrator), sofrer uma vitimização secundária, decorrente do contato da vítima com as instâncias de controle social, que a tratam de maneira impessoal. Além da sensação de perda de tempo e de recursos, oriunda excessiva do sistema burocrático36.
A vítima, ao chegar à fase processual, confronta-se com o agressor, seus familiares e seu advogado; este, muitas vezes empenhado em demonstrar a falsidade da acusação, ou pretende deixar claro que a vítima mente, ou, como acontece com bastante frequência, busca desqualificá-la. Na melhor das hipóteses, a vítima é utilizada exclusivamente como meio de prova, e as suas necessidades não são levadas em conta37.
Na prática penal, esse enfoque vitimodogmático tem grande relevância, pois é dele que se originam institutos como o consentimento do ofendido, a concorrência de culpas e a provocação da vítima38.
Esses estudos podem levar a uma falsa ideia de existência de uma co-culpabilização do lesado diante de um fato criminoso, mas o que realmente se visa é uma punição mais justa ao autor do fato quando se for comprovado um comportamento inadequado e instigador por parte da vítima39.
Vitimodogmática é o ramo da Vitimologia cujo objetivo é estudar a participação da vítima no crime, através da análise da real contribuição desta no fato40.
8. A VÍTIMA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
O Código Penal não contempla a definição clara de vítima, porém, ela é mencionada na Parte Geral e na Especial, através de "condições, qualidades ou atributos, com que se conceitua ou se qualifica ou se exclui o crime, ou com que a pena principal é diminuída, atenuada, aumentada ou agravada, ou com que a pena acessória é aplicada”41.
Podem ser citados como menções à vítima no Código Penal42: o art. 20. do Código Penal em seu § 3° deixa de considerar as condições e qualidades da vítima, quando esta sofreu a lesão por erro, quando outra era a pessoa visada pelo delinquente; o art. 23, inciso II, onde há a exclusão da ilicitude na legítima defesa do agente diante da agressão da vítima; o art. 59. - caput, na fixação da pena, onde o juiz deve considerar, além das condições do agente, ao comportamento da vítima; o art. 61, II, c,i,j que preconiza o agravamento da pena em função da situação da vítima; o art. 65, III que garante a existência de circunstâncias atenuantes, no caso do delinquente ter cometido o crime sob influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; o art. 121, § 1°, homicídio privilegiado garante a diminuição da pena, por ter o autor do homicídio cometido tal delito sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima; o art. 121, § 4° traz a garantia de aumento de pena no homicídio culposo por não ter o delinquente prestado socorro à vítima; o art.122, parágrafo único, II prevê a duplicação da pena no induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio para o caso da vítima ser menor ou ter sua capacidade de resistência diminuída por qualquer causa; o art. 129, § 4° determina a diminuição da pena quando o agente foi provocado injustamente pela vítima e comete o crime logo após; o art. 133, § 3° determina o aumento da pena, no abandono de incapaz, se o agente for ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.
Conforme Moura Bittencourt43 a vítima conforme o Código Penal pode ser classificada de acordo com: sua agressão injusta ao agente; sua provocação; sua defesa; a lesão que outrem por erro venha sofrer em lugar da pessoa que realmente se desejava lesionar; suas condições subjetivas: idade, doença, parentesco ou sujeição à autoridade do agência; suas condições econômicas e sociais; suas manifestações de vontade; suas qualidades funcionais; conforme a violência ou ameaça contra ela dirigida; conforme a gravidade das lesões ou do dano por ela sofrido; de acordo com a pluralidade de pessoas lesadas; conforme a falta de socorro que lhe pode ser ministrado e sua situação de protegido pela autoridade.
9. A VÍTIMA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
Encontram-se no Código de Processo Penal brasileiro as expressões: vítima, ofendido, pessoa ofendida e lesado. Utiliza-se vítima para caracterizar a vítima penal, ou seja, o sujeito passivo do delito. No art. 188, III, do Código de Processo Penal pergunta-se ao réu se conhece a vítima; o art. 240, ss. determina que será feita busca domiciliar no intuito de proceder a apreensão de vítimas de crimes; o art. 458. do Código de Processo Penal trata da suspeição do jurado em função de seu parentesco com a vítima44.
À vítima é permitida a atuação no processo penal como parte querelante na ação privada, nos crimes onde só cabe a ação mediante queixa e nas ações públicas subsidiárias. Intervirá, por representação, quando for exigência para a propositura da ação pública, atuando como assistente do Parquet em todos os casos da ação pública, além de quaisquer outros casos onde a lei expressamente lhe concede a possibilidade de intervenção45.
Conforme propõe Salo Carvalho há a necessidade de se devolver à vítima o seu direito retirado pelo Estado (quando tomou para si o direito desta), dentro dos moldes da justiça penal consensual, observando-se, portanto, a tendência de tornar a vítima sujeito do processo e privatização do processo penal46.
Porém, argumenta-se contra tal ideia que o sujeito envolvido no conflito não possui imparcialidade para responder adequadamente ao caso e que a abdicação pelo homem da autotutela, concedendo ao Estado (imparcial) o poder-dever de solucionar os conflitos como substituto processual, foi uma conquista que retirou o ser humano da barbárie da vingança privada47.
O processo penal possui uma instrumentalidade garantista, defendendo o réu contra os poderes públicos e/ou privados desregulado. Ao se reintroduzir a vítima no processo penal deflagra-se a revitimização, pois o processo procura a recomposição de um fato para solucionar o caso penal, potencializando os efeitos da experiência vivia pela vítima48.
