Sumário: 1. INTRODUÇÃO 2. HANNA ARENDT: VIDA E CONTEXTO 3 A condição humana. 3.1 a ação, a obra e o trabalho na vita activa. 3.2 VITA ACTIVA NA HISTÓRIA OCIDENTAL. 3.3 SOBRE O EMPREGADO MODERNO: O DESPERTENCIMENTO E A IDEIA DE SUPERIORIDADE DO “TRABALHO”. 3.4 .O ANIMAL LABORANS NO BRASIL: FORMAÇÃO DO SISTEMA TRINÔMICO E DA SOCIEDADE DE EMPREGADOS-CONSUMIDORES.
Resumo: A partir da visão traçada, acerca da condição humana, por Hanna Arendt, almeja-se demonstrar a evolução da relação humana com as três atividades básicas, notadamente o trabalho humano na Idade Moderna. Depois, passa-se a analisar o desenvolvimento do trabalhador como mero animal laborans.
PALAVRAS-CHAVE: Hanna Arendt, A Condição Humana, Ideologia, Era Moderna, Animal Laborans, Pessoa Humana.
Abstract: Based on Hanna Arendt's view of the human condition, it is intended to demonstrate the evolution of the human relationship with the three basic activities, notably human work in the Modern Age. Then, we analyze the worker’s development like a simple animal laborans.
KEYWORDS: Hannah Arendt, The Human Condition, Ideology, Modern Era, Animal Laborans, Human Person.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende demonstrar como a organização histórico-social do Ocidente, lido a partir do olhar de Hannah Arendt, consubstanciado no livro “A condição humana”, revela o caminho percorrido para alcançar a sociedade de empregados-consumidores da atualidade, que vive para sobreviver.
A ideologia moderna, que apregoou a superioridade do trabalho no sentido arendtiano, e esmoreceu o fogo do homo faber e do animal político, abriu espaço para uma anestesiação social e uma aceitação do trabalhador como mero animal laborans.
2. HANNA ARENDT: VIDA E CONTEXTO
Um breve relato sobre a trajetória de vida de Hannah Arendt ajudará o leitor a compreender algumas de suas ideias, nas quais o ineditismo e a heterodoxia são notas sempre presentes.
A pensadora alemã nasceu em Hannover, em 1906, e iniciou seus estudos acadêmicos na Universidade de Berlim, voltados para a teologia cristã. Em 1924, teve contato com o filósofo Martin Heiddeger e com a Fenomenologia, ao entrar na Universidade de Marburg. Em 1926, foi para Heidelberg, onde doutorou-se em 1929, escrevendo sobre teologia cristã. 2
A partir de então, Hannah envolveu-se com questões judaicas, especialmente com o Sionismo. Perseguida no período nazista, chegou a ser levada para campo de internamento; fugiu para Paris e, por fim, em 1941, mudou-se para os Estados Unidos da América, onde, depois de muitos anos, conseguiu naturalizar-se.
Interessante destacar que a produção da filósofa alemã é divisível em três fases distintas: uma primeira, que abarca o totalitarismo e o imperialismo, levando-a a obras como “As Origens do Totalitarismo” e “Eichmann em Jerusalém: um Relato sobre a Banalidade do Mal”. Após, passa por um período que enfatiza o estudo do homem, em que produziu o livro “A condição Humana”; por fim, passou por um período de reflexão que resultou nas obras como “Entre o Passado e o Futuro”, “ Da Violência” e ”Crises da República” 3,
Destaca-se 4 ainda que a vivência de perseguição e sofrimento sob a égide nazista influenciaram diretamente as obras “As Origens do Totalitarismo”, (que equipara o stalinismo ao nazismo); e “Ideologia e Terror” (1953), uma espécie de continuação da primeira. “Eichmann em Jerusalém: um Relato sobre a Banalidade do Mal” teve repercussão controversa e até negativa, inclusive entre grupos judaicos..
