7. Considerações finais sobre o pensamento comunitarista. Compatibilidade com a obra de John Rawls
Os comunitaristas afirmam que a identidade e a capacidade de auto-realização dos indivíduos encontram-se intimamente relacionadas com seus laços sociais e comunitários. As pessoas devem ter condições efetivas de viver em um ambiente pluralista, onde é possível conviver com as diferenças, e onde as divergências são discutidas e encaminhadas de forma pacífica, tendo em vista o consenso, ou ao menos a concordância sobre alguns pontos principais, sem que isso signifique a discriminação ou a exclusão de grupos com menos voz na sociedade (as chamadas “minorias”).
Podemos concluir que algumas das diferenças e semelhanças fundamentais entre o pensamento de Rawls e os ideais comunitaristas seriam:
a) o fato de que estes (os comunitaristas) dariam mais importância à participação das inúmeras esferas associativas e/ou comunitárias na distribuição dos bens sociais e na construção do respeito aos direitos fundamentais;[99]
b) a obra de Rawls geralmente é concebida em “condições ideais de temperatura e pressão”, isto é, pressupõe que as pessoas participando da discussão sobre os princípios de justiça são pessoas “livres e iguais”, capazes de ter um senso de justiça e de possuir concepções particulares acerca do bem; os comunitaristas têm bases mais empíricas e realistas;
c) ambos os pensamentos reconhecem os direitos e liberdades básicas tradicionais, em regra protegidos na Constituição;
d) em ambos os pensamentos, há a busca de uma base de valores morais que seriam necessários para a justiça social e para o respeito aos direitos fundamentais; a diferença é que na obra de Rawls a concepção política de justiça é neutra com relação a concepções substanciais do bem, ou da vida boa, que não sejam referentes ao pluralismo, ao debate democrático, e aos valores da igualdade e da liberdade; já as concepções comunitaristas estão mais preocupadas em defender um rol mais extenso de virtudes cívicas, que abrange as defendidas por Rawls, como tolerância, respeito/confiança mútuos, moderação/autocontrole e disponibilidade para se juntar aos demais no meio do caminho, mas vai além, abrangendo também confiança mútua, amizade cívica e solidariedade;[100]
e) a educação deve ser dirigida para o cultivo das virtudes cívicas; a diferença será na abrangência menor (Rawls) ou maior (comunitaristas) para o rol de virtudes cívicas a serem estimuladas;[101]
f) a recomendação comunitarista para que o Estado cuide da saúde das instituições básicas da sociedade civil diferentes do Governo e do Mercado, estimulando entidades associativas que nutrem concepções do bem compatíveis com uma sociedade liberal, democrática e pluralista;
g) os comunitaristas propõem um conceito de cidadania robusto, integrado por direitos individuais balanceados por responsabilidades sociais; já na obra de Rawls essa discussão é pressuposta, quando ele fala acerca da cooperação em uma sociedade bem ordenada, assunto que, todavia, é pouco desenvolvido;
h) os comunitaristas em regra defendem que as responsabilidades sociais, os deveres cívicos, devem em regra ser estimulados, e não impostos; partem do pressuposto de que a solidariedade deve ser espontânea e culturalmente adquirida, e não imposta de cima para baixo;
i) os comunitaristas defendem o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado deve ajudar ou subsidiar os grupos e comunidades, organizados em suas respectivas esferas, na participação em políticas públicas de defesa dos interesses sociais.
Assim, não consideramos que sejam “incompatíveis” a obra de Rawls e o pensamento comunitarista liberal. Sem dúvida abordam questões de justiça social de formas diferentes, mas nada impede que a concepção política de Rawls seja preenchida pelos valores agregados mais substanciais (comunitaristas), de forma a possibilitar uma teoria da justiça mais realista para com a organização da sociedade em suas inúmeras esferas associativas.
Nessa linha, os comunitaristas têm muito a contribuir para o enriquecimento da doutrina dos direitos fundamentais, não tomando como pressupostos os direitos humanos já reconhecidos na Declaração Universal de 1948 e nos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966. A elaboração de uma doutrina universal dos direitos humanos, que realmente tenha o consenso sobre um rol de direitos mínimos, não pode ser imposta de cima para baixo, mas antes deve resultar de uma discussão ampla com as inúmeras comunidades que compõem cada sociedade estatal.
