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A releitura do poder diretivo e o assédio moral organizacional

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Agenda 02/01/2019 às 09:30

3. OS LIMITES AO PODER DIRETIVO COMO ELEMENTOS ESSENCIAIS DE SUA CARACTERIZAÇÃO.

Independentemente da corrente que se adota, tem-se, como traço essencial das releituras do poder diretivo, o destaque dado aos seus limites, matéria ontologicamente afeita ao abuso de direito.

Assim, em todas as acepções afirma-se que a subordinação ou mesmo o poder empregatício não são absolutos. O empregado só é subordinado quanto a sua forma de prestar serviços e, ainda quanto a isso, não pode o empregador exigir jornadas excessivas, exposição a riscos desnecessários, cobrá-lo de modo abusivo, por exemplo.

Desta forma, existem limites ao poder empregatício e estão eles expressos na Constituição Federal, nas leis, nas normas coletivas, dentre outros instrumentos de proteção dos trabalhadores31. Para Adriane Reis de Araújo podem ser considerados, resumidamente, limites ao poder diretivo:

“(...) é proibido ao empregador exigir a prática de uma conduta ilícita ou que exponha as outras pessoas e o próprio empregado a situações nocivas, de grave perigo ou vexatórias, bem como exigir a prestação de serviços incompatíveis com a qualificação profissional correspondente à função para a qual o trabalhador foi contratado. As exigências empresariais desligadas da prestação de serviços são fundamentadas na obrigação de o empregado zelar pelo patrimônio da empresa e atuar com eticidade, lealdade, boa-fé e diligência, princípios igualmente dirigidos ao empregador. A prática empresarial faz vista grosso ao fato de a indeterminação desses conceitos não compactuar com toda sorte de ordens, por exemplo: é certo que a lealdade do empregado não pode ser postulada diante de um comportamento ilícito da empresa, ou então a diligência pressupor a disponibilidade diuturna do empregado. Logo, ao assalariado é reconhecido, mesmo na empresa, o exercício dos direitos fundamentais, notadamente, igualdade e liberdade, as quais devem ser consideradas no caso concreto”32

Adriane Reis de Araújo bem pondera que o Direito do Trabalho, ao longo de toda sua história, foi e ainda é marcado pela tensão entre os interesses daqueles que vendem sua força de trabalho e aqueles que a compram. É função teleológica do Direito do Trabalho a busca contínua por identificar as possibilidades de abuso decorrentes da desigualdade material das partes envolvidas na relação de emprego, com intuito de reconhecer o trabalhador como titular de direitos fundamentais à liberdade e igualdade, garantindo sua integridade física e moral no curso dessa relação33.

Conforme expressa a autora, o assédio moral organizacional é uma situação limite de abuso do poder empregatício, em que, muitas vezes, pode haver uma aparente situação de normalidade, sem agressões físicas ou verbais evidentes. O que constrange, humilha e assedia é a estrutura da empresa, é sua política de gestão, claramente ligadas ao exercício do poder empregatício e à subordinação do empregado34.


4. ABUSO DO PODER DIRETIVO E O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL.

A prática do assédio moral tornou-se objeto de discussão e estudos no Brasil com maior intensidade a partir dos anos 2000, com importantes trabalhos como de Margarida Barreto (2000, 2003 e 2005), Maria Ester Freitas (2001), Roberto Heloani (2003, 2004), a traduções dos livros de Marie-France Hirigoyen (2000, 2002) e Márcia Novaes Guedes (2004)35.

A caracterização e o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do conceito de assédio moral permitiu que, mais recentemente, fosse revelada uma nova face desta antiga prática: o assédio moral organizacional. Não se trata de um fenômeno tão recente, mas altamente contemporâneo. O assédio moral organizacional se insere em uma lógica de alto controle dos empregados por meio de técnicas de gestão que visam o aumento de produtividade e extinção de qualquer forma de tempo não dedicado exclusivamente à atividade.

Segundo Adriane Reis de Araújo, trata-se, portanto, da utilização da lógica e das técnicas desenvolvidas pela Sociedade Disciplinar, adaptadas pela Sociedade de Controle e inseridas nas empresas e fábricas por meio de modelos de gestão empresarial. É uma forma mais mascarada e encoberta do assédio moral36.

Apesar de incomparáveis as dores daqueles que sofrem qualquer forma de assédio, principalmente em seu ambiente de trabalho, o assédio moral organizacional mostra-se de grande perniciosidade, uma vez que muitos não conseguem identificá-lo, visualizando nas empresas uma situação de normalidade. Por ser menos visível e pelas vítimas não se resumirem a um número pequeno ou mesmo a um único indivíduo, sendo direcionado a todos os empregados, o assédio moral organizacional passa muitas vezes despercebido.

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Adriane Reis Araújo apresenta o seguinte conceito de assédio moral organizacional:

“(...) o conjunto de condutas abusivas, de qualquer natureza, exercido de forma sistemática durante certo tempo, em decorrência de relação de trabalho, e que resulte no vexame, humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todos os grupos às políticas e metas da administração, por meio de ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos e psíquicos”37

Do conceito traçado pela autora, há vários aspectos que merecem destaque. O primeiro revela-se no fato de que o assédio moral organizacional se dá em decorrência das relações de trabalho, ou seja, está diretamente relacionado com “ser trabalhador”. Assim, não se admite a ideia de assédio moral organizacional seja aquele praticado apenas dentro do espaço físico da empresa ou fábrica, mas todo aquele que alcance o trabalhador enquanto tal. Para ilustrar, Adriane Reis aponta exemplo de trabalhadores assediados quando saiam da empresa para realizar atividade sindical.38

Outro aspecto importante está na afirmação de que a prática lesiva consiste na ofensa a direitos fundamentais dos trabalhadores, desta forma, independente das vítimas apresentarem algum tipo de estresse ou doença psicossomática, o assédio moral organizacional ainda se configura. Trata-se de uma afronta objetiva ao trabalhador enquanto livre e igual39.