Na década de 1970, voltou-se à continuidade do tema da vida do espírito (que já constava em “A Condição Humana”, de 1958), mas falece em 1975 sem concluir o terceiro volume da obra. O livro “A condição humana”, que toma-se por referência metodológica para a presente obra, destaca as influências judaicas, cristãs, fenomenológicas e marxistas de Arendt, feliz mistura que fez da autora uma grande pensadora do século XX.
Segundo a própria filósofa, não se almeja encontrar solitariamente a solução para os problemas da sociedade moderna. Isso, aliás, é impossível. Na verdade, a obra “trata-se de pensar o que estamos fazendo”5. Uma saudável reflexão em tempos de vivência autômata.
3 A condição humana
A autora alemã propugna que o viver humano, aquilo que seria a vita activa, se manifesta sob três tipos de atividades, que se dividem em: a) ação, b) obra e c) trabalho.
Minunciosamente, agregando ponderações dos mais diversos e opostos pensadores da História humana, Hannah Arendt de certo modo didatiza uma apresentação panorâmica de como as civilizações ocidentais organizaram-se a partir do exercício da vita activa. “A Condição Humana” representa, portanto, uma ótica brilhante e lúcida sobre o caminhar da humanidade ocidental ao longo da História através da sobrevivência, do pertencimento ao mundo e da pluralidade.
E nesse trabalho, Hanna trabalha com conceitos essenciais para compreensão da relação atual do homem com o trabalho, conceitos estes que serão esmiuçados mais abaixo.
3.1 a ação, a obra e o trabalho na vita activa
Não será possível entender o trabalhador moderno, incluindo o brasileiro, sem entender as atividades da vita activa, a saber, a ação, a obra e o trabalho. Em outras palavras, destacar-se-á, sempre de modo concentrado e o mais eficiente possível, os principais pontos da obra “A condição humana”, notadamente os conceitos e suas características correlatas, sem os quais não será possível entender a questão do empregado moderno.
Inicia-se com o mais básico de todo atuar humano - o trabalho . É tudo aquilo que se faz para a própria sobrevivência, relacionado aos processos biológico e metabólico vitais do corpo. O que condiciona o homem ao trabalho é a premência de manter a própria vida, a existência.
É, portanto, o que há de mais primitivo no homem a ser suprido – eis o homem enquanto animal laborans. Todo trabalho é efêmero, pois é feito e logo precisa ser repetido, numa roda-viva tendente ao infinito: é comer, banhar-se, fazer necessidades biológicas, dormir: enfim, é tudo aquilo que finda em si mesmo.
A obra, por sua vez, extrapola as atividades que servem à mera sobrevivência.
Ela é resultado do labor e da criatividade humanos, antinatural, pois trata da violência da transformação da natureza bruta em bem manufaturado (fabricado pela mão) pelo homem. A obra não é consumível; é concebida para ser usada e tem como marca a durabilidade, podendo ultrapassar a longevidade de seu criador.
A obra resulta do humano enquanto o homo faber, a criatura divina que é criadora de criações. Criações estas que nascem e existem no mundo, num mundo artificial de coisas que modificam o ambiente natural - na mundanidade (worldliness).
Aqui, como já deve ter sido possível perceber, a mundanidade é expressão empregada pela autora não no sentido comum que é dado ao termo em português corrente, como se fosse uma oposição ao “sagrado” e similar à “profanidade”.
Muito pelo contrário.
A atividade humana da criação da obra que ocupa lugar na mundanidade nada tem de profana. E a escritora desse artigo ousa avançar no sentido de acreditar que ocupar a mundanidade com a obra humana é parte da projeção do divino no homem.
É que a obra molda o mundo ao redor; é a obra-prima humana, concebida à imagem e semelhança da engenhosidade do homem, assim como Criador pôde moldar a obra-prima da criação à sua imagem e semelhança6.
Assim, as artes, os arranha-céus, o avião e as invenções, o remédio que cura um mal, uma casa – todas são obras que manifestam o poder criador do homem, assim como a lua, as aves, as colinas e o mar manifestam o poder criador divinal.
Sem mais delongas, passa-se ao que a filósofa alemã destaca como ação.
