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Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso

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Agenda 05/07/2018 às 11:15

A postulação e o deferimento indiscriminado da Justiça gratuita, em vez de ampliar, causa sérios embaraços ao direito de ação dos hipossuficientes. Faltam critérios objetivos e recursos orçamentários para se equilibrar esta questão.

RESUMO: Este trabalho tem como objeto o estudo do uso regular e abusivo do benefício da justiça gratuita versus o princípio constitucional do amplo acesso à justiça, sem embargo do enorme desafio de bem gerir a escassez dos recursos provenientes do orçamento público, à luz da interpretação multidisciplinar dos principais institutos legais correlacionados. Foi realizada pesquisa qualitativa de caráter descritivo e explicativo, por meio de extensa análise documental e da literatura científica pertinente ao tema, procurando contextualizar, sinteticamente, a regulamentação da assistência jurídica no sistema judicial brasileiro, desde meados do século passado, as atuais repercussões da concessão e do indeferimento da justiça gratuita no direito de ação e seus reflexos orçamentários, com ênfase no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Conclui-se que a concessão indiscriminada da justiça gratuita pode, em vez de ampliar, causar embaraços ao direito de ação dos hipossuficientes, porquanto o amplo acesso à justiça não impõe como pré-requisito a gratuidade universal do processo judicial, mas o acesso à ordem jurídica justa. Logo, o moderno movimento de acesso à justiça exige que o Poder Judiciário adote critérios objetivos de julgamento para regular satisfatoriamente o exame do benefício e evitar indesejáveis distorções em decorrência de abusos processuais, sempre de acordo com os fins sociais da lei e as exigências do bem comum.

Palavras-chave: Assistência jurídica – Assistência judiciária – Justiça gratuita – Acesso à justiça – Orçamento

SUMÁRIO:1. Introdução; 2. As três ondas de acesso à justiça e sua repercussão no expressivo aumento do acervo processual do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais; 3. Breve distinção entre assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita; 4. Natureza jurídica das custas processuais; 5. Disciplina legal da gratuidade da justiça; 6. Evolução da linha interpretativa do tema nos tribunais pátrios; 7. Algumas nuances do direito comparado; 8. Impactos do custeio da justiça gratuita no orçamento do TJMG; 9. A necessidade do advento de um critério uniforme e objetivo para a concessão do benefício da gratuidade; 10. Considerações finais; 11. Referências bibliográficas.


1. Introdução

Em caso de lesão ou ameaça a direito, o jurisdicionado anseia pela materialização da clássica expressão universalmente difundida no meio jurídico, “Fiat justitia et pereat mundus”, vale dizer, “Faça-se justiça, embora pereça o mundo”, a qual Hegel (1821, p. 114/115), com singular perspicácia, aprimorou para “Fiat justitia ne pereat mundus”, isto é, “Faça-se justiça para que o mundo não pereça”.

No entanto, quando dois princípios constitucionais, previstos no artigo 5º, incisos XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito – e LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos –, encontram-se em rota de colisão, sobretudo num momento histórico em que a arrecadação tributária estatal é cada vez maior, mas, ao mesmo tempo, os recursos provenientes do orçamento público nunca são suficientes para atender às demandas da sociedade, de que modo a concessão ou o indeferimento da justiça gratuita podem se materializar, em face da aparente ambiguidade entre os textos da própria Constituição Federal/1988, da Lei nº 1.060/1950, parcialmente revogada, e da Lei nº 13.105/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil, sem que haja ofensa ao direito fundamental do amplo acesso à justiça?

De fato, a CF assegura expressamente o amplo acesso à justiça, também denominado de princípio do direito de ação ou princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, em seu artigo 5º, inciso XXXV. Todavia, a efetivação do direito fundamental do acesso à justiça implica reexame metodológico da aplicabilidade de certos institutos, notadamente da assistência jurídica integral e gratuita, constitucionalmente garantida pelo mesmo artigo 5º, inciso LXXIV, tendo em vista o espantoso e crescente número de pedidos de obtenção da benesse legal nos casos concretos submetidos a julgamento, devida ou indevidamente, o que acaba gerando impactos extremamente negativos no orçamento público dos tribunais e, via de consequência, sensíveis prejuízos a todos os jurisdicionados.

Constata-se que, até hoje, não existe no Brasil um critério objetivo para regular satisfatoriamente a concessão da assistência judiciária aos necessitados, ainda normatizada em parte pela Lei nº 1.060, de 05/02/1950, assim como para disciplinar o deferimento da justiça gratuita, que passou a ser regulamentada pelo novo CPC, desde quando entrou em vigor no dia 18/03/2016, sem, contudo, positivar o referido critério objetivamente, abrindo margem para que uma interpretação meramente literal de seu texto acarrete indesejáveis distorções em decorrência de abusos do direito e má-fé processual.