Não significa que o Estado não deve procurar a reparação do dano, pelo contrário: cabe ao Estado, pelo sua função intervencionista, tutelar a vítima, por intermédio de uma estrutura de apoio, através da compensação financeira e sistema de seguro público. Isto faz parte dos direitos sociais (direitos de segunda geração), buscando a intervenção estatal e não de garantias dos direitos individuais do réu no processo penal49.
Luiz Flávio Gomes defende que a justiça penal reparatória representa uma nova maneira de se conceber a reação ao delito, de buscar uma solução para o conflito penal50.
O Autor entende que não se busca a solução para um problema "humano, protagonizado por um infrator e uma vítima, ambos de carne osso" no modelo clássico de justiça penal, porém, apenas uma solução formal, de aplicação lógica jurídica, objetivando atender a expectativa do Estado de realizar sua pretensão punitiva51.
Destarte, a reparação do dano teria ficado relegada a segundo plano, não existindo uma real preocupação com a solução humana do conflito, cuja expectativa está além da simples realização da pretensão punitiva do Estado, que se funda no castigo imposto ao infrator. A vítima fica apenas no papel de mera declarante, com todos os percalços que disto poderá advir52.
A monopolização da Justiça pelo Estado acarretou a marginalização da vida, a política criminal clássica ocupa-se apenas do cumprimento do formalismo, a aplicação do castigo, independente se a pena cumprirá um papel ressociativo, preventivo e ignorando totalmente as expectativas de reparação do dano causado à vítima53.
Luiz Flávio Gomes defende que são medidas alternativas que colocam em prática a política reparatória em substituição à postura dissuasória da política clássica: a composição civil extintiva da punibilidade, somada à exigência de representação da vítima nas lesões corporais e a suspensão condicional do processo54.
10. A VÍTIMA E A LEI 9.099/95
A partir da vigência da Lei 9.099/95 o legislador brasileiro demonstrou uma maior preocupação com a vítima, tal lei foi um marco do reflexo da Vitimologia no direito brasileiro, embora tenha sido alvo de muitas críticas por ter demonstrado tendências despenalizadoras55.
O estabelecimento de critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, no campo processual penal são exemplos de inovações trazidas pela lei em epígrafe. A conciliação e a transação que ela propõe denota sua preocupação com a vítima, não buscando tão-somente uma decisão formalista, mas também a solução para o conflito e a reparação dos danos de forma híbrida, tanto no âmbito penal quanto civil, por intermédio da composição entre as partes, assumindo ares de título de força executiva quando homologado o acordo pelo juiz. São medidas despenalizadoras que também representam sua natureza híbrida - civil e penal: a transação penal prevista no art. 76, a representação prevista no art. 88. e a suspensão condicional do processo, no art. 8956.
A transação penal estabelecida pela Lei dos Juizados Especiais, entretanto, tem alguns pontos polêmicos, pois envolve a violação do princípio da presunção da inocência, tendo em vista que se aplica uma pena sem processo e sem juízo de culpabilidade. Argumenta-se favoravelmente que a aceitação da transação não confirma a culpabilidade penal, não gerando antecedentes criminais ou reincidência; apenas impedindo que o benefício seja usufruído pelo prazo de cinco anos57.
Critica-se a possibilidade da transação penal, alegando-se que o Poder Público estaria "abrindo mão" do processo, desconsiderando o exercício do jus puniendi 58.
A celeridade e a simplificação são as grandes aliadas da Lei 9.099/95, pois desburocratiza e simplifica a fase policial ao encaminhar o caso ao juízo em pouco tempo, inova o conceito de justiça penal. Sob o enfoque vitimológico, o procedimento favorece o relacionamento entre as partes, juízes e advogados, reduzindo a vitimização secundária59.
A vítima, no Juizado Especial Criminal, é o centro para a busca da solução do conflito neste modelo de justiça consensual, pois na justiça comum quem comete um crime, após cumprir a pena, terá quitado sua dívida com a sociedade, porém, não há preocupação com a vítima60.
Portanto, a Lei 9.099/95 apresentou uma evolução em relação aos ensejos da Vitimologia.
O modelo de justiça consensual é vantajoso para vítima, pois ela tem a possibilidade de ver a justiça realizada e garante uma pacificação social, à medida que apresenta rápidas perspectiva de solução. A aplicação prática da Vitimologia é encontrada nas determinações legais que exaltam a reparação dos danos em favor da vítima61.
Um dos objetivos da Lei dos Juizados Especiais é garantir a reparação dos danos sofridos pela vítima. A composição dos danos civis permite à vítima propor a execução no Juízo Civil, sem esperar o trânsito em julgado da sentença condenatória. O juiz na audiência preliminar, com a presença do representante do Ministério Público, do autor e da vítima e seus advogados, esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos civis, e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, ou multa. Essa proposta e sua aceitação poderão ocorrer em qualquer fase do procedimento, caso não tenha ocorrido na audiência preliminar, e abrange todas as infrações criminais de competência do Juizado Especial Criminal62.
A Lei 9.099 representa um marco no processo penal brasileiro ao romper com a estrutura tradicional de solução dos conflitos e estabelecendo uma substancial mudança na ideologia até então vigente63.
Observa-se que o objetivo da Lei 9.099/95 é buscar a paz social, com um mínimo de formalidades, relativamente à prática das infrações de menor gravidade. Busca, portanto, a composição do dano social resultante do fato, prevendo a reparação imediata do dano, ao menos em parte, com a composição e a transação64.
A Lei 9.099/95 demonstrou uma preocupação com a vítima, no sentido de reparação de dano e do seu próprio bem estar.