Na hierarquia de atividades humanas, essa é, sem dúvida, a mais prestigiosa. Enquanto o trabalho e a obra são atuações próprias de uma esfera privada e constituem uma relação do homem com um objeto, a ação dá-se no domínio público, pela relação entre indivíduos, sem qualquer coisa ou obra como intermediário, senão os atos entre humanos.
Daí que a condição para a ação é a pluralidade, pois um alguém dialoga com, legisla sobre, cobra impostos de, julga, consola, conspira contra… outrem. Há aí, sempre, uma relação entre duas ou mais pessoas.
A ação é o diálogo, o gesto e toda atuação humana que se volta para interagir com os outros com objetivo de construir algo em pluralidade. É a vida da cidade e dos cidadãos. É fazer para a imortalidade. É a manifestação do homem que atua na polis, como ocorria entre os gregos e, principalmente, entre os romanos.
Mas como desenvolveram-se essas atividades ao longo da história humana ocidental? Essa pergunta será o mote do próximo ponto a ser abordado.
3.2 VITA ACTIVA NA HISTÓRIA OCIDENTAL
Explicando detidamente em que consiste cada elemento da vita activa7, a escritora demonstra como a organização em níveis sociais, justificadas pelas ideias vigentes em cada período histórico, contribuíram para (des)privilegiar uma ou outra atividade da vita activa8
Gregos e romanos empregavam escravos para exercerem as funções do trabalho, que eram tidas como mais desprezíveis, pois repetitivas e consumíveis, enquanto a obra ocupava um prestígio variável a depender de que ramo tratava.
A mais importante atividade, própria apenas para o homem, adulto e cidadão, era o de poder participar da política pela ação. O grau de importância pré-cristã de cada atividade muito se vinculava à própria durabilidade, pois a perenidade de uma obra e imortalidade da ação demonstravam o prestígio do feito de seus exercentes.
O Cristianismo, porém, alastrou-se de modo avassalador sobre o já decadente sistema romano e introduziu revolucionárias ideias à tradição romana até então em voga: valorizou a vida como uma possibilidade eterna e como dom supremo dado por Deus único e universal, além de relacional e redentor.
Através da visão central da fé e da salvação como dons, ao fim e ao cabo, individuais, minou-se, pouco a pouco, o prestígio da ação através das realizações plurais na polis, visando algum tipo de imortalidade terrena memorial.
De fato, a imortalidade possível por meio de feitos grandiosos dos cidadãos é substituída pela importância da ligação transcendental do indivíduo na filiação com o Todo-Poderoso, em que as castas sociais pouco importam, já que todas as pessoas são, diante de Deus, igualmente importantes9.
Destaca-se, a essa altura, a superação do império romano e a entrada no período medieval, em que a teologia católica subjuga a vita activa pela valoração da vita contemplativa. A efemeridade da vida terrena aponta que os cristãos estão na Terra de passagem, peregrinando para uma pátria superior e eterna10, rumo à cidadania celeste.
A consequência da interpretação milenar católica das assertivas bíblicas foi, logo, de que a política e os feitos na Terra não são importantes. O ideal de vita contemplativa11, sozinha e silenciosa, abriu caminho para a exaltação da inação, desembarançando-se das coisas dessa vida. Assim, houve, consequentemente, a preterição da ação e da obra – e da visão do trabalho como uma punição divina pelo pecado original, sendo um mal necessário.
Findo o Medievo e iniciada a Era Moderna, a humanidade depara-se com um rio de novidades. Surge uma nova fé (a partir da reforma protestante), novas descobertas, novos continentes, novos métodos, novos materiais, novas formas de obter energia. O Iluminismo traz o homem para o centro de todas as coisas – o antropocentrismo.
Abre-se espaço, novamente, para a revaloração da vita activa. Sobretudo pela obra e pelo trabalho, a era das invenções e das descobertas abre espaço para um evento divisor de águas – a Revolução Industrial.
