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A ação afirmativa e sua perspectiva de inclusão no arcabouço jurídico brasileiro

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4. BASES FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA

A justificação filosófica para a ação afirmativa repousa em duas esferas no campo da aplicação da justiça: a distributiva e a compensatória.

A justiça compensatória tem uma natureza restauradora, alicerçada na idéia de um dano a ser reparado para que se restabeleça o equilíbrio entre a parte violada e a violadora. Durante o curso da História, algumas sociedades subjugaram determinados grupos ou categoria de pessoas, sem contudo corrigir os efeitos da discriminação passada (que terminou por se manifestar nas gerações futuras). Segundo GOMES (2001), "ao adotarem os programas de preferência em prol de certos grupos sociais historicamente marginalizados, essas sociedades estariam promovendo, no presente, uma reparação ou compensação pela injustiça cometida no passado" (p. 62). Essa reparação se faria imprescindível numa sociedade democrática, devido ao ônus social, cultural ou econômico a ser carregado pelas novas gerações.

Contudo, um dos sérios problemas enfrentados ao se utilizar o referencial da justiça compensatória é saber precisamente como mensurar a conexão causa-dano-reparação. Talvez seja esta uma das possíveis causas do descrédito que muitos doutrinadores têm sobre a ação afirmativa.

Por outro lado, a justiça distributiva tem por fundamento a necessidade de (re)distribuir de maneira equânime os ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros bens primários entre os membros de uma sociedade. Segundo Gomes (2001), "o pressuposto de que um indivíduo ou o grupo social tem o direito de reivindicar certas vantagens, benefícios ou mesmo o acesso a determinadas posições, às quais teria naturalmente acesso caso as condições sociais sob as quais vive fossem de efetiva justiça" (p. 66).

A idéia de justiça distributiva apresenta, modernamente, duas importantes vertentes. A primeira delas, baseada no conceito de igualdade ao nascer (equality of birth), afirma que devem ser levados em consideração todos os fatores relevantes de distinção entre os seres humanos para posterior averiguação das capacidades e do mérito. Destarte, seria absolutamente injusto tratar de modo idêntico indivíduos que tiveram trajetórias totalmente distintas pela imposição de artifícios injustificáveis pela sociedade. Para essa corrente,

o racismo e o sexismo constituem explicações plausíveis para esse desvio de rota. Para mitigá-lo, a tese distributivista propõe a adoção de ações afirmativas, que nada mais seria do que a outorga aos grupos marginalizados, de maneira eqüitativa e rigorosamente proporcional, daquilo que eles normalmente obteriam caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no obstáculo intransponível da discriminação (...) Contestar essa presunção (de que mulheres e outras minorias raciais progrediriam não fosse o racismo e o sexismo) eqüivaleria, em outras palavras, a sustentar que os grupos marginalizados seriam dotados de uma "inferioridade" congênita. (GOMES, 2001, p. 67-68).

A segunda vertente possui uma feição utilitarista. A redistribuição dos benefícios e ônus, neste caso, tem um duplo sentido: promover o bem-estar-geral (ao se reduzirem as mazelas sociais) e reduzir os rancores oriundos da desigualdade. Filiam-se nessa linha Wasserstrom e Dworkin. Este último sustenta que o objetivo imediato das ações afirmativas é o de aumentar o número de membros de certas raças em certas posições e profissões. Desta forma, à medida que negros, mulheres e outras minorias forem ocupando também essas posições, consequentemente se reduzirão na mesma proporção os sentimentos de frustração e injustiça (GOMES, 2001).

A incorporação das ações afirmativas pelo Estado encontra também um importante substrato filosófico na obra de Rawls. Em sua obra Uma Teoria da Justiça, descreve princípios que possam ser usados para definir uma situação socialmente justa, já que "a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento." (RAWLS, 2000, p. 03). Em sua filosofia político-liberal, estabelece como princípios: a liberdade e a eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). Kervegan (1989) refere que, para Rawls, a liberdade é absolutamente primeira em relação à eqüidade, e a igualdade é absolutamente primeira em relação a diferença. Assim, "não é justo favorecer a redução das desigualdades em detrimento da igualdade de oportunidades, o que seria o caso, por exemplo, se determinadas posições estivessem reservadas ou fossem atribuídas como prioridade a grupos ou indivíduos considerados favorecidos" (KERVEGAN, 1989, p. 36).

Contudo, se os grupos fossem considerados desfavorecidos, deveria se garantir ao indivíduo as suas liberdades fundamentais e manter as possibilidades sociais abertas para si e para os outros (princípio de igualdade) e favorecer a distribuição dos bens primeiros (direitos, liberdades, patrimônio, rendimento, etc) aos mais desfavorecidos (princípio da diferença).