No contexto de tais discussões, poderíamos inclusive lembrar do “mínimo existencial”[102], o rol prévio de direitos necessários para o desenvolvimento das potencialidades humanas, que são aqueles direitos básicos que devem ser garantidos pelo Estado às pessoas, para que elas possam se desenvolver com dignidade e que assim possam, quando adultas, exercer de forma plena, consciente e autônoma, os seus direitos civis e políticos (os direitos individuais tradicionais), que são reconhecidos amplamente pelas teorias estudadas. Esse rol prévio é composto pelos direitos sociais, econômicos e culturais, cujo respeito pressupõe o planejamento e a execução orçamentária de políticas públicas com efetivo dispêndio de recursos públicos dirigidos para determinadas áreas espaciais (bairros, regiões) onde serão prestados os serviços de educação, qualificação profissional/técnica, saúde, cultura, esporte/lazer, infraestrutura comunitária, saneamento básico etc. Repita-se: sem o respeito a esses direitos sociais, econômicos e culturais, especialmente em áreas carentes, as crianças e adolescentes não podem se desenvolver com dignidade para, quando adultas, exercerem de forma plena, consciente e autônoma, os seus direitos civis e políticos. Não terão acesso à “igualdade de oportunidades” na linha de partida, como preconizou Rawls.
Assim, com base nos ideais comunitaristas, poderíamos propor uma discussão sobre alguns “direitos” da realização humana (não necessariamente individuais, sendo alguns sociais, outros difusos), também relacionados com a virtude cívica da amizade cívica, ou da solidariedade:
1. direito a explicações sobre atos potencialmente danosos a si, sua família, seus amigos, sua comunidade, seu país e mesmo o planeta (reforçado pelo princípio da motivação dos atos administrativos);
2. direito ao atendimento de qualidade pelo serviço público, tendo em vista o princípio da eficiência administrativa, que gera o princípio do aprimoramento progressivo e prático dos padrões de desempenho administrativo;
3. direito à observância do princípio da subsidiariedade, que recomenda a interação pluralista entre diversas entidades coletivas autônomas e locais (associações sem fins lucrativos, associações comunitárias, fundações etc.) na distribuição de tarefas de interesse social, mediante delegação e apoio do Governo;
4. direito de acesso à sociabilidade: estímulo à associação civil – cada comunidade/bairro deve ter a sua infraestrutura comunitária garantida pelo Poder Público, caso não possa ser financiada pela própria comunidade, a fim de que possa haver um espaço comunitário que transcenda as comunidades que geram divisão (religiosas, filosóficas, esportivas etc.), assim, haveria um local para se discutir sobre o que todos tem ou querem ter no bairro, um local para a participação, por exemplo, no orçamento participativo do município ou região; nessa infraestrutura comunitária, que poderia ser compartilhada ou não, conforme o caso, com os alunos da escola pública do bairro, haveria acesso a espaços coletivos de criatividade, esportes, artes e projetos de cooperação. Deve ser estimulada a cooperação a nível local nos espaços urbanos e no meio rural.
5. promoção de um “ecletismo prático”, no seio das comunidades carentes, que se daria pela conjunção dos saberes e práticas locais, enriquecidos pelo contato com profissionais de inúmeras áreas;
6. promoção de cursos para a formação de líderes comunitários, principalmente em comunidades carentes, com vistas a promover a autonomia de tais vizinhanças explorando o potencial das lideranças naturais da comunidade, aposentados e desempregados; deveria haver, todavia, o acompanhamento do Ministério Público e da Polícia Comunitária (via Polícia Militar ou Civil), de forma a se evitarem os abusos por parte de membros do crime organizado.
