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O Estado ambiental de Direito

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Agenda 17/02/2005 às 00:00

Sumário: 1. Introdução 2. A crise ambiental 3. Estado e cidadania no contexto da crise ambiental 4. O meio ambiente como direito fundamental da terceira geração 5. O Direito Ambiental no âmbito dos direitos renovados e dos novos direitos 6. O Estado Ambiental de Direito 6. Características 6.2 Princípios ordenadores 6.2.1 Princípio da prevenção 6.2.2 Princípio da participação 6.2.3 Princípio da responsabilização 6.3 Funções 6.4 Democracia ambiental e cidadania participativa 7. Conclusão. Referências

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto o estudo sobre o Estado Ambiental de Direito, que emerge a partir do reequacionamento do papel do Estado na sociedade, em face de uma terceira geração de direitos fundamentais, particularmente o direito ao meio ambiente (ecologicamente equilibrado), à qualidade de vida sadia e à preservação do patrimônio genético.

A proteção ambiental tem se tornado uma tarefa inevitável do Estado contemporâneo, que deve criar condições para a preservação e fruição de bens ambientais, permitindo mesmo a caracterização deste como um Estado Pós-Social ou um Estado Ambiental (Ümweltssat), como se verá nas linhas que se seguem.

Assim, procura-se, inicialmente, neste estudo, examinar a atual crise ambiental e seus reflexos sobre o Estado e a cidadania. Adiante, cuida-se do meio ambiente como um direito fundamental da terceira geração, cuja responsabilidade é compartilhada por todos (Estado e coletividade).

Em seguida, analisa-se o Direito Ambiental no âmbito dos direitos renovados e dos novos direitos. Passa-se, logo após, ao exame detalhado do Estado Ambiental de Direito, quanto às características que o realçam, aos princípios que o estruturam e às funções que lhe cabem.

Abordam-se, adiante, a democracia ambiental e a nova forma de cidadania (participativa e solidária) compatível com o modelo de Estado que se idealiza.

Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se apresentar uma síntese das idéias desenvolvidas no corpo do trabalho.

A bibliografia é composta pelas obras nacionais e estrangeiras referidas e reproduzidas ao longo do texto, buscando-se (sempre que possível) o que há de melhor e de mais atual na doutrina sobre o tema.

Quanto à legislação, sem embargo da ênfase dada ao ordenamento constitucional brasileiro, buscou-se examinar a Constituição da República Portuguesa de 1976, alterada pela Lei Constitucional nº 1, de 1997, e o Tratado que instituiu a Comunidade Européia. Não restam dúvidas que o meio ambiente é um bem merecedor da tutela jurídica, tanto ao nível do Direito nacional como ao nível do Direto supranacional.


2. A CRISE AMBIENTAL

A crise ambiental por que passamos decorre do processo civilizatório moderno e se identifica com o atual estágio de desenvolvimento da humanidade.

A propósito, assinala Leite (2000, p. 13):

É inegável que atualmente estamos vivendo uma intensa crise ambiental, proveniente de uma sociedade de risco, deflagrada, principalmente, a partir da constatação de que as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e gestões econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida. Parece que esta falta de controle da qualidade de vida tem muito a ver com a racionalidade do desenvolvimento econômico do Estado, que marginalizou a proteção do meio ambiente.

Verifica-se, nesta perspectiva, que a crise ambiental contemporânea configura-se, essencialmente, no esgotamento dos modelos desenvolvimentistas levados a efeito nas últimas décadas, nomeadamente as de 60 e 70, que, a despeito dos benefícios científicos e tecnológicos daí decorrentes, trouxeram, no seu bojo, a devastação do meio ambiente (1) e a escassez dos recursos naturais em nível planetário, manifestadas principalmente por acontecimentos globais como o efeito estufa, a chuva ácida, a perda da biodiversidade, o desmatamento, a poluição do ar, a exaustão do solo, a erosão e a morte dos rios e dos lagos.

