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A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro:

Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.605/98 e Lei nº 10.406/02

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Agenda 15/03/2005 às 00:00

2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

2.1 NOÇÕES GERAIS

RUBENS REQUIÃO (1969:17) explica no que consiste e qual o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica:

"[...] com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude)."

Desconsiderar a personalidade jurídica significa flexibilizar a autonomia desta, ou seja, atingir a eficácia da personalização. Nas palavras de FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:294), é uma sanção que consiste na "suspensão dos efeitos da separação patrimonial in casu".

MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:57) formula a seguinte definição:

"É a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica."

No direito brasileiro, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2002:35), há duas teorias acerca do assunto. Uma que ele denomina "teoria maior", que admitiria a desconsideração da personalidade jurídica para evitar o mau uso desta; e outra, que chama "teoria menor", segundo a qual a simples insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para arcar com suas obrigações autorizaria a responsabilização de seus sócios.

A teoria maior adota como pressuposto da desconsideração a fraude e o abuso da personalidade jurídica. Em razão da insuficiência desses pressupostos para resolver todos os casos, bem como da dificuldade de sua prova, dada sua subjetividade (OLIVEIRA,1979:555), FÁBIO KONDER COMPARATO defendeu um critério objetivo (OLIVEIRA,1979:552) para autorizar a desconsideração, consistente, principalmente, na confusão patrimonial (COELHO,2002:43).

A confusão patrimonial é apenas um dos motivos que FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295) defendeu como ensejadores da desconsideração. Para ele a desconsideração "é sempre feita em função do poder de controle societário", tendo por critério os pressupostos da separação patrimonial: "de tipo formal, como por exemplo, o respeito à espécie societária; ou o pressuposto substancial da permanência do objeto e do objetivo sociais, como escopo inconfundível com o interesse ou a atividade individual dos sócios." (1976:297).

Porém o pressuposto de tipo formal apontado por FÁBIO KONDER COMPARATO foi criticado, por exemplo, por JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:553), uma vez que, a ausência de tal pressuposto levaria à irregularidade da sociedade e, por conseguinte, à ausência de limitação de responsabilidade, razão pela qual não se cogitaria da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Enquanto a teoria maior é bem próxima da formulação original da doutrina da desconsideração, a menor chega a ser uma afronta ao atual ordenamento jurídico, pois viola o princípio da separação patrimonial onde não deveria, minando o instituto da pessoa jurídica (COELHO,2002:46).

Isso porque é imprescindível ater-se a dois enfoques antes de se verificar se é cabível a desconsideração. Em primeiro lugar, considerando, em abstrato, a finalidade da pessoa jurídica como instituto, nos moldes mencionados no tópico 1.3 (COELHO, 2002:37). Em segundo, apreciar o caso concreto tendo em vista se determinadas condutas desviaram do cumprimento do objeto social da pessoa jurídica sob análise.

Merece destaque o posicionamento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:262), para quem a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica nasce em reação à crise de função da pessoa jurídica, utilizada em contradição com os princípios informadores do ordenamento jurídico.

Essa é a base da teoria da desconsideração: a busca de um ponto de equilíbrio onde, ao mesmo tempo em que se proteja a autonomia patrimonial e a própria existência da pessoa jurídica, seja assegurada a sociedade contra o uso indevido deste instituto.

Saliente-se que, quando se diz sociedade, este termo pode abranger até mesmo sócios ou membros da pessoa jurídica, quando estes são prejudicados por outro ou outros sócios ou membros da corporação, ou instituição. Até mesmo a própria pessoa jurídica, conforme o caso concreto, é protegida com a aplicação da desconsideração. Isso ocorre porque, ao ser desconsiderada, seu patrimônio pode ficar intacto, sendo atingidos somente os bens de seus membros.

2.2 ALCANCE DOS EFEITOS DA DESCONSIDERAÇÃO

MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:64) elabora uma classificação da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com dois critérios. Conforme o primeiro deles, denominado intensidade, a desconsideração pode ser (1987:61): a) máxima: quando se ignora totalmente a eficácia da personalização, de modo que o sócio ou membro da sociedade seja colocado na relação jurídica que seria assumida pela pessoa jurídica ou vice-versa, como se esta não existisse; b) média: quando, embora se considere eficaz a autonomia da pessoa jurídica, seu membro ou sócio é colocado juntamente com ela na relação jurídica, como se fossem uma só pessoa, ou solidariamente; e c) mínima: quando, conquanto admitida a autonomia da pessoa jurídica, seu sócio ou membro tenha responsabilidade subsidiária pelos atos daquela, ou vice-versa.

Por sua vez, segundo o critério da extensão (1987:62):

"Pode-se distingui-la [a desconsideração] conforme incida sobre um específico ato jurídico, sobre uma série de atos e relações jurídicas entre a sociedade e uma pessoa específica e sobre todos os atos e relações jurídicas ocorridas dentro de um certo período de tempo."