8. Considerações sobre algumas condicionantes para a efetivação local das propostas liberais-comunitaristas no Brasil
O abandono das áreas de periferia urbanas pelo Estado é também o abandono, pela sociedade dominante (ocupante dos cargos de controle da despesa pública-orçamentária), da sociedade carente que se encontra dentro dos orçamentos, mas fora das alocações reais (aplicações localizadas de verbas públicas), as quais só aumentam a concentração da aplicação de recursos públicos nas áreas que já receberam recursos públicos (fenômeno da Segregação Urbana).
A lei, ao ser aplicada no tempo, parece mudar de “forma objetiva” quando ela é revogada por outra, a partir de um prazo que foi pré-estabelecido. Mas, especificamente a lei orçamentária, que é uma lei de efeitos concretos, votada para ser aplicada em um espaço específico, antes de ser aplicada, muitas vezes, por pressões da classe dominante, acaba sendo modificada e, com isso, a verba que iria para uma comunidade carente acaba vindo a ser redirecionada para espaços públicos que já tinham recebido investimentos públicos bem maiores, no passado, do que aquela área carente. Com isso, a distância de qualidade de vida entre a área privilegiada e a área carente só faz aumentar, a cada ano que passa.
Assim, necessária se faz uma postura mais engajada dos operadores jurídicos, especialmente os juízes e membros do Ministério Público, em cobrar dos governantes a realização de atos de ofício tendentes a efetivar a institucionalização municipal da gestão orçamentária participativa, um dos mecanismos mais importantes da gestão democrática das cidades, mas que não tem recebido muita atenção em municípios onde prevalecem as práticas clientelistas e patrimonialistas e onde os recursos públicos são em maioria alocados nos espaços urbanos já elitizados, perpetuando a segregação urbana.
Frise-se, aqui, que não se quer propor a imposição de um orçamento participativo, pois isso iria contra a própria natureza democrática do instituto de gestão orçamentária defendido. Mas daí a esperar que as próprias comunidades financiem a organização institucional e administrativa das discussões e encaminhamentos do orçamento participativo, sem inclusive contar com um suporte técnico e acadêmico que lhes dê a referência de outras experiências, é literalmente ter mais uma "lei pra inglês ver”.
É por isso que é tão importante que o estímulo, a estrutura institucional e os recursos necessários para se promoverem discussões para implantação do orçamento participativo partam da Câmara de Vereadores e da Prefeitura, que são os dois órgãos que, juridicamente, controlam mais de perto as despesas públicas, seja autorizando-as na lei orçamentária (poder legislativo), seja executando as despesas aprovadas na lei orçamentária (poder executivo).
Mas, por incrível que pareça, o inciso I do art. 52, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/2001), que previa como ato de improbidade a omissão do prefeito e do presidente da Câmara em promover os atos necessários à implantação do orçamento participativo, foi vetado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, convergindo com os interesses mais conservadores e os lobbies mais antidemocráticos e elitistas, que não querem o dever de ter que dividir a gestão local dos recursos públicos com comunidades pobres. Com isso, uma das normas mais importantes para o pontapé inicial na gestão democrática das cidades, foi simplesmente excluída do ordenamento jurídico por um ato unilateral e isolado do Presidente, depois de ter sido aprovada pelo Congresso Nacional.
Necessário se faz, portanto, que se reinterprete a lei de improbidade administrativa, em seu artigo 11, que cuida dos atos de improbidade administrativa que ofendem os princípios da administração, para enquadrar os prefeitos e presidentes de câmaras legislativas na prática de ato de improbidade ao se omitirem em promover atos destinados a implantar e organizar o orçamento participativo na cidade, ao longo de seus mandatos. A esse respeito, o inciso II do art. 11 da Lei 8429/92 prevê como ato de improbidade o de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.
Ora, em não havendo a promoção do orçamento participativo pelas autoridades competentes para tanto,[103] tem-se uma omissão que transgride gravemente os princípios da legalidade, moralidade, eficiência, previstos no art. 37 da CRFB/88 e aplicáveis às Administrações Públicas de todas as esferas de governo no Brasil. Transgride-se absurdamente também o preceito fundamental que integra todas as leis orgânicas municipais por determinação expressa da Lei Maior (art. 29, XII, CRFB/88), regendo a gestão política municipal, qual seja, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal“. Ora, essa cooperação foi regulