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A função extrafiscal da tributação

Esclarecimento de alguns questionamentos sobre o fenômeno da extrafiscalidade, analisando seus principais efeitos e proporcionando um maior entendimento acerca dessa importante função presente no direito tributário.

1. Introdução

A Extrafiscalidade é um tema de importância primordial nas questões de tributação e no impacto direto que o direito tributário tem no cotidiano dos indivíduos. O uso extrafiscal dos tributos é instrumento altamente conveniente para que o Poder Público possa reverter situações que estão ocorrendo na sociedade ou provocar mudanças no cenário social. Além de conseguir, dessa forma, controlar hábitos de consumo ou direcionar práticas sociais, a extrafiscalidade é utilizada na efetuação de objetivos constitucionais, como a proteção ao meio ambiente e a justiça social. Destarte, nota-se a relevância que tal assunto, tão pouco explorado pela doutrina e muitas vezes despercebido por grande parte dos indivíduos, possui para a sociedade como um todo. Visando desmistificar este tema e revelar características de cunho intrigante que ele traz à tona, o presente artigo desvenda alguns temas selecionados e busca esclarecê-los, proporcionando uma reflexão e entendimento de alguns dos principais desdobramentos da extrafiscalidade.


2. Conceito de extrafiscalidade e sua importância

O Estado possui o dever de exercer competências voltadas para o bem da sociedade através da prestação de serviços públicos e edificação de obras com vistas a satisfazer as necessidades dos cidadãos. Tendo em vista o poder-dever de atender as demandas da sociedade, fornecendo-lhe recursos importantes para o bem coletivo, faz-se necessária a existência de um meio pelo qual a União possa fazer frente às despesas decorrentes disso. Essa é a principal finalidade e justificativa primária para a existência dos tributos. A tributação encontra-se em centralidade no contrato social estabelecido entre os cidadãos para que se alcance o bem-comum. Ela emana do Estado, e tem força tão expressiva quanto à manutenção de ordem interna, declaração de guerra ou a aplicação de uma punição aos delitos que os cidadãos comentem.

A tributação, contudo, é essencial para que todas essas outras atividades possam ser realizadas. Todavia, reduzir a tributação à simples função de arrecadação de riquezas é ignorar a força de seu poder e influência na sociedade. Existe, entre outras finalidades (que não são o foco deste trabalho), uma função extraordinária na cobrança de tributos, pouco discutida, porém de suma importância: a chamada extrafiscalidade. Ela se configura quando determinada espécie tributária ocorre com um propósito além do fisco meramente arrecadatório, mas buscando exercer algum tipo de influência na economia ou nas relações sociais, podendo possuir caráter até mesmo político.

O entendimento da extrafiscalidade surge após o Estado de Bem-Estar Social, que, por sua vez, foi criado para contrapor-se ao Estado Liberal. Inicialmente, o Estado Liberal (ou Estado-mínimo) caracterizava-se por ser menos oneroso, mas por outro lado, gerava maior desigualdade socioeconômica. Era visto como mau administrador, uma vez que usava os tributos arrecadados apenas para a manter a máquina estatal e garantir liberdades individuais. Buscando reparar os males causados por este modelo de política, o Estado Intervencionista agrega para si a responsabilidade de garantir a justiça social, dando aos governantes um maior número de competências. É neste ponto que surge a função extrafiscal da tributação, que vai além da obtenção de receita. Todavia, o Estado com mais competências torna-se mais oneroso, e a elevada carga de tributos permite que exista um maior número de casos de corrupção por parte dos governantes, tornando o Estado ineficiente. O Estado Hodierno atua no sentindo de buscar um meio termo em relação aos dois modelos anteriores: ele dever ser menos oneroso e mais eficiente, sem ignorar as liberdades individuais e cumprindo seu compromisso com a justiça social.

A Extrafiscalidade pode ser vista sob um viés ontológico e epistemológico, relacionando-se diretamente com a concretização de valores constitucionais, provocando alterações nas cargas tributárias e buscando influenciar o comportamento social dos indivíduos. Para desestimular comportamentos, o Estado pode criar uma norma jurídica que transforme o fato em ilícito ou impedir que se realize a ação através de um tributo extrafiscal “proibitivo”. Nas palavras de Ataliba: “Consiste a extrafiscalidade no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados”. Dessa forma, a extrafiscalidade ultrapassa o caráter meramente financeiro dos tributos e busca incidir sobre outros âmbitos da sociedade, inibindo ou estimulando determinados comportamentos.