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De outro lado, não se pode ignorar que o indeferimento dos pedidos de justiça gratuita, sem critério objetivo previamente definido, pode acarretar a supressão ou mitigação da garantia do amplo acesso à justiça, mas, a contrario sensu, a concessão da benesse de forma indiscriminada pode promover o caos do Poder Judiciário, em meio à avalanche de aventuras jurídicas que desembocam diariamente nos tribunais, ante a inexistência do temor de arcar com os ônus da sucumbência, em caso de derrota.

Assim, importa analisar o uso e abuso da justiça gratuita versus o princípio constitucional do amplo acesso à justiça no Estado Democrático de Direito, devido à virtual desarmonia entre referidos institutos, com o intuito de apresentar uma sugestão de compatibilização para garantir aos jurisdicionados a possibilidade de efetivação dos seus direitos em juízo, quando o benefício for regularmente concedido e, surpreendentemente, mesmo se restar indeferido, por ser destituído de fundamento e em desacordo com a situação econômico-financeira do postulante, de modo a evitar efeitos nocivos sobre todo o sistema, através da preservação da saúde orçamentária institucional.

A metodologia empregada parte da pesquisa qualitativa de caráter descritivo e explicativo, consistente na investigação das normas específicas em vigor sobre a matéria em nosso ordenamento jurídico, desde meados do século passado, abordagem da doutrina, jurisprudência, artigos de periódicos em material bibliográfico impresso ou informático, extensa análise documental de relatórios oficiais, e do procedimento comparativo para encontrar um ponto de equilíbrio para a realidade jurídica brasileira, por causa das atuais repercussões da concessão e do indeferimento da justiça gratuita no direito de ação e seus reflexos orçamentários, com ênfase no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sem deixar de lado as constatações empíricas dos fatores econômicos, políticos e sociais e sua carga de influência nos resultados do problema pesquisado.

Em resumo, parte-se de uma indispensável explanação acerca das três ondas de acesso à justiça, iniciadas em 1965, e a drástica progressão do acervo processual do TJMG nas últimas décadas, passando por uma breve distinção entre os conceitos de assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita, a natureza jurídica das custas processuais e a disciplina legal da gratuidade da justiça, até a evolução da linha interpretativa do tema nos tribunais pátrios. Logo depois, a fim de alargar a visão da assistência jurídica no mundo ocidental contemporâneo, foram registradas algumas nuances do direito comparado, bem como investigados os impactos do custeio da justiça gratuita no orçamento do TJMG e, consequentemente, a necessidade do advento de um critério uniforme e objetivo para a concessão do benefício da gratuidade, seguindo, então, as considerações finais.

Longe de esgotar o tema, busca-se, de lege lata, uma interpretação mais condizente com a nossa realidade social, inclusive decorrente das evidentes limitações orçamentárias, através de críticas aos pontos controvertidos e lacunas, e, de lege ferenda, um aprimoramento do sistema judicial brasileiro, em defesa de uma prestação jurisdicional mais justa, igualitária e eficiente.


2. As três ondas de acesso à justiça e sua repercussão no expressivo aumento do acervo processual do TJMG

A preocupação científica com o direito fundamental do acesso à justiça surgiu em meados da década de 1960, impulsionada por três correntes denominadas de três ondas de acesso à justiça: primeira onda, hipossuficientes econômicos; segunda onda, interesses transindividuais; e terceira onda, novas fórmulas de instrumentos.

Cappelletti e Garth (1988, p. 31) destacam, a propósito, que:

“O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram mais ou menos em seqüência cronológica. Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso à justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo.”

Internacionalmente, o direito já era assegurado, pelo menos no plano formal, desde a Declaração Americana dos Direitos do Homem de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, também de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, aprovado pelo Congresso Nacional em 12/12/1991 e promulgado por meio do Decreto nº 592, de 06/07/1992, e a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica de 1969, ratificado pelo Brasil em 07/09/1992 e promulgado por meio do Decreto Nº 678, de 06/11/1992.

Em linhas gerais, referidos diplomas e tratados partem da compreensão ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria e sob condições que lhe permitam manter a dignidade inerente a todos os membros da família e gozar plenamente dos direitos da personalidade, econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, dentre os quais, obviamente, o de ingressar na Justiça para fazer respeitar os seus direitos fundamentais, inclusive quando violados pelo próprio Estado ou quaisquer agentes investidos da função pública.

Na verdade, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma corrida desenfreada à Justiça brasileira em busca da efetivação dos direitos conquistados com a redemocratização do país. Isso acarretou uma explosão demandista jamais vista em toda a história do nosso Poder Judiciário, minando a respectiva capacidade de responder aos anseios do jurisdicionado no tempo esperado.

“Existe uma judicialização que atinge a vida de todos nós. Estamos vivendo uma epidemia de processos judiciais no País e diante disso é preciso pensar em algum tipo de remédio. São mais de 100 milhões de processos, um em cada dois brasileiros está em juízo”, declarou o ministro do STF, Luís Roberto Barroso (2015), na abertura da programação científica do XXII Congresso de Magistrados Brasileiros, realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB.

Diante desse quadro, e da quase inércia da sociedade civil organizada, motivada principalmente pela cultura brasileira da litigância, ao Poder Judiciário não restou alternativa, senão ocupar o espaço vazio e instituir projetos de acesso à justiça, em parceria com instituições privadas, com o fim de resgatar a cidadania dos excluídos e evitar a própria asfixia causada pelo incessante aumento da demanda, sem o necessário aparelhamento.

Em Minas Gerais, merece referência a experiência vitoriosa dos antigos Juizados Informais de Pequenas Causas, regulamentados pela Resolução nº 236/92, de 10/04/1992, posteriormente transformados nos Juizados Informais de Conciliação, por força da Resolução nº 378/2001, destinados a resolver conflitos de interesses, antes da judicialização, com ênfase na mediação e conciliação, proporcionando o diálogo entre as partes, de forma pacífica, rápida, como elemento redutor do número de feitos em curso nos Juizados Especiais e para atender as demandas não alcançadas por eles.

Importante citar, ainda, outra iniciativa pioneira de pacificação dos “conflitos de família”, através do “Projeto Conciliação”, implantado nas Varas de Família da Capital, em 01/09/2002. Com elevado índice de acordos em questões sociais intimamente ligadas à violência doméstica e perceptível aumento da presteza na outorga da tutela jurisdicional, o projeto-piloto foi institucionalizado por meio da Resolução nº 407 do TJMG, de 14/02/2003, passando a denominar-se “Central de Conciliação”, quando foi, então, expandido para diversas Comarcas do Estado.

Convém destacar que o projeto recebeu, concorrendo com mais de 400 práticas inovadoras de todo o país, o Prêmio Innovare – Edição I-2004, instituído com o fim de divulgar soluções para os demais Tribunais usufruírem da mesma expertise.

Hoje, na fase pré-processual, o TJMG cumpre ainda um papel preventivo, por intermédio do CEJUSC – Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, instalado em inúmeras comarcas do Estado, por força da Resolução nº 661/2011 do TJMG e da Resolução nº 125/2010 do CNJ, dirimindo o conflito já em seu nascedouro, de variadas naturezas, de modo informal, gratuito e por meio do acordo, intermediado por voluntários, em espaço adequado para este fim nas comunidades.

Pode-se lograr um caminho mais curto para o entendimento entre as partes, evitando-se maiores desgastes psicológicos e econômicos que envolvem os processos judiciais, sob o rito tradicional, em geral, complexo e custoso.

Nada obstante, mesmo com a implantação de todos esses projetos alternativos de solução de conflitos, ocorreu um alarmante aumento do acervo processual do TJMG. O Relatório Anual de Movimentação Processual, divulgado pela SEPLAG – CEINFO, revela que o acervo na 1ª Instância do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais saltou de 507.870 feitos ativos em 1994, para 6.063.674 de processos físicos em 2015 e, se somadas a 2ª Instância e as Turmas Recursais, totaliza quase 6,3 milhões de feitos ativos.1

Percebe-se, destarte, que o número de processos cresceu vertiginosamente, eis que o total geral aumentou, em pouco mais de duas décadas, quase 12 (doze) vezes, enquanto a produtividade média por juiz foi ampliada em praticamente 4 (quatro) vezes, em grande parte pela instalação de varas, criação do cargo de assessor de juiz e implantação das novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), embora o número de magistrados sequer tenha dobrado, pois teve um acréscimo de apenas 67% em seu quadro.

Durante o painel “O Direito e a transformação social”, do XXII Congresso de Magistrados Brasileiros, Barroso (2015) reconheceu aspectos positivos no aumento da quantidade de processos em tramitação, mas apontou a falta de estrutura como uma das questões mais graves que congestionam os tribunais, por isso, destacou também a necessidade da adoção de métodos alternativos, como a conciliação, para imprimir maior celeridade à Justiça.2

É bom saber, a propósito, que o recente pensamento já encontra ressonância em outros segmentos do meio jurídico, sobretudo na advocacia, porquanto, na abertura do Congresso de Mediação e Conciliação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG), em 15/09/2016, o vice-presidente do Conselho Federal da OAB, Luís Cláudio Chaves, pontuou que a mediação e a conciliação resolvem com celeridade as lides e dão maior credibilidade à advocacia e ao Judiciário, pois representam a humanização das relações jurídicas, enquanto o presidente da Caixa de Assistência dos Advogados, Sérgio Murilo Braga, reconheceu que não é possível que uma população de pouco mais de 200 milhões de habitantes tenha mais de 100 milhões de processos, porque não há estrutura judiciária capaz de dar conta dessa beligerância.3

Sobre o autor
Lupercio Paulo Fernandes de Oliveira

Juiz de Direito em Minas Gerais Ex-Professor de TGP e Direito Processual Civil I Pós-graduado em Gestão Judiciária pela Universidade de Brasília – UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Lupercio Paulo Fernandes. Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63305. Acesso em: 22 dez. 2024.

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