Desta forma, Rawls acredita que, no tocante à educação, a discriminação se traduz na outorga, explícita ou dissimulada, de preferência no acesso à educação de qualidade a um grupo social em detrimento de outro grupo social. Conseqüentemente, reduzem-se as perspectivas de bem-estar e de sucesso daqueles que dela são vítimas. Enfim, "para a teoria da justiça compensatória, a melhor forma de correção e de reparação desse estado de coisas consistiria em aumentar (via ações afirmativas) as chances dessas vítimas históricas de obterem os empregos e as posições de prestígio que elas naturalmente obteriam caso não houvesse discriminação" (Rawls apud GOMES, 2001, p. 63-64).


5. A AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL

O preâmbulo da Constituição Federal brasileira afirma que o Estado democrático é destinado a "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". Sem entrar no mérito da sua eventual força normativa, o texto preambular constitui-se num forte conteúdo determinador da interpretação constitucional. Ao receber a função de assegurar um rol de direitos fundamentais, a doutrina moderna afirma que o Estado já não pode mais assumir a mesma postura neutra (edificada pela cartilha liberal dos séculos XVII e XVIII) presente nas Cartas anteriores.

É com esse espírito que a igualdade elencada no art. 5º caput da CF ganha uma novo vigor, ultrapassando a barreira meramente formal e adquirindo um caráter substancial, ligado à idéia de igualdade de oportunidades. A ingerência do Estado torna-se de suma relevância nesse processo porque a aplicação estática do princípio da igualdade, à luz da ótica liberal oitocentista, não conseguiu reverter na prática as desigualdades oriundas dos processos históricos. Aliás, Dray apud GOMES (2003) refere que o pressuposto liberal de que os indivíduos devem ser abstratamente tratados como iguais não passaria de uma mera ficção:

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a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições (Dray apud GOMES, 2003, p. 19).

Na mesma linha argumentativa, Canotilho (1998) afirma que o postulado substancial da igualdade é um dos fatores fundamentais para a concretização da democracia econômica e social; logo, a sua aplicação torna-se fundamental. "Não se pode interpretar o princípio da igualdade como um princípio estático, indiferente à eliminação das desigualdades, e o princípio da democracia económica como um princípio dinâmico, impositivo de uma igualdade material (...) A igualdade material postulada pelo princípio da igualdade é também a igualdade real veiculada pelo princípio da democracia económica e social" (CANOTILHO, 1998, p. 332).

Além disso, o artigo 3º da Constituição Federal define que constituem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Rocha apud VILAS-BÔAS (2003) refere que este dispositivo declara, diretamente, que o Brasil não é livre, nem justo e nem solidário, pois se assim o fosse, "não haveria necessidade de serem considerados como objetivos fundamentais. Dessa forma, contém uma afirmação de quais são os objetivos fundamentais, e ainda, a determinação de se construir uma nova sociedade brasileira com base nas premissas traçadas no texto constitucional" (p. 54).

Ao objetivar a eliminação dos diversos tipos de discriminação, a carta constitucional dá um ensejo para que as ações afirmativas façam parte do arcabouço jurídico pátrio. Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou

Posso assegurar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontramos, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores. Qual é o fim almejado por esses dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, que é uma das formas de discriminação, visando-se, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro? (MELLO, 2001)

Não se pode olvidar também que a noção de ação afirmativa está diretamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. A igualdade interpretada de modo substancial, como um mecanismo de equiparação e redução de desigualdades, tem intrinsecamente uma busca do bem-estar dignificador do homem. Nesse sentido, ao referir-se às características do estado social de direito, Taborda (1998) lembra que "a tutela fundamental não é mais a propriedade privada e sim a dignidade da pessoa humana como centro invariável da esfera da autonomia individual que se procura garantir por meio da limitação jurídica do Estado. Exige-se agora do Estado uma intervenção positiva, para criar as condições de uma real vivência e desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais" (p. 257).

Ainda na esfera constitucional, há ainda uma série de outros dispositivos que podem ser considerados de cunho afirmativo. Dentre eles, vale a pena citar:

No âmbito infra-constitucional, há uma grande quantidade de leis ordinárias que podem ser enquadradas no rol das ações afirmativas. A primeira surgida no País foi a Lei no 5.465/68, que prescreveu a reserva de 50% de vagas dos estabelecimentos de Ensino Médio Agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária a candidatos agricultores ou filhos destes. Contudo, ela não obteve o êxito esperado (sendo posteriormente abolida do ordenamento) pois, na prática, a sua utilização beneficiou apenas uma pequena elite aristocrata rural – de tal forma que a lei recebeu a alcunha de Lei do Boi.

Destacam-se também as leis 9.504/97 (que possibilitou a reserva de uma cota de no mínimo 30% para mulheres nas candidaturas partidárias), 9.029/95 ( que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho), 8.112/90 (que prescreve, no seu art. 5º, parágrafo 2º, a reserva de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da União), 10.741/2003 (que institui diversas garantias para a classe dos idosos) e o Decreto-Lei 5.452/43 (que estabelece, no art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres).

5.1. A política de cotas no Brasil

Durante o período colonial, ao contingente populacional brasileiro foi acrescida a população negra (oriunda principalmente da África) que, em decorrência da escravidão, tornou-se uma alternativa viável para a substituir a mão-de-obra indígena. Desde então, o negro, com seus hábitos, costumes e cor, passa a ser um elemento conspícuo na formação da identidade nacional.

Nessa perspectiva, pode-se inferir que esse lapso de mais de três séculos de escravidão influenciou na condição econômica e social da população negra e parda. Para Skidmore (1998) a relativa mobilidade social dos brasileiros não-brancos começou a declinar após o nascimento da República. Isso demonstra que a discriminação racial não desapareceu nos séculos posteriores à abolição da escravatura, na medida em que "o desaparecimento de leis e regulamentos formais levou simplesmente a que as preferências fossem exercidas de maneira mais sutil, como convém ao variado espectro das categorias raciais socialmente reconhecidas" (SKIDMORE, 1998, p.108).

Esse modo "sutil" corresponde às barreiras artificiais e invisíveis (chamadas, pelos norte-americanos, de glass ceiling) que até hoje obstaculizam o acesso de negros e pardos qualificados a posições de poder e prestígio. Para Skidmore (1998), diferentemente do que acontecia nos Estados Unidos, através das leis Jim Crow (que mantinham as raças fisicamente separadas em lugares públicos), as barreiras de cor no Brasil não eram legais, escritas, embora pudessem ser facilmente observadas, por exemplo, "no Ministério das Relações exteriores, no corpo dos oficiais da Marinha (o Exército era ligeiramente melhor) e nos altos escalões da Igreja Católica" (SKIDMORE, 1998, p. 113).

A análise de dados estatísticos (principalmente do IBGE) comprova a existência de uma profunda desigualdade étnica no país. O Brasil é o segundo maior Estado com população negra do mundo (ficando atrás apenas da Nigéria). Dos quase 170 milhões de habitantes, a população preta e parda corresponde a um percentual de aproximadamente 46%. Ao se verificar o rendimento médio mensal, na população branca é de 4,5 salários mínimos, enquanto que na população preta e parda esse índice cai para 2,2 (menos da metade). O índice de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos chega a 7.7% da população branca, enquanto na população negra a cifra é de 18.7%, e na parda, 18.1%.

Além disso, dentre o 1% mais rico em relação ao total de pessoas, a participação de brancos é de 87,2%, enquanto que os negros e pardos somam a irrisória porcentagem de 12,8%. Dentre os 10% mais pobres, a situação inverte-se: 67,3% de negros e pardos e 32,7% de brancos. Esse desnível de renda provavelmente é um dos principais fatores que influenciam nas estatísticas da educação. A média de anos de estudo da população branca é de 8 anos, enquanto que na população preta é de 5,7 e na parda 5,6. Dentre os estudantes brancos da faixa etária de 20 a 24 anos de idade, 53,6% deles estão cursando a graduação e 0,8% cursam Mestrado ou Doutorado. Para os jovens negros e pardos, essa porcentagem cai para 15,8% na graduação, enquanto que no Mestrado ou Doutorado o índice é oito vezes menor: 0,1%.

Em virtude desse significativo desnível nos indicadores da educação, surgiu a proposta de implementação de cotas raciais em vestibulares, já adotada em algumas instituições, como a Uenf e a UERJ (e a partir deste ano, UnB, Unicamp, UNEB, UFMT e UFBA). A "política de cotas", como ficou conhecida no Brasil, abrange não apenas a reserva de vagas para grupos étnicos mas também para estudantes oriundos de escolas públicas.

Esta medida foi certamente a mais ousada tentativa de implementação da affirmative action no Brasil. Geradora de intensas discussões por todo o País, finalmente ganhou a aprovação da jurisprudência pátria, numa evidente demonstração da viabilidade constitucional das ações afirmativas. Em mandado de segurança impetrado contra as leis estaduais 3524/00 e 3708/01 do Rio de Janeiro, que instituem o sistema de cota mínima para a população negra e parda e para estudantes oriundos da rede pública estadual, o Desembargador Cláudio de Mello Tavares definiu que

A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados (...) O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é privilegiá-la conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão a curto prazo, podemos pelos menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país. O descortinamento de tal quadro de responsabilidade social, de postura afirmativa de caráter nitidamente emergencial, na busca de uma igualdade escolar entre brancos e negros, esses parcela significativa de elementos abaixo da linha considerada como de pobreza, não permite que se vislumbre qualquer erva de inconstitucionalidade nas leis 3.524/00 e 3.708/01, inclusive no campo do princípio da proporcionalidade, já que traduzem tão somente o cumprimento de objetivos fundamentais da República

(Agr. Inst. nº 2003.002.04409 da 11ª Câm. Cível do TJ/RJ, 16-10-2003, rel. Des. Cláudio de Mello Tavares).

Sem adentrar, todavia, na questão da efetividade e justiça da política de cotas, conteúdo que os autores deixam para um artigo posterior, faz-se necessário lembrar que tal sistema não é a única alternativa para o acesso de minorias em universidades. Este ano, a Unicamp aprovou um programa de ação afirmativa que, ao invés de estabelecer um número de vagas, fornece uma pontuação extra para os alunos oriundos de escolas públicas e também para aqueles que se intitularem oriundos de grupos étnicos minoritários (negros, pardos e indígenas). Esse sistema é bastante semelhante ao adotado por várias universidades norte-americanas.


6. CONCLUSÃO

Contemporaneamente, permanece imprescindível a discussão a respeito da estrutura democrática. Pensar em democracia implica abstrair contextos sociais a tal ponto em que todos possuam a disponibilidade de participar. É percebida, portanto, como o poder do povo, ou seja, o poder de pobres, ricos, independentemente de raça, cor, religião, sexo, opção sexual.

Nesse sentido, a Constituição Federal define como preceitos fundamentais a dignidade humana (art. 1º, III), o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput). Esses direitos são denominados "fundamentais" por serem imprescritíveis, imprescindíveis e inalienáveis a toda pessoa; e quando violados, ferem a essência, o fundamento, do ser humano, terminando por descaracterizá-los. Logo, essa disponibilidade formal não pode estar atônita à realidade, mas sim, deve corresponder a uma garantida ação material que possibilite o acesso de tais direitos à toda a população.

Essa ação material, ou simplesmente afirmativa, tem o ímpeto de combater as desigualdades, mediante à valorização social, econômica, política e/ou cultural dos grupos historicamente marginalizados. Como instrumento jurídico, sem dúvida o mais ousado no combate à desigualdade, tem um papel fundamental na proposta democrática, assegurando, possibilitando e resgatando a pluralidade social. Dessa forma, a análise sistemática da Constituição Federal (especialmente do preâmbulo constitucional e dos arts. 1º, 3º e 5º caput) acorda o ingresso da ação positiva lato sensu no arcabouço jurídico brasileiro.

Por outro lado, isso não significa que toda política, por simplesmente ser tida como afirmativa, será necessariamente constitucional. Abusos e violações de toda ordem podem ser cometidas através do uso arbitrário e indistinto desse mecanismo inovador. Cabe ao bom senso do legislador, dos magistrados e principalmente da sociedade a árdua tarefa de utilizar a ação afirmativa de modo ponderado e proporcional para que ela possa atingir sua principal meta: reduzir as desigualdades e a discriminação, e não propagá-las.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998).

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: O Direito como Instrumento de Transformação Social. A Experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília: IPEA, 2002.

KERVEGAN, Jean-François. Existirá uma Filosofia Liberal? Observações sobre a obra de J. Rawls e F. Hayek. In BARBOSA FILHO, Balthazar (et. al.). Filosofia Política 6: O Poder. Porto Alegre: L&PM, 1991.

MELLO, Marco Aurélio de. Óptica Constitucional – A igualdade e as Ações Afirmativas. Disponível em <https://www.gemini.stf.gov.br/netahtml/discursos/ma_palestraTST.htm>. Acesso em: 27 nov. 2001.

RAWLS, John. Uma Teoria de Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SILVA, Luis Fernando Martins da. Estudo sóciojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil: aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado. Rio de Janeiro: 2004.

SKIDMORE, Thomaz E. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

TABORDA, Maren Guimarães. O princípio da Igualdade em perspectiva histórica. Revista de Direito Administrativo. São Paulo, 211, p. 256-262, jan/mar, 1998.

VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações Afirmativas e o Princípio da Igualdade. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

Sobre os autores
Daniel Lena Marchiori Neto

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estádio de doutoramento junto ao Colorado College, EUA. Professor de Teoria Geral do Estado e Introdução ao Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.

Vanessa Wendt Kroth

Graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Analista-Tributária da Receita Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCHIORI NETO, Daniel Lena; KROTH, Vanessa Wendt. A ação afirmativa e sua perspectiva de inclusão no arcabouço jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 605, 26 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6356. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

Artigo científico desenvolvido no projeto de pesquisa "Política de cotas raciais em universidades públicas à luz da Teoria da Justiça de John Rawls", financiado pelo PIBIC/CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Seitenfus.

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