A Revolução Industrial é um fenômeno que aumenta em progressão geométrica a produção em escala de bens, tornando-os mais acessíveis. Porém, o artífice livre e independente (homo faber), que domina o modo de produção e detém suas ferramentas, perde espaço para a indústria de massa que, por sua vez, contrata operários que não precisam dominar a técnica de fabricar (ao invés daqueles artistas ou artesãos).
Esses trabalhadores apenas precisam subordinar-se às ordens emanadas. Os empregados exercem atividades fracionadas em linhas de produção, com as ferramentas que pertencem ao empregador.
Sem conhecimento e sem ferramentas próprias, o trabalhador vive no epicentro do capitalismo, ignorando o que esteja, de fato, produzindo e isolado do pertencimento a qualquer grupo.
Verifica-se a expropriação de tudo que cerca o indivíduo ao longo dos séculos: a proteção greco-romana da família e da cidade; expropriação da terra para viver e laborar e, por fim, a expropriação da técnica do obreiro e de suas próprias ferramentas.
Surge o humano que não faz ação ou obra, alijado que está da pluralidade da polis e do pertencimento à mundanidade. Agora, restou-lhe tão somente o trabalho, já que só tem sua energia do corpo para vender – troca ele o seu processo metabólico corporal que resulta em energia vital por um salário para sobreviver.
Segue-se, pois, a seguinte lógica: o trabalho biometabólico - comer, excretar, manter-se limpo, dormir, beber etc. serão atividades que, agora, segundo a visão arendtiana, objetiva tão-somente produzir a energia para a finalidade de vendê-la em troca de salário!
E isso é feito sem muitas reflexões. Pois vende-se a energia em troca do salário e este, prontamente, será usado para consumir elementos necessários (e também supérfluos) à manutenção do ciclo. Tudo com o fim de sobreviver e novamente vender a energia do corpo em troca do salário!
Em resumo, esse é o ciclo de vida do animal laborans, aspecto da vita activa em que está inserida a maioria dos trabalhadores, no momento posterior à Revolução Indistrial.
O século XIX e XX, portanto, transformam-se na era da massa de empregados que, em seu tempo livre, são consumidores, e consomem seus salários para novamente vender sua energia. São trabalhadores-consumidores.
Já não tem ação na cidade pois não há animal político; não se produz obra porque quase extinguiram o homo faber. Todos empregados trabalham em massa para consumirem em massa, em um ciclo aparentemente sem fim. E os trabalhos voltados à sobrevivência, antes de aspecto eminentemente privado, ocupa o lugar do público. Eis a vitória do animal laborans.
Tudo isso, porém, impensável num período romano, só foi alcançado através da ideologia da superioridade do trabalho, após um longo processo de despertencimento. É o que se abordará no tópico a seguir
3.3 SOBRE O EMPREGADO MODERNO: O DESPERTENCIMENTO E A IDEIA DE SUPERIORIDADE DO “TRABALHO”
O homem moderno é caracterizado pelo despertencimento12. Ele não pertence à família, à polis, ao clã, ao feudo ou a uma corporação. A decadência da religião tirou-lhe a esperança de pertencimento a uma filiação divina e a uma pátria celeste. Também já não pertence à mundanidade, pois ele já não usufrui a obra de suas mãos.
Perdido, sem um lastro, o homem moderno não tem um sentido de vida que o transcenda. E não tendo algo maior pelo qual viver, trabalha para consumir, consome para viver e vive para trabalhar.
E assim, a Modernidade inverteu a hierarquia da vita activa com o triunfo da mera sobrevivência individual consumista, revestida no manto utilitarista13 da felicidade universal, ilusão inalcançávell14.
Pela primeira vez na História, quase reduziu-se a atividade humana ao denominador comum de assegurar as coisas necessárias à vida15, já que vige o retroalimentável trinômio: vida-trabalho-consumo.
E a humanidade chegou a esse resultado porque o capitalismo moderno apoiou-se economicamente na divisão do trabalho para abundar a produtividade e, ideologicamente, introjetou ao paradigma ocidental a crença na superioridade do trabalho. Sim, na superioridade do trabalho no sentido arendtiano, que é voltado para a sobrevivência.
Sem descambar para o marxismo ou qualquer outra opção de teoria para confronto com o capitalismo, nem esgotar as crenças arraigadas do Modernismo, que prevalecem até que se estabeleça um paradigma pós-moderno16 (objetivos esses que extrapolariam o fim desejado para o presente trabalho), deseja-se passar em revista, ainda que brevemente, os fundamentos que moldaram sociedade arenditiana de empregados que acreditam na superioridade e suficiência do trabalho – essa sociedade que possivelmente inclui você, prezado leitor, que vende a sua força de trabalho em troca de um soldo mensal.
Pois bem.
Lembre-se dos eventos que formaram a Modernidade e já foram objeto de comentários no tópico três deste artigo: novidades tecnológicas, religiosas, inventivas, geográficas, metódicas dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Segundo José Reinaldo de Lima Lopes, os séculos XVII e XVIII levam os pensadores modernos a estimularem a tolerância religiosa e a liberdade privada (Grócio, Locke). O capitalismo expande-se pelo uso das trocas, destacando os grandes comerciantes dos pequenos produtores. O mercado desenvolvido conhece mais do que nunca a autonomia da vontade e a individualização do contrato (Pufendorf, Domat, Pothier)17. Nesse contexto individualista nasce o Jusnaturalismo, com o surgimento, outrossim, de uma nova antropologia:
opondo-se ao homem animal político da tradição aristotélica, e ao conceito organicista da sociedade da civilização corporativa da Baixa Idade Média, o individualismo impõe-se pouco a pouco. A sociedade passa gradativamente a ser encarada como a soma de indivíduos isolados (…) O comunitarismo clássico e a natural sociabilidade dos homens já não são mais os pressupostos da filosofia política e jurídica18
Está aí, pois, exposta a transformação social histórica que molda o trabalhador moderno. O animal político, plural, foi rebaixado e a coletividade abandonada. O individual, em tudo, passa a ser presente: no mercado, no contrato, no direito, na política. Some pouco a pouco a relevância do homem enquanto animal político (que exerce a ação arendtiana) e destaca-se aquele que faz a riqueza das nações19, através do incremento da produção: o animal laborans.
O animal político não tem prazer em despender tempo com as atividades vitais no ciclo sem fim da construção e do consumo com o fito da mera existência. Mas, se as pessoas passam a acreditar na exaltação do trabalho em cada humano, da posição privilegiada dessa atividade em detrimento das outras, então ter-se-á a mão de obra que, engrenada na indústria, fará parte da divisão do trabalho e aumentará a produção para o consumo.
Assim, repete-se à exaustão e de várias maneiras a ideia de que a dignificação do ser humano está no trabalho, até que ele se transforme na crença que move a ideologia na Modernidade.
3.4 .O ANIMAL LABORANS NO BRASIL: FORMAÇÃO DO SISTEMA TRINÔMICO E DA SOCIEDADE DE EMPREGADOS-CONSUMIDORES
O Brasil, naturalmente, não está de fora do sistema capitalista industrial da era Moderna. Segundo Antônio Carlos Wolkmer,
(…) No percurso de um longo processo de colonização portuguesa consolidou-se a singularidade de uma cultura jurídica que reproduziu historicamente as condições contraditórias da retórica formalista liberal e do conservadorismo de práticas burgueso-patrimonialistas(...) 20
Assim, as ondas do capitalismo moderno europeu chegaram ao Brasil. Fizeram-no, porém, com algum atraso em relação às metrópoles europeias, dadas às privações que o Brasil sofreu em termos de liberdade econômica por sua condição de colônia.
O voltar-se para qualquer movimento protoindustrial só foi realidade para essas bandas quando se deu um tímido sinal de mudança, com a abertura dos portos às nações amigas, após a chegada da família imperial para o Brasil em 1808, fugida da expansão napoleônica. Depois, libertação de Portugal através da independência de 1822, culminada com a República, deram ao País a autonomia para traçar suas diretrizes econômicas e políticas.
Como era de se esperar, a Constituição de 1891 deteve-se a apresentar arcabouço ideológico próprio de uma democracia republicana burguesa e formal, formulada a partir dos “princípios do clássico liberalismo individualista21“.
Ou seja, escolheu-se acolher tudo o que até então a Europa teve a oferecer de ideologia liberal e individualista. O Brasil do fim do século XIX ainda era um país agrário, com uma indústria engatinhante em seu desenvolvimento e não tinha passado por todas as etapas históricas de confronto de ideias e de guerras que amadureceram o Velho Continente. Simplesmente importou o “pacote” pronto.
Destarte, o País tornou-se uma espécie de criança vestida em trajes de adulto. Sem tempo de maturação e reflexão, mas numa intensa corrida para industrializar-se e ficar mais parecido com os antigos exploradores, o Brasil entra para o meio industrial, com grande êxodo rural em meados do século XX, sem ter estrutura política e econômica solidificada e quase nenhuma consciência de classe entre os trabalhadores.
Nesse sentido, destaca-se que contexto em que Hannah Arendt refletiu e escreveu foi um pouco diferente do brasileiro nesse ponto(talvez menos grave), mesmo quando se fala de uma sociedade de empregados-consumidores que exaltam o trabalho como meio e fim de suas vidas.
Ela escreveu a partir da realidade que conheceu - a europeia e a americana. Nesses locais, embora predominando a estrutura trinômica já muito repetida, houve algum tempo hábil para que exploração dos trabalhadores-consumidores, embora bastante difundida, pudesse ser pontualmente objeto de contestação por eles mesmos, incluindo a resistência por através de associações e sindicatos, a fim de lutar pela melhoria da qualidade de trabalho e de vida. Ainda vivendo para o trabalho, a ação, latente em cada homem e mulher, conseguiu voltar a manifestar-se, mesmo que setorialmente.
No Brasil, porém, a história é um pouco diferente.
A influência da imigração europeia no País, sobretudo italiana, no século XIX (inicialmente rural e depois urbana), até despertou questionamentos acerca de quanto o ser humano devia ser um domesticado animal laborans.
Todavia, o Brasil, era imaturo, enquanto nação, em sua autonomia econômica e política e tinha uma incipiente e frágil organização coletiva de empregados. Nesse contexto, com setores sociais dominantes muito interessados na exploração da energia vital do empregado, aos brasileiros foi concedida de pronto um “presente” para manter os ânimos acalmados - a festejada Consolidação das Leis do Trabalho.
A Consolidação trouxe muita coisa boa aos trabalhadores, de fato; porém, trouxe a reboque uma organização sindical engessada, inspirada no Corporativismo italiano criada, controlada e sustentada para e pelo Estado. Assim, numa “canetada”, os sindicatos passaram a existir legalmente no Brasil mas sem espaço para movimentar-se. Destarte, a consciência de classe do trabalhador pouco avançou desde então e ficou adstrita a alguns arroubos históricos ou setoriais. E assim se formou a sociedade de empregados e de consumidores brasileiros que é encontrada até a atualidade..
Basta ver os dados da última Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE em 2015. Do total de obreiros (agrícolas e não-agrícolas), 76,9% disseram-se satisfeitos ou muito satisfeitos com as condições de trabalho encontradas diante do que foi previamente acordado22. Entretanto, o país permanece com Índice de Desenvolvimento Humano estagnado desde 2014, sendo o 79º colocado de 188 países23.
Difícil concluir, depois de todo o histórico apontado, que os trabalhadores estão muito satisfeitos porque, conscientes do seu papel na sociedade e na polis, vivam em plenitude a vita activa24..
E foi assim que se moldou o homem trabalhador-consumidor como um sinônimo de animal laborans no Brasil – possivelmente de modo mais confortável que na própria Europa que Arendt testemunhou.
Agora, passa-se a pensar na formação do valor desse trabalhador não só na história brasileira, mas no direito pátrio… pode ele aceitar a tarifação de indenização diante de afronta à personalidade humana? Para tentar responder essa pergunta, passa-se à responsabilidade civil.