É fácil notar a forma pela qual os tributos influenciam nos comportamentos sociais. Quando se tributa muito determinado produto ou atividade, haverá uma tendência natural de que se diminua a procura por tais produtos. Por exemplo: o Estado, buscando fomentar o desenvolvimento da indústria nacional, aumenta as alíquotas que incidem sobre produtos importados, tornando a compra destes mais onerosa e, assim, provocando uma maior procura por produtos nacionais. Diversas são as situações em que os tributos possuem esse tipo de finalidade extrafiscal. O ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), por exemplo, é o tributo em que mais aparece a extrafiscalidade. Mais tributos sobre o consumo oneram mais pesadamente certo bem, contribuindo para o seu aumento de preço em relação aos demais. Deste modo, produzir bens mais onerados revela-se menos interessante do que a produção de outros bens menos tributados. Esse tipo de manipulação permite que o legislador ou o gestor da política fiscal possam regular a produção de bens que circularão no mercado interno. Entretanto, a extrafiscalidade não se reduz à indução ou cerceamento de comportamentos através de tributos. Ela também pode ser utilizada a fim de se buscar cumprir determinados valores constitucionais. A Constituição Federal elenca diversos direitos sociais e objetivos de grande relevância, como a proteção da família, do idoso, da criança e do adolescente; a promoção da seguridade social, da cultura e do desporto; etc. A extrafiscalidade induz os agentes privados a adotarem práticas totalmente preenchidas de responsabilidade social e que possivelmente não ocorreriam sem o incentivo. Na legislação tributária, encontram-se dispostas algumas normas que buscam atingir tais valores, como a imunidade tributária de entidades de educação e assistência social sem fins lucrativos e benefícios sociais em favor de atividades desportivas e culturais, por exemplo.

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3. A extrafiscalidade: benefícios e agravamentos fiscais e manutenção da carga tributária

Quanto à influência da extrafiscalidade na indução ou desestímulo de comportamentos, visando ao interesse público, as normas tributárias indutoras podem instituir benefícios ou agravamentos fiscais. Os agravamentos fiscais, de modo geral, constituem em uma elevação da carga tributária em razão do tempo do valor da base de cálculo. Os benefícios, por sua vez, são caracterizados pela intervenção estatal no comportamento dos agentes econômicos, através de diminuição do ônus tributário para desenvolver determinadas áreas. Os incentivos fiscais estão situados na esfera da extrafiscalidade: eles geram redução de receita pública compulsória, ou a extinção de sua exigibilidade. Difere-se da isenção tributária, inclusive quando gera total exoneração do tributo. A isenção tributária diferencia-se por maior campo de atuação, e pode ser concedida em função de certos bens ou de certas pessoas, sempre vinculado ao interesse público. O incentivo fiscal, por sua vez, tem a função de desenvolver uma região do país ou uma atividade econômica específica, mostrando a incidência direta da extrafiscalidade na sua finalidade. São medidas que estimulam determinados comportamentos dos agentes econômicos. Só podem ser concedidos ou revogados por leis específicas, e, de modo a garantir transparência e segurança jurídica, apenas pela União, pelos Estados e pelos Municípios.

Na prática, os incentivos fiscais, basicamente, consistem na supressão ou redução do ônus da arrecadação dos tributos. As principais formas de incentivos fiscais são as subvenções (benefícios de natureza financeira), os créditos presumidos (benefícios de natureza complexa: ora se apresentam como subsídio, ora como mera redução da base de cálculo), os subsídios (estímulos fiscais temporários diretos do governo, visando o desenvolvimento de atividades econômicas) e as isenções tributárias.

Agravamentos fiscais, por sua vez, constituem fenômeno de fácil compreensão. Neles, o legislador torna a carga tributária progressivamente mais elevada em razão do tempo do valor da base de cálculo. Também se apresentam quando a tributação é seletivamente mais severa segundo a essencialidade ou localização do objeto tributado, ou a partir da intensidade da mão-de-obra que o contribuinte utiliza. Busca, portanto, o desestímulo de um comportamento. Para atingir este objetivo, o Estado pode criar norma jurídica que transforme o fato em ilícito, ou pode criar um tributo extrafiscal “proibitivo”.

Outra situação interessante, ocorre quando há extrafiscalidade sem que haja aumento ou diminuição da carga tributária. As leis de incentivo à cultura exemplificam perfeitamente como isto pode ocorrer. O agente cultural (o artista, o organizador de um evento, ou uma exposição, por exemplo) cria o seu projeto e apresenta-o para avaliação administrativa. Após ter seu projeto aprovado, o autor busca contribuintes do tributo para patrocinar o projeto e receber o benefício. Neste momento, parte do imposto do contribuinte é destinado à realização do projeto cultural, enquanto que a outra parte ainda é destinada à receita federal. Nota-se, deste modo, que o pagamento ao agente cultural em nada reduz o montante que o contribuinte deve pagar, porém, incentiva o desenvolvimento de atividades ligadas a cultura.


4. Extrafiscalidade e suas principais áreas de incidência

Diversas são as espécies tributárias sobre as quais o fenômeno da extrafiscalidade incide. Os mais freqüentes são os impostos. Os Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI), por exemplo, possuem função predominantemente extrafiscal e dá margem para intervenção do Estado em diversos setores. Como já mencionado anteriormente, o IPI pode ser usado para estimular o crescimento da indústria nacional, tributando mais os produtos importados, e não incidindo sobre produtos que serão exportados (há imunidade do IPI para vendas ao exterior - art. 53, CF/88). O IPI, portanto, pode interferir diretamente na balança comercial do país, estimulando o volume de venda das indústrias brasileiras. Outro imposto de caráter predominantemente extrafiscal é o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), integrado por Impostos sobre Operações de Créditos, Impostos sobre Operações de Câmbio, Impostos sobre Operações de Seguro, Imposto sobre Operações Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários; e Imposto sobre Operações com ouro quando definido em lei como Ativo Financeiro. “O IOF é muito mais um instrumento de manipulação da política de crédito, câmbio e seguro, assim como de títulos e valores mobiliários, do que um simples meio de obtenção de receitas, embora seja bastante significativa sua função fiscal, porque enseja a arrecadação de somas consideráveis”.

Além do ICMS já mencionado, um último exemplo de imposto que possui caráter extrafiscal é o próprio IPTU (Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana). Apesar de sua finalidade fiscal ser predominante, esse tributo está envolto de mecanismos para assegurar que a função social da propriedade seja cumprida, sendo, portanto, instrumento para garantir um princípio constitucional fundamental.

Além dos impostos, algumas taxas e contribuições especiais também cumprem função extrafiscal. Um exemplo de taxa que possui tal caráter é a Taxa de Preservação Ambiental (L.C. 185/2013), cobrada em Fernando de Noronha, que tem por finalidade definida a manutenção das condições ambientais e ecológicas do Arquipélago de Fernando de Noronha (art. 83, lei 11.305). Já nas chamadas Contribuições Especiais, o caso mais comum ocorre nas Contribuições Interventivas no Domínio Econômico (CIDE). Seu objetivo predominante, como o próprio nome sugere, é a intervenção na economia, sendo esta a função principal e direta deste tipo de contribuição.


5. Conclusão

A tributação detém importante posição no núcleo do contrato social entre os cidadãos, no que tange à busca pelo bem comum. Entre as suas finalidades, vale o destaque da função econômica, na qual existe alocação de recursos e estabilização do quadro financeiro, e a função social, que garante que os tributos arrecadados se destinem não apenas à manutenção da máquina estatal, mas que também sejam convertidos em benefícios à sociedade. A extrafiscalidade apresenta-se justamente nessa busca por um Estado eficiente, que garanta um bem-estar aos seus cidadãos: transforma questões financeira, antes neutras, em funcionais. Ressalta-se que não existem tributos que possuam exclusiva função fiscal ou extrafiscal.

As duas funções agem de maneira conjunta, havendo predomínio de uma delas em certos tributos, e predomínio da outra no restante. Evidencia-se, tanto no Brasil quando no resto do mundo, a centralidade da função extrafiscal da tributação na regulação de atividades econômicas, seja através de incentivos como na proteção do meio ambiente ou na maior incidência de tributos sobre drogas lícitas: há clara tentativa de interferência no comportamento humano através da tributação (incentivando, no primeiro caso, e desestimulando, no segundo).


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Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ACCIOLY, Isabella; MELLO, Maria Luísa Sette Costa et al. A função extrafiscal da tributação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5958, 24 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64665. Acesso em: 22 dez. 2024.

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