Essas classificações, contudo, abarcam casos em que não se cuida de desconsideração da personalidade jurídica, quando, por exemplo, ocorre a solidariedade entre sócios e sociedade, ou sua responsabilização subsidiária.

Da mesma forma, a posição de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) não pode merecer acolhida. Segundo ele "para que se possa falar de verdadeira técnica desconsiderante, em termo de responsabilidade, será necessária a presença do princípio da subsidiariedade, explicitado à luz de uma concepção dualista da obrigação: responsabilidade subsidiária por dívida de outrem".

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Se a desconsideração é a suspensão da eficácia da personalização, então a pessoa jurídica não pode figurar na relação obrigacional de responsabilização, pois, caso contrário, ela estaria "sendo considerada".

Tendo em vista que em certas ocasiões a própria pessoa jurídica pode ser beneficiada por certos atos abusivos ou fraudulentos de seus membros, justifica-se, conforme seu proveito decorrente do ilícito, ser responsabilizada.

No caso da confusão patrimonial, de outro lado, se há a desconsideração, o patrimônio da pessoa jurídica é considerado como se fosse de seu membro, razão pela qual não se pode dizer que a pessoa jurídica esteja respondendo solidária ou subsidiariamente.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma outra técnica de responsabilização que não se confunde com a solidariedade ou com a subsidiariedade.

Nada obstante, não se pode esquecer que a desconsideração nem sempre ocorre para responsabilizar um sócio ou membro de uma pessoa jurídica, mas também para responsabilizar esta por atos de seus membros ou sócios (COMPARATO, 1976:364). FÁBIO ULHOA COELHO (2002:44) denomina essa hipótese de desconsideração inversa, e exemplifica com um caso em que determinado sócio transfere seu patrimônio para a pessoa jurídica para proteger seus bens quando dissolução do vínculo conjugal.

Por fim, ressalte-se que, para alguns autores, a desconsideração só ocorre quando a pessoa jurídica se coloca como obstáculo à coibição da fraude ou do abuso de direito, enfim, do uso indevido da autonomia. Isso porque, caso haja previsão expressa no ordenamento de imputação direta de responsabilidade por certos atos ao membro ou sócio, torna-se dispensável a desconsideração da personalidade jurídica (COELHO,2002:42; LOPES,2003:40; OLIVEIRA,1979:610).

A propósito, eis as palavras de JOÃO BATISTA LOPES (2003:40), para quem "as hipóteses legais de responsabilidade dos sócios por atos ilícitos ou contrários ao contrato social não devem ser qualificadas como desconsideração."

De outro lado, há uma corrente que entende configurada a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica quando o ordenamento atribui responsabilidade aos sócios desta ou a outras pessoas jurídicas a ela ligadas de alguma forma (JUSTEN FILHO,1987:102 e segs.; ALMEIDA, 2003).

Há casos ainda em que a lei simplesmente diz expressamente que a "personalidade jurídica será desconsiderada", sem contudo estarem preenchidos os requisitos elaborados pela doutrina da desconsideração.

Essa polêmica será analisada no decorrer do trabalho.

2.3 HISTÓRICO

O caso Salomon vc. Salomon & Co., julgado pela justiça inglesa em 1897, e mencionado na monografia "Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali" do Prof. Piero Verrucoli, da Universidade de Pisa, é apontado por RUBENS REQUIÃO (1995:277) como a origem da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

Contudo, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9), as primeiras referências ao assunto teriam sido feitas pelo jurista norte-americano Maurice Wormser em 1912, na obra "Piercing the veil of Corporate Entity", que, aliás, é citada pelo Prof. Piero Verrucoli.

AMADOR PAES DE ALMEIDA (2003:186) anota que Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, em seu livro "A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas", 2. ed. Forense: 1995, p. 64, noticia como sendo o primeiro caso de aplicação do instituto o Bank of United States vs. Deveaux julgado nos Estados Unidos em 1809.

Ainda de acordo com a posição de FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9; 2002:36), a sistematização da teoria teria ocorrido pela primeira vez na Alemanha, na tese de doutorado apresentada por Rolf Serik à Universidade de Tübigen em 1953.

Apontam para RUBENS REQUIÃO como o pioneiro na defesa da teoria (COELHO, 2002:37) no Brasil, em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (REQUIÃO,1969).

Nesta conferência, RUBENS REQUIÃO (1969:15) defende que a personalização deve ser vista como relativa, e não como um efeito absoluto. Por isso, caso a pessoa jurídica fosse utilizada com abuso de direito ou fraude, seria admissível desconsiderar a separação entre ela e seus sócios.

Para FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), a explicação que funda a desconsideração da personalidade jurídica apenas na fraude e no abuso de direito não seria admitida em sua totalidade, pois "ela deixa de lado os casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem qualquer abuso ou fraude...".