Além disso, permitir que o conceito seja aberto a toda conduta que viole direitos fundamentais e, assim, a dignidade do trabalhador, permite uma maior proteção, na medida em que não considera assédio somente atitudes pré-definidas, como a exclusão do trabalhador, imposição de punições humilhantes, entre outras. Toda e qualquer atitude que, por sua sistematicidade, viole a dignidade do trabalhador expondo-o a práticas vexatórias e humilhantes deverá ser considerada um assédio. “A conduta poderá ser exercida por meios quaisquer, desde que agrida a integridade moral do ser humano por ela afetado, e existe independentemente de seus efeitos”40.

Conforme afirma Adriane Reis de Araújo, a demonstração de qualquer tipo de comprometimento da integridade física ou mental do trabalhador deve servir como fator para aumentar o valor de uma indenização e não como critério para aferir a existência do assédio41.

Diante disto, o assédio moral é visto por Renato Muçouçah como:

(...) definimos o assédio moral coletivo como aquele em que o empregador, utilizando-se abusivamente do seu direito subjetivo de organizar, regulamentar, fiscalizar a produção e punir os empregados, utiliza-se desses direitos de forma reiterada e sistemática, como política gerencial, atentando contra os direitos humanos fundamentais dos empregados em todas as suas dimensões, geralmente para o incremento de sua produção. 42

Para Adriane Reis, e nisto se difere do conceito acima, apresentado, a finalidade do assédio moral organizacional não é mais causar dano ao empregado, excluindo-o, ou mesmo causar degradação ao meio ambiente de trabalho, essas são suas consequências. A finalidade, e nisto o conceito jurídico inova com relação ao clássico de assédio moral, é a adesão subjetiva dos trabalhadores aos interesses e metas das empresas43. O aumento de produção é uma consequência da adesão subjetiva.

Definir essa finalidade é interessante, pois, com isso, resta claro que as práticas adotadas pelas empresas alcançam todos os trabalhadores, embora possam expor diretamente ao vexame, humilhação, só alguns. Exemplo disso são os casos de trabalhadores obrigados a vestir-se de forma ridícula e humilhante por não terem alcançado determinada meta44. Ainda que só os que não atingiram o objetivo traçado sejam diretamente humilhados, a regra aplica-se a qualquer um. Não se trata de uma perseguição reiterada a um mesmo empregado. Um mês, o empregado pode ser humilhado, no outro, receber prêmio por produtividade. A existência da regra em si é vexatória e humilhante.

O que pretende a empresa que adota práticas assediantes como forma de estímulo é a adesão total dos trabalhadores às regras da organização, exercendo total controle e disciplina sobre cada um deles. Desta forma, “o efeito do assédio moral organizacional que resulta na exclusão da vítima é muito mais profundo: atinge todo o corpo de funcionários e acarreta um comprometimento maior do aspecto emocional de cada indivíduo com a produção”45

Trata-se, assim, do uso do poder diretivo do empregador para introduzir nos empregados os interesses da empresa, homogeneizando as distintas individualidades dos empregados, transformando-os em um ser. Não se afirma aqui que o empregado considerar válidos e verdadeiros os interesses da empresa e, junto com ela, persegui-los, constitui por si uma prática de violência. A agressão está em uma adesão totalizante, em que a empresa exige, como perfil dos trabalhadores, que estes abandonem todas as demais dimensões de sua personalidade, todos os seus interesses e desejos pretéritos para que carreguem somente aqueles que sejam bons para ela. Dispensar toda complexidade da personalidade do empregado, reduzindo-o a reprodução individual da empresa, é uma violência e um atentado contra a dignidade da pessoa humana.

Rompe-se, desta maneira, com a ideia de que o assédio moral dentro da empresa teria como finalidade somente a exclusão do empregado, fazendo-o desistir do seu posto de trabalho, sem que seja necessário pagar-lhe por uma rescisão sem justa causa. Na verdade, a finalidade é que os empregados assumam para si os interesses, a estrutura, o regulamento da empresa. Essa finalidade de conformação dos comportamentos dos empregados serve tanto para incluí-los quanto para excluí-los, incluindo os que se adéquam e excluindo os que não46. Os excluídos sofrem o que Lis Soboll considera ser um “darwinismo organizacional”, promovendo a eliminação dos menos adaptáveis47. Apesar de nefasto para os excluídos, o assédio alcança e prejudica a todos os trabalhadores.


CONCLUSÃO

Ante o exposto, percebe-se que a reconceituação do poder diretivo é profundamente impactada pela percepção de que seus limites não podem ser olvidados e dizem respeito ao próprio respeito ao direito ao trabalho como direito humano. Nesse sentido, a análise do abuso do poder direito ganha ainda mais relevo diante de novas práticas abusivas, como o assédio moral organizacional, que visam a, exatamente em seu excesso, atacar os direitos fundamentais dos trabalhadores. Diante disso, revisitar o poder diretivo e ressignificá-lo significa dar nova teleologia à própria relação de emprego, a fim de evitar que práticas perniciosas, como o assédio moral organizacional sejam naturalizadas.

Sobre a autora
Luísa N de Castro Anabuki

Advogada. Formada em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANABUKI, Luísa N Castro. A releitura do poder diretivo e o assédio moral organizacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5663, 2 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63115. Acesso em: 22 nov. 2024.

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