No dia 16 de fevereiro de 2018 o atual Presidente do Brasil decretou pela primeira vez na vigência da atual Constituição Federal brasileira de 1988, a medida excepcional de intervenção federal da União em um Estado-membro da Federação.
A intervenção federal é um instrumento previsto no artigo 34 da atual Constituição Federal brasileira, e, este artigo, traz uma redação de expressivo significado, determinando em seu caput que: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para”.
A peculiaridade da redação consiste no fato de que proíbe a decretação da medida como regra geral ao afirmar que “a União não intervirá”, permitindo sua decretação tão somente de forma excepcional.
A excepcionalidade surge quando satisfeitos alguns princípios e requisitos. Primeiro, a temporariedade, pois que, por ser excepcional, a medida deve durar o menor período possível. Outro, a extensão da medida, que somente deve atingir área e instituições determinadas e não o Estado-membro todo ou todas as suas instituições. Necessidade, pois somente deve ser decretada se a necessidade for premente e a medida de intervenção o último recurso de que se lança mão, tendo falhado todos os outros meios disponíveis. A necessidade está ligada diretamente à duração, extensão e a certas situações descritas na própria Constituição, nos incisos de I a VII do artigo 34. A decretação da intervenção somente pode ocorrer caso uma dessas situações se mostrem, não sendo possível a decretação em outros casos, sendo esta relação taxativa, ou seja, definida em numerus clausus.
É certo que os incisos, notadamente o III (“pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”), traz uma redação aberta (numerus apertus), o que corrompe de certa forma a natureza excepcional do instituto da intervenção federal.
A intervenção federal, por fim, pode ser decretada de forma espontânea pelo Presidente da República ou depender de provocação. Quando a intervenção depender de provocação, o Presidente da República somente pode agir quando esta estiver presente. A provocação torna-se uma condição para a decretação da intervenção. A provocação, ainda, pode ser uma solicitação, ou seja, um pedido, ou pode ser uma requisição judicial. Quando a intervenção depender de provocação por requisição judicial, o Presidente da República elaborará o decreto de forma vinculada. Quando a intervenção depender de provocação na forma de solicitação ou for espontânea, o Presidente da República atuará com certa discricionariedade, mas o decreto precisa ser apreciado e aprovado pelo Congresso Nacional.
Observando-se o Decreto presidencial n. 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que instituiu a intervenção federal, principalmente seu artigo 1º, parágrafo 2º, percebe-se que o mesmo utilizou como base legal o acima citado inciso III do artigo 34 da atual Constituição Federal brasileira: “Art. 1º, § 2º. O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”. Trata-se, assim, de uma intervenção federal decretada de forma espontânea pelo Presidente da República, que depende de aprovação pelo Congresso Nacional, na forma dos artigos 84, X e 49, IV, ambos da atual Constituição Federal brasileira: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: X - decretar e executar a intervenção federal”; e, “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas”.
Este artigo, no entanto, não tem por objetivo discutir a constitucionalidade do Decreto de intervenção, sua conveniência ou oportunidade, mas a declaração seguinte do Presidente da República, que afirmou:
"Ajustamos ontem [quinta, 15] à noite, com participação muito expressiva do presidente Rodrigo Maia e do presidente Eunício Oliveira a continuidade da tramitação da reforma da Previdência, que é uma medida também extremamente importante para o futuro do país. Quando ela estiver para ser votada, segundo avaliação das casas legislativas, eu farei cessar a intervenção. No instante que se verifique, segundo critérios das casas legislativas, que há condições para votação, reitero, farei cessar a intervenção", disse. (CARAM, Bernardo; MAZUI, Guilherme. Temer diz que vai suspender intervenção no RJ durante votação da reforma da Previdência. Mazui, G1, Brasília, 16 fev. 2018, 13h38, atualizado há 3 horas. Acesso em: 16 fev. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/temer-diz-que-vai-cessar-a-intervencao-no-rj-durante-votacao-da-reforma-da-previdencia.ghtml>).
A questão surge em razão dos limites ao poder de reforma constitucional.
Nosso texto constitucional é rígido quanto à estabilidade, pois exige para sua alteração um procedimento especial, diferente e mais rigoroso do que aquele adotado para a confecção de normas infraconstitucionais.
Assim, existem limites ao poder de emenda e isto ocorre em razão de certos fatores. Primeiro, a reforma não pode atingir o que é essencial em uma Constituição, seu núcleo essencial, aquilo que lhe caracteriza e personaliza. Isto ocorre pois, assim agindo não se estaria reformando a Constituição, mas dando origem a uma nova ordem constitucional. E o poder de reforma não é suficiente para isto. O único poder capaz de dar nascimento a uma nova Constituição é o poder constituinte originário, que tem por titular o povo e surge de uma revolução. Revolução no sentido de inversão dos valores de uma sociedade.
A reforma, fruto do poder constituinte derivado, somente pode realizar alterações superficiais, portanto.
E a reforma é necessária por sua vez, pois como toda norma, fruto da capacidade intelectual limitada do ser humano, envelhece perdendo seu momento histórico e possui lacunas, falhas, incorreções e contradições.
Sendo assim surge a pergunta: o que é possível de se alterar em uma Constituição por meio do poder constituinte derivado de reforma (emenda constitucional)?
Os limites estão expressos e implícitos em nossa atual Constituição. São limites expressos os materiais, formais, temporais e circunstanciais.
Os limites materiais são as cláusulas pétreas, previstas no artigo 60, § 4º da atual Constituição Federal brasileira, ou seja, assuntos que não podem ser abolidos do texto constitucional:
“Art. 60. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”.
As cláusulas pétreas, como se observa, podem ser emendadas, não podendo, porém, ser abolidas da Constituição Federal brasileira atual.
O limite formal é o próprio processo legislativo de emenda, que possui nas fases de iniciativa e discussão e votação (fase constitutiva de deliberação legislativa) regras muito mais restritivas que a prevista para a elaboração de uma lei ordinária e de uma lei complementar:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
[...]
§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem”.
O limite temporal, que não existe propriamente na Constituição brasileira de 1988, pois seria uma regra que permitiria a emenda constitucional tão somente dentro de determinado período, por exemplo a cada 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos.
No entanto, próximo a isso, a atual Constituição brasileira estabelece que: “Art. 60. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Tal regra é um exemplo um tanto distante, mas que ainda pode ser considerado um limite temporal.
Por fim, os limites circunstanciais, que significam que em determinadas circunstâncias o texto constitucional não pode ser alterado: “Art. 60. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”.
Desta forma, decreta a intervenção federal não se pode realizar emendas à Constituição Federal, o que conflita diretamente com a afirmação do atual Presidente da República.
Ainda temos os limites implícitos, que podem ser reduzidos a dois. Primeiro, não se pode alterar o titular do poder constituinte derivado de reforma, o qual pertence ao Congresso Nacional. E tanto pertence ao Congresso Nacional que o Presidente da República participa do processo legislativo de criação das emendas constitucionais, no máximo, na iniciativa, quando apresenta uma proposta de emenda constitucional. Mas, diferente das leis ordinárias e complementares, as emendas não vão ao Presidente da República para sanção ou veto e nem mesmo para a promulgação e publicação, a qual é realizada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e Senado Federal.
Segundo, não se pode abolir os limites expressos, pois isto tornaria a Constituição menos rígida e, talvez, até a mudaria em flexível, alterando sua natureza e essência. Mas alterar a substância e identidade de uma Constituição é impossível por meio do poder constituinte derivado de reforma, como visto acima. Transmutar a Constituição de rígida para flexível é algo que somente compete ao poder constituinte originário.
O Presidente da República, a Sua Excelência Michel Miguel Elias Temer Lulia, advogado, professor de Direito Constitucional, autor de obras como Elementos de Direito Constitucional e Constituição e Política e um dos constitucionalistas mais citados nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, desta forma, não poderia de modo algum afirmar que continuará a apoiar o andamento da Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016 que trata da Reforma da Previdência, mesmo durante a vigência de intervenção federal, sendo a medida de exceção suspensa tão somente no momento da votação da emenda, retornando o Decreto a vigorar em seguida.
Tal atitude confronta o texto constitucional. O limite circunstancial impede não somente a votação mas também e, principalmente, a discussão de propostas de emenda constitucional, fase parlamentar constitutiva da emenda. E a razão para isto é que reformar a Constituição é uma atividade de tamanha responsabilidade que exige enorme solenidade no processo e atenção total dos parlamentares. Momentos de crise institucional que autorizam a decretação de intervenção federal, dividem a atenção dos parlamentares, tornando temerária a discussão e votação de proposta de emenda constitucional.
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal devem suspender o andamento de todas as propostas de emenda constitucional imediatamente, como forma de se observar regra constitucional que trata dos fundamentos e natureza da Constituição brasileira de 1988, impedindo que se subverta limite expresso ao poder de emenda por manobra escusa e nitidamente incompatível com proibições constitucionais, implícita e taxativa.
A continuidade do processo legislativo de emenda, com a discussão das propostas de emenda constitucional simplesmente fere de morte o limite constitucional circunstancial, tornando mais flexível o texto constitucional, o que é radicalmente contrário ao entendimento que se tem quanto a Constituição ser a norma fundamental garantidora do Estado Democrático de Direito.
Espera-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal seja provocado a se manifestar sobre a questão e suspenda a tramitação de todas as propostas de emenda constitucional, dentre elas a Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016, durante o período de intervenção federal que segundo o próprio Decreto presidencial n. 9.288/2018 perdurará até 31 de dezembro de 2018 (“Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018”), fazendo valer o princípio do Estado Democrático de Direito e o princípio da força normativa da Constituição.
Ainda, caso o Presidente da República suspenda a intervenção federal com o objetivo de votar proposta de emenda constitucional que foi discutida pelas Casas do Congresso Nacional durante o período de vigência da medida excepcional, retornando a vigorar o decreto imediatamente depois da votação, estará nitidamente desviando a finalidade da intervenção federal. Usar o dever-poder de fazer cessar uma medida excepcional como a intervenção apenas para conseguir a aprovação de uma emenda constitucional é evidente desvio de finalidade. O poder existe tão somente para satisfazer o dever, que, neste caso específico, seria por fim ou suspender a intervenção por razões ligadas à própria razão do decreto, qual seja, grave comprometimento da ordem pública. Assim, até pelos mais simples princípios de funcionamento da teoria do poder em uma República, seria inconstitucional a medida de suspensão.
A consequência da manobra é a tipificação de crime de responsabilidade previsto no artigo 85 da atual Constituição Federal brasileira, que prevê em seu caput como tal o fato do Presidente da República praticar atos que atentem contra a Constituição Federal, e inciso V do mesmo artigo, que atentem contra a probidade administrativa. Tal condenação pode levar, como ocorreu com os ex-Presidentes da República Fernando Affonso Collor de Mello e Dilma Vana Rousseff, a perda do cargo e inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judicias cabíveis (artigo 52, parágrafo único da atual Constituição Federal brasileira).