Nada obstante seu trabalho se restringir à questão societária, FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:293-294) aponta quais seriam, no seu entender, os critérios utilizados para admitir o afastamento do efeito da personalização:

"...quando falte um dos pressupostos formais, estabelecidos em lei; e, também, quando desapareça a especificidade do objeto social de exploração de uma empresa determinada, ou do objeto social de produção e distribuição de lucros – o primeiro como meio de se atingir o segundo; - ou, ainda, quando ambos se confundem com a atividade ou o interesse individuais de determinado sócio."

Seja qual for o critério, para ele (1976:295) "a desconsideração é sempre feita em função do poder de controle societário".

Enquanto a posição do primeiro é chamada de subjetiva, a do segundo é considerada objetiva (COELHO,1989:41; LOPES,2003:39).

Como se verá, no item 2.4 infra, esses dois autores brasileiros, juntamente com JOSÉ LAMARTINE CORREA DE OLIVEIRA, seriam os maiores responsáveis pela inclusão da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro, mormente no Código Civil.

2.4 DIREITO COMPARADO NORTE-AMERICANO

Em razão da natureza do sistema federalista dos Estados Unidos, os Estados americanos apresentam muitas diferenças, principalmente no âmbito jurídico, de modo que as Cortes de cada unidade têm diferentes critérios para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica (NEVADA & OFFSHORE BUSINESS FORMATION, INC., 2003).

Segundo FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), os pressupostos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos são perqueridos casuisticamente, mencionando o seguinte julgado:

"in determining whether corporate entity should be disregarded, each case should be regarded as sui generis (Industrial Research Corporation v. General Motors, D.C. Ohio, 29 F 2d 623). [Na determinação acerca de quando a pessoa jurídica deve ser desconsiderada, cada caso deve ser considerado como sui generis]" (tradução livre)

Apesar do casuísmo, o ilustre comercialista (1976:296) menciona um julgado freqüentemente citado, que estabelece uma regra geral para a aplicação do instituto:

"Nos Estados Unidos, é freqüentemente citada, como critério geral de disregard of corporate entity, a seguinte declaração do voto do Juiz Sanborn, no caso United States v. Milwaukee Refrigerator Transit Co., julgado no princípio do século: ‘If general rule can be laid down, in the present state of authority, it is that a corporation will be looked upon as a legal entity as a general rule, and until sufficient reason to the contrary appears; but when the notion of legal entity is used to defeat public convenience, justify wrong, protect fraud, or defend crime, the law will regard the corporation as an association of persons’.[Se uma regra geral pode ser assentada, no presente estado de autoridade, é que a pessoa jurídica será, em regra, respeitada como uma entidade legal, e até que surja razão suficiente em contrário; mas quando a noção de entidade legal é usada para prejudicar a conveniência pública, justificar um erro, proteger fraude, ou amparar crime, a lei considerará a corporação como uma associação de pessoas]"(tradução livre).

No mesmo sentido, em recente artigo, GRANT M. YOAKUM (2003) anota, basicamente, as seguintes circunstâncias que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos:

"Em geral, um sócio pode ser responsável quando: 1. O controle da corporação por um ou mais sócios é tão completo que ela não tem uma existência distinta; 2. Este controle é exercido para cometer fraude ou ato ilegal contra terceiros; e 3. Terceiros sofrem ofensas ou perdas injustas como resultado do nível de controle e do mau procedimento do sócio." [tradução livre]

O item 1 dessa citação guarda íntima relação com o critério da confusão patrimonial, considerado como fundamental por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362):

"E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, dessarte, numa regra puramente unilateral."

Um outro critério utilizado para desconsiderar a personalidade jurídica nos julgados norte-americanos, lembrado por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362) é a inadequada capitalização. Como exemplo de aplicação desse critério, ele cita a decisão proferida no caso Arnold v. Phillips (117 F. 2d 497 (5th Circ. 1941), cert. denied 313 U.S. 583, 61 S. Ct. 1102, 85 L.E. 1539 (1941)).

No referido caso, o Sr. Arnold constituiu uma companhia com um capital autorizado de determinada quantia. Ocorre que ele subscreveu apenas pequena parte das ações, embora, de fato, tenha assumido o controle societário, uma vez que a companhia só contava com mais dois sócios, que subscreveram uma ação cada um. O aludido acionista majoritário emprestou dinheiro à companhia e recebeu uma garantia real em troca. Após uma crise econômica, quando o mencionado acionista já havia lucrado muito com juros de seu empréstimo e honorários por ser diretor da companhia, ele a executou, e ela, em seguida, veio a falir. Nesse caso, o tribunal julgou ineficaz essa execução, colocando o Sr. Arnold no quadro geral de credores, ao lado dos demais quirografários. (COMPARATO,1976:363-364).