O que ocorre é que, como salienta, Odum (1997, p. 811), "até a data, e no geral, o homem atuou no seu ambiente como um parasita, tomando o que dele deseja com pouca atenção pela saúde do seu hospedeiro, isto é, do sistema de sustentação da sua vida".

Assim, quando se fala em crise ambiental, não se remetem apenas aos aspectos físico, biológico e químico das alterações do meio ambiente que vêm ocorrendo no planeta. A crise ambiental é bem mais que isso: é uma crise da civilização contemporânea; é uma crise de valores, que é cultural e espiritual.

Neste sentido, a superação da crise ambiental implica não apenas conciliar o desenvolvimento econômico-social com a proteção do meio ambiente, isto é, garantir o chamado desenvolvimento sustentável (2), mas, sobretudo, promover "uma verdadeira mudança de atitude da civilização e dos seus hábitos predatórios que comprometem não só o futuro das próximas gerações mas o próprio equilíbrio do planeta" (PORTANOVA, 2000, p. 242).

Em síntese, a crise ambiental que nos acomete é civilizatória, e a sua superação reside na busca de uma definição mais ampla do que seja o homem e do seu espaço na natureza, bem como da sua relação com o meio ambiente, numa ponderação de interesses econômicos e ecológicos, sob pena de a degradação ambiental tornar-se ameaça (endêmica ou epidêmica) à qualidade de vida humana e à exclusão do futuro.


3. ESTADO E CIDADANIA NO CONTEXTO DA CRISE AMBIENTAL

A devastação do meio ambiente tem levado o Estado a repartir, com a sociedade, a responsabilidade pela proteção ambiental, que deixou de pertencer ao domínio exclusivamente público, passando também ao domínio privado. O dever de proteger o meio ambiente é cada vez mais compartilhado entre o Poder Público e os cidadãos.

Isso implica o surgimento de um novo Estado e de uma nova cidadania, que têm plena consciência da devastação ambiental, planetária e indiscriminada, provocada pelo desenvolvimento, aspirando assim a novos valores como a ética pela vida, o uso racional e solidário dos recursos naturais, o equilíbrio ecológico e a preservação do patrimônio genético.

A emergência do Estado e da cidadania ambientais importa ainda o reconhecimento de novos institutos e de novas garantias que propiciem respostas adequadas a esses anseios. Nesse contexto, o Direito Ambiental, através da (máxima efetividade) de seus princípios e regras, assume importância singular como viabilizador do bem-estar da sociedade que vive a crise ambiental – a sociedade contemporânea.

José Afonso da Silva, a propósito, assevera:

O problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem-estar, mas a qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano [...] O que é importante é que se tenha consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo de tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade e como as de iniciativa privada (SILVA, 2000, p. 28, 67).

Essa preocupação, ressalte-se, há de ser com a proteção do patrimônio ambiental global, isto é, considerado em todas as suas manifestações (meio ambiente artificial, meio ambiente cultural, meio ambiente natural e meio ambiente social).


4. O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA TERCEIRA GERAÇÃO

Ao se tratar de direitos fundamentais, neste trabalho, ter-se-á em vista o direito ao meio ambiente como direito fundamental da terceira geração.

O surgimento do direito ao meio ambiente e dos demais direitos fundamentais da terceira geração é assim explicado por Bonavides (2001, p. 523):

Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano, mesmo num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade correta. Os publicistas e os juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante do coroamento de uma evolução de trezentos anos dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

Ao se referir aos direitos fundamentais da terceira geração, Bobbio (1992, p. 6) assinala que "ao lado dos direitos, que foram chamados de direitos da segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos da terceira geração [...] O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído".

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Para Alexy (1993, p. 429), o direito ao meio ambiente é um exemplo de "direito fundamental como um todo", na medida em que representa um leque paradigmático das situações suscetíveis de considerações em sede de normas tuteladoras de direitos fundamentais. Neste sentido, o direito ao meio ambiente como direito fundamental da terceira geração pode referir-se ao direito de o Estado: a) omitir-se de intervir no meio ambiente (direito de defesa); b) de proteger o cidadão contra terceiros que causem danos ao meio ambiente (direito de proteção); c) de permitir a participação do cidadão nos procedimentos relativos à tomada de decisões sobre o meio ambiente (direito ao procedimento); e finalmente, de realizar medidas fáticas tendentes a melhorar o meio ambiente (direito de prestações de fato).