Atualmente, um dos Estados americanos que proporciona maiores atrativos para as empresas é o de Nevada, seja pela baixa carga tributária, seja em decorrência de outros benefícios econômicos. Nessa linha de cultura, conforme informações de NEVADA & OFFSHORE BUSINESS FORMATION, INC. (2003), a Corte daquele Estado é a mais rigorosa de todas, permitindo a desconsideração da personalidade jurídica em casos estritos, desde que preenchidos os seguintes requisitos, cumulativamente, os quais devem ser provados pelo requerente:

"1. A corporação deve ser influenciada e governada pela pessoa criada para ser o alter ego [outro eu]; [...] 2. Deve existir uma tal unidade de interesses e propriedades de modo que um seja inseparável do outro; e 3. Os fatos, se atribuídos apenas à corporação como uma entidade autônoma, sob as circunstâncias concretas, aprovariam a fraude e promoveriam a injustiça. Se qualquer um desses três itens não estiver adequadamente provado, a desconsideração não será deferida." (tradução livre)

Já no Estado da Califórnia, consoante assinala MARY HANSON (1997), casos datados do início de 1900 têm exigido de forma persistente dois requisitos antes de responsabilizar os sócios: a) deve haver uma unidade de interesses e propriedades entre a corporação e os sócios de modo que as personalidades ou identidades não possam ser distinguidas; e b) o resultado de se considerar os atos como sendo apenas da corporação deve ser injusto.

Como se vê, a linha adotada nos Estados Unidos, de modo geral, não se afasta daquela que inspirou o atual Código Civil, conforme se verá abaixo. Aliás, o Código Civil é mais coerente do que as demais disposições do ordenamento brasileiro que autorizam a desconsideração sem que a pessoa jurídica tenha sido utilizada como instrumento de abuso ou fraude.

2.5 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A DESCONSIDERAÇÃO

RUBENS REQUIÃO (1969:21), quando defendeu a aplicação da doutrina em nosso país, esclareceu, na época, não haver no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo que a autorizasse, apesar de existirem diversos artigos que poderiam ter o mesmo objetivo da desconsideração da personalidade jurídica. Citou, a propósito, o grupo econômico mencionado na CLT, bem como os artigos 121, 122 e 167 do Decreto-lei n.º 2627/40, que dispõem respectivamente sobre responsabilidade dos diretores por descumprimento da lei ou dos estatutos e acerca da dissolução da sociedade quando exercer atividade ilícita.

Nessa linha, assinala FÁBIO ULHOA COELHO (2002:49) que a doutrina da desconsideração foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Defesa do Consumidor, que dispõe em seu art. 28, verbis:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[...]

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

Ainda de acordo com o referido autor (COELHO,2002:52), o segundo dispositivo legal a adotar a teoria, embora sem obedecer sua formulação original, foi o art. 18 da Lei n.º 8.884/94, cujo teor segue abaixo:

"Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração."

A terceira menção à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica foi feita pelo art. 4.º da Lei 9605/98 (COELHO,2002:53), com a seguinte redação:

"Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente."

Por fim, chega-se ao Código Civil, Lei n.º 10406/02, que apresentou a seguinte disposição em seu art. 50, verbis:

"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

Esse dispositivo introduziu no ordenamento uma posição mais próxima da doutrina melhor elaborada do instituto da desconsideração (COELHO, 2002:54).

Nota-se no art. 50 do Código Civil as posições de RUBENS REQUIÃO e de FÁBIO KONDER COMPARATO acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. De fato, além das contribuições desses dois doutrinadores, a de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA também foi lembrada no parecer final n.º 749 de 1997 (FREITAS, 2002:265).

Apesar de algumas críticas que possam surgir contra o art. 50, o fato é que, para RUBENS REQUIÃO (1995:278), é dispensável a previsão legal para a aplicação da desconsideração. No mesmo sentido, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:54) afirma que a aplicação da desconsideração independe de previsão legal, e a melhor interpretação dos dispositivos legais acima:

"é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica."

O entendimento exposto supra, acerca da ordem cronológica dos primeiros dispositivos legais que consagraram a teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro, não é unânime.

AMADOR PAES DE ALMEIDA (2003:186) opõe-se a ele, defendendo que a CLT teria sido o primeiro diploma legal a prever o instituto no art. 2.º, § 2.º.

Esse dispositivo também é citado por outros autores como sendo um exemplo de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO,1987:102; FREITAS, 2002:274).

Todavia, a simples atribuição de responsabilidade solidária não pode ser considerada uma hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração, muito embora possa, às vezes, ter objetivos análogos (REQUIÃO, 1969:21).

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAI, Leandro. A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro:: Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.605/98 e Lei nº 10.406/02. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 615, 15 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6440. Acesso em: 23 dez. 2024.

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