O reconhecimento definitivo do direito ao meio ambiente como direito fundamental da terceira geração já foi feito pelos ordenamentos jurídicos de vários Estados. Neste sentido, importa observar que, no sistema constitucional brasileiro, o art. 225, caput, da Constituição Federal impõe o entendimento do que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dos direitos fundamentais. Daí por que o meio ambiente é considerado um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

De modo idêntico, o art. 66º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, impõe a conclusão de que o direito ao meio ambiente e à qualidade de vida integram os direitos fundamentais. Assim é que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.

No âmbito da União Européia, o direito ao meio ambiente é também um direito fundamental dos cidadãos dos países que a integram. Neste sentido, o art. 174º, n. 1, do Tratado CE, determina que a política do meio ambiente passa a ser uma política comum, tendo em vista a preservação, a protecção e a melhoria da qualidade do ambiente; a protecção da vida das pessoas; a utilização prudente e racional dos recursos naturais; e a promoção, no plano internacional, de medidas destinadas s enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente.

Ao contrário dos direitos da primeira geração (direitos individuais), considerados como garantias do indivíduo diante do poder do Estado, e dos direitos da segunda geração (direitos sociais), caracterizados por prestações que o Estado deve ao indivíduo, o direito ao meio ambiente, como integrante dos direitos fundamentais da terceira geração (direitos difusos) consiste num direito-dever, no sentido de que a pessoa, ao mesmo tempo que o titulariza, deve preservá-lo e defendê-lo como tal, em níveis procedimental e judicial, através da figura do interesse difuso.

Assim, o direito ao meio ambiente diferencia-se de um direito individual ou de um direito social na medida em que a obrigação a que ele corresponde não é apenas dever jurídico do Estado, mas também do próprio particular, que é seu titular.

Neste sentido, Pureza (1997, p. 24) assinala que "se trata de um direito de responsabilidade compartilhada por todos, isto é, um misto de direitos e deveres de todos, não se inserindo mais como um direito subjectivo de perfil egoístico".

Claro está, portanto, que o direito ao meio ambiente, como direito da terceira geração, consubstanciado na vinculação de interesses públicos e privados, redunda em verdadeira noção de solidariedade em torno de um bem comum.

Com efeito, o direito ao meio ambiente está fundado na solidariedade social, pois só terá efetividade com a colaboração de todos. Não cabe apenas ao Poder Público velar pelo meio ambiente sadio, mas toda a coletividade tem o dever de protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, como estabelece o citado caput do art. 225 da Constituição Federal.

Destaque-se, ainda, que, ao se vincular o direito ao meio ambiente à dignidade da pessoal humana, mediante a consagração de um direito fundamental da terceira geração, reconhece-se devidamente a dimensão ético-jurídica das questões ambientais. Ao mesmo tempo, afasta-se a visão ambiental "totalitária", voltada para a proteção maximalista do meio ambiente em detrimento de outros direitos fundamentais.


5. O DIREITO AMBIENTAL NO ÂMBITO DOS DIREITOS RENOVADOS E DOS NOVOS DIREITOS

Como se viu, o direito ao meio ambiente é fruto da evolução dos direitos e seu conteúdo o identifica como um direito fundamental da terceira geração. É um produto histórico e complexo, que veio em resposta a anseios e necessidades do homem contemporâneo.

Assim, em face da dinâmica social, vêm-se direitos preexistentes se renovando concomitantemente a novos direitos emergindo.

A renovação dos direitos antigos e o surgimento dos novos direitos ocorrem porque o Direito, em sendo uma construção social e não uma verdade imutável da razão ou da revelação, evolui com a própria sociedade. Importa, pois, estudar os antigos institutos (renovados) e os novos institutos (criados), a partir da visão de historicidade do fenômeno jurídico.

Nesse contexto, o Direito Ambiental pode apresentar tanto normas originariamente pertencentes a outros ramos do Direito quanto normas originariamente criadas pelo legislador.

Na verdade, como acentua Derani (1997, p. 76):

"O Direito Ambiental é em si reformulador, modificador, pois atinge toda a organização da sociedade atual, cuja trajetória conduziu à ameaça da existência humana pela atividade do próprio homem, o que jamais ocorreu em toda história da humanidade.

Trata-se, diz ainda a ilustre autora, de "um Direito que surge para rever e redimensionar conceitos que dispõem sobre a convivência das atividades sociais (DERANI, 1997, p. 75), bem como "para resolver problemas interrelacionados de proteção ambiental, permeando praticamente todo o conjunto da ordem jurídica, superando, com isto, toda a classificação tradicional sistemática do Direito" (DERANI, 1997, p. 83).

Neste sentido, tem-se, como observa Serrano (1998, p. 15), "um impacto de la crisis ecológica em el Derecho, um impacto legal sobre la crisis ecológica y una crisis ecológica susceptible de ser leida en el interior del sistema jurídico".

Por isso mesmo Canotilho (1995b, p. 69) nos fala tanto sobre a juridicização da vertente ecológica quanto sobre a ecologização da vertente jurídica.

Com efeito, a juridicização da crise ambiental e o reconhecimento da proteção do meio ambiente como um direito fundamental da terceira geração fazem com que muitos institutos jurídicos (preexistentes) sejam renovados e muitos institutos jurídicos (novos ) sejam criados dentro do ordenamento.

Anote-se, por fim, que a missão do Direito Ambiental, com bem esclarece Milaré (2000, p. 44), é "conservar a vitalidade, a diversidade e a capacidade de suporte do planeta Terra, para usufruto das presentes e futuras gerações", assumindo assim um caráter menos antropocêntrico e mais ecocêntrico.


6. O ESTADO AMBIENTAL DE DIREITO

A formulação do Estado Ambiental de Direito implica definir um Estado que, "além de ser um Estado de Direito, um Estado Democrático e um Estado Social, deve também modelar-se como Estado Ambiental" (CANOTILHO, 1995a, p. 22).

Isso significa que a edição do Estado de Direito Ambiental converge, necessariamente, para mudanças profundas nas estruturas da sociedade organizada, de modo a apontar caminhos e oferecer alternativas para a superação da atual crise ambiental, preservando os valores que ainda existem e recuperando os valores que deixaram de existir.

Busca-se assim um novo paradigma de desenvolvimento, fundado na solidariedade social, capaz de conduzir à proteção (concreta) do meio ambiente e à promoção (efetiva) da qualidade de vida.

6.1. CARACTERÍSTICAS

Capella (1994, p. 248), teórico da emergência do Estado Ambiental do Direito, ao conceituá-lo, no novo paradigma de desenvolvimento sustentável, observa:

Neste marco surge o que temos chamado Estado Ambiental, que poderíamos definir como a forma de Estado que propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social, para alcançar um desenvolvimento sustentável, orientado a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural.

O ilustre autor distingue assim as características principais do Estado Ambiental em relação ao Estado Liberal e ao Estado Social, que o precederam.

Para Capella (1994), as instituições principais no Estado Liberal e no Estado Social são o mercado e o Estado, respectivamente. No Estado Ambiental, a instituição principal é a natureza.

No Estado Ambiental, o sujeito de direitos é todo ente humano, ao passo que no Estado Liberal é o burguês ou o proprietário, e no Estado Social é o trabalhador.

A finalidade do Estado Liberal é a liberdade e a do Estado Social é a igualdade. Já o Estado Ambiental tem uma finalidade mais ampla: a solidariedade (centrada em valores que perpassam a esfera individualista própria do Estado Liberal).

Por derradeiro, os direitos fundamentais do Estado Ambiental são da terceira geração (direitos difusos), enquanto os do Estado Liberal são da primeira geração (direitos individuais) e os do Estado Social são da segunda geração (direitos sociais).

Como se observa, o Estado Ambiental apresenta características que lhe conferem funções (ampliadas) do Estado Liberal e do Estado Social, considerando, sobretudo, a preservação do meio ambiente e a promoção da qualidade de vida, como valores fundantes de uma democracia e de uma nova forma de cidadania (participativa e solidária).

6.2. PRINCÍPIOS ORDENADORES

A concretização do Estado Ambiental de Direito impõe a identificação de princípios que lhe possam servir de sustentáculo e de balizamento.

Os princípios, ensina Canotilho (2000, p. 1124),

são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).

Em face das características do novo Estado aqui mencionadas, não há como fugir de ordená-lo e alicerçá-lo com base em princípios do Direito Ambiental, indispensáveis à sua construção. Nesta tarefa de arrolar princípios com funções ordenadoras, não se pretende abordá-los à exaustão, mas apenas examinar os que, a nosso juízo, são os mais relevantes e inspiradores do Estado Ambiental de Direito.

6.2.1. PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO

Convém observar, de início, que há autores que se referem ao princípio da prevenção, ao passo que outros se reportam ao princípio da precaução. Embora não se descarte alguma possível diferença etimológica e semântica entre as duas expressões, optamos por adotar a primeira, haja vista que a prevenção, por ter um sentido mais genérico, engloba a precaução, que apresenta um sentido mais específico. (3)

O princípio da prevenção é ordenador do Estado Ambiental de Direito, referindo-se à indispensabilidade que deve ser dada às medidas que previnam (e não simplesmente reparem) a degradação ao meio ambiente. A prioridade de política ambiental deve voltar-se para o momento anterior ao da consumação do dano - o de mero risco. A prevenção deve ter prevalência sobre a reparação, sempre incerta e, por vezes, extremamente onerosa.

Têm razão Canotilho e Moreira (1993, p. 348) quando afirmam que

as ações incidentais sobre o meio ambiente devem evitar sobretudo a criação de poluições e perturbações na origem e não apenas combater posteriormente os seus efeitos, sendo melhor prevenir a degradação ambiental do que remediá-la a posteriori.

Lembre-se ainda, conforme Mateo (1977, p. 85-86), de que "aunque el Derecho Ambiental se apoya a la postre em um dispositivo sancionador, sin embargo, sus objetivos son fundamentalmente preventivos."

De outro lado, importa sublinhar que a tarefa de prevenir a degradação ambiental é função de todos na sociedade e não apenas do Pode Público. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada, exigindo uma atuação conjunta dos cidadãos e do Estado na formulação e execução de uma política ambiental preventiva, conforme já assinalado.

No Direito brasileiro, o princípio da prevenção acha-se estabelecido no inciso V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público a tarefa de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportam riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

No Direito português, o princípio da prevenção está inserido no art. 66º,nº 2, letra "a", da Constituição da Republica Portuguesa, que, para assegurar o direito ao meio ambiente no modelo de desenvolvimento sustentável, determina que incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos, prevenir e controlar à poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão.

No Direito comunitário, o princípio da prevenção está previsto no art. 174º, nº 2, do Tratado CE, que impõe a adoção, na política do meio ambiente da Comunidade, dos princípios da precaução e acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, do causador ao ambiente, e do poluidor-pagador.

Vê-se, destarte, que o princípio da prevenção é elemento estruturante e indispensável para a formulação do Estado Ambiental de Direito.

6.2.2 PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO

O princípio da participação refere-se à necessidade que deve ser dada à cooperação entre o Estado e a sociedade para a resolução dos problemas das degradações ambientais, Com efeito, é de fundamental importância a participação dos diversos setores sociais na formulação e na execução da política ambiental,

dado que o sucesso desta supõe que todas as categorias da população e todas as forças sociais, conscientes de suas responsabilidades, contribuam à proteção e melhoria do ambiente, que afinal, é bem e direito de todos. Exemplo concreto deste princípio são as audiências públicas em sede de estudo prévio de impacto ambiental (MILARE, 2000, p. 99).

A efetividade do princípio da participação pressupõe o acesso adequado dos cidadãos às informações relativas ao meio ambiente de que disponham os órgãos e entidades do Poder Público. É que mais bem informados os cidadãos têm melhores condições de participar ativamente nas decisões sobre matéria ambiental, "tantôt comme auxiliaire de l´Administration, tantôt comme organe de controle" (PRIEUR, 1996, p. 101).

No Brasil, o princípio da participação está presente em vários dispositivos da Constituição Federal. Citem-se o art. 225, caput, que impõe ao poder público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações; o art. 225, § 1º, inciso IV, que exige, para instalação da obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, o art. 37, § 3º, que determina que a lei disciplinará as novas formas de participação do usuário no serviço público; art. 5, inciso XXXIII, que outorga a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade; e, finalmente, o art. 5º, inciso LXXIII, que confere a qualquer cidadão o direito de propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Em Portugal, o princípio da participação está previsto no art. 66º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, quando ali se prescreve que incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos, assegurar o direito ao meio ambiente, no modelo de desenvolvimento sustentável.

Assinale-se, por fim, que a participação na tutela do meio ambiente necessita também, para a sua consecução, da cooperação entre os diversos Estados visando à proteção ambiental comum. De fato, os problemas de degradações do meio ambiente não se circunscrevem apenas no âmbito interno, mas, diversamente, chegam mesmo a extrapolá-lo, exigindo uma atuação interestatal solidária para um combate efetivo à devastação ambiental capaz de salvar o planeta, preservando-o para as futuras gerações.

Neste sentido, o art. 174º, nº 4, do Tratado CE, prevê que, no domínio do meio ambiente, a Comunidade e os Estados-membros cooperarão, no âmbito das respectivas atribuições, com os países terceiros e as organizações internacionais competentes. Os princípios da Declaração de Estocolmo orientaram, ainda, a ação dos Estados no campo de proteção internacional do meio ambiente até a Conferência do Rio de Janeiro, em 1992.

6.2.3 PRINCÍPIO DA RESPONSABILIZAÇÃO

Viu-se, anteriormente, que os princípios da prevenção e da participação constituem elementos ordenadores do Estado Ambiental de Direito. Neste diapasão, denota-se outro elemento fundamental para a efetivação dessa ação em conjunto: o princípio da responsabilização, mecanismo de atuação, numa relação de complementariedade, porquanto nenhum desses elementos, isoladamente, não funciona.

Destarte, indubitavelmente, de nada adiantariam ações preventivas e participativas, se eventuais responsáveis por possíveis danos ao meio ambiente (tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas) não fossem compelidos a responder por seus atos. "A sociedade exige, portanto, que o poluidor seja responsável pelos seus atos, ao contrário do que prevalecia no passado quanto ao uso ilimItado dos recursos naturais e culturais " (LEITE, 2000, P. 33).

Assim, a responsabilização por danos ambientais, nas suas modalidades civil, administrativa e criminal, assume singular importância para a edificação do Estado Ambiental de Direito.

Nos ordenamentos jurídicos, o princípio da responsabilização encontra-se adequadamente contemplado. No Brasil, a Constituição Federal, art. 225, § 3º, preceitua que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

O aludido dispositivo constitucional pátrio prevê, pois, o tríplice apenamento do responsável por danos causados ao meio ambiente, tanto pessoa física como jurídica: a sanção penal, por conta da responsabilidade penal, que importa a limitação da liberdade, a restrição de direitos ou a multa; a sanção administrativa, em decorrência da responsabilidade administrativa, que acarreta a advertência, a multa, a suspensão ou a interdição da atividade; e a sanção civil, em razão da responsabilidade civil, que implica a indenização ou reparação do dano. (4)

Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa, art. 52º, nº 3, letra "a", institui que é conferido a todos o direito de requerer para o lesado ou os lesados, por meio da ação popular, a correspondente indemnização, nomeadamente para a finalidade de vida e a preservação do ambiente e do patrimônio cultural.

Registre-se, também, que a responsabilização (civil) por danos ambientais é objeto da convenção do Conselho da Europa (Lugano) sobre Responsabilidade Civil pelos Danos Causados por Atividades Perigosas para o Ambiente, de 21 de junho de 1993. (5)

Anote-se, por derradeiro, que a doutrina discute a inserção do princípio da responsabilização numa dimensão econômica, isto é, "a inserção da imputação de custos ambientais relacionada à atividade dos produtores" (LEITE, 2000, p. 33).

Com efeito, o princípio do poluidor pagador (pollutor pays principle), assentado na ética ambiental redistributiva, inspira-se

na teoria econômica de que os custos sociais externos que acompanham o processo produtivo (v.g., o custo resultante por danos ambientais) devem ser internalizados, vale dizer, que os agentes econômicos devem levá-los em conta ao elaborar os custos de produção e, conseqüentemente, assumi-los (MILARE, 2000, p. 100).

Como se observa, o princípio do poluidor pagador, em seu aspecto econômico, visa à indenização dos custos externos da degradação ambiental (custos de prevenção, de reparação e de repressão ao dano ambiental), devendo, pois, ser articulado com o princípio da responsabilização, ou até mesmo com outros princípios estruturantes do Estado Ambiental do Direito, como os princípios da prevenção e da participação, aqui também examinados.

6.3. FUNÇÕES

As funções do Estado Ambiental de Direito são mais abrangentes do que as do Estado Liberal e do Estado Social, no sentido de que incorporam novos valores, como a defesa e a proteção (efetivas) do meio ambiente, a promoção da qualidade de vida humana, a ética ambiental, a educação ambiental, a gestão ambiental (participativa) e a democracia ambiental.

Essas funções (ampliadas) refletem diretamente no ordenamento jurídico, que deverá voltar-se para a confirmação desse novo Estado (com características inéditas), viabilizando-o e garantindo-o através da máxima efetividade de suas normas.

Importa sublinhar que, como se disse anteriormente, o Direito evolui com a própria sociedade. Assim, esta evolução social, que culmina com o surgimento do Estado Ambiental de Direito, provocará também mudanças nos institutos e nas categorias jurídicas, com a renovação dos direitos preexistentes e a emergência dos novos direitos.

As funções do Estado Ambiental de Direito se realizam, principalmente, por meio de medidas (concretas) que visam a estimular e a provocar o exercício das condutas (participativa e solidária) desejadas para alcançar o fim ambiental do Estado. A função repressora, típica do Estado Liberal, cede lugar à função promovedora, característica do Estado Social, que deve ser ampliada no Estado Ambiental.

No Estado Ambiental de Direito, o cidadão não é mais o proprietário ou o trabalhador (cidadãos típicos do Estado Liberal e do Estado Social, respectivamente), mas todo ente humano, sem qualificações jurídicas específicas que o insiram em determinado grupo social. Todas as pessoas, mesmo as excluídas pelo Estado Liberal e pelo Estado Social, são consideradas cidadãos do Estado Ambiental, naturalmente com direitos e deveres também ampliados.

Pureza (1997, p. 8-9) observa que:

O Estado Ambiental é um quadro de mais sociedade, mais direitos e deveres individuais e mais direitos e deveres coletivos e menos Estado e menos mercantilização. Neste novo contexto, não é prioritário o doseamento entre público e privado, mas sim o reforço da autonomia (logo, dos direitos e das responsabilidades) individual e social frente à mercantilização e à burocratização.

Insere-se, também, entre as funções do Estado Ambiental de Direito, a redefinição do direito de propriedade sobre os recursos naturais (para conferir-lhe uma função social ambiental) e do sistema de mercado clássico (para privilegiar mais o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a qualidade de vida das pessoas).

Sobre o autor
Amandino Teixeira Nunes Junior

consultor legislativo da Câmara dos Deputados, professor do UniCEUB e da UniEURO, em Brasília (DF), mestre em Direito pela UFMG, doutor em Direito pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. O Estado ambiental de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 589, 17 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6340. Acesso em: 21 nov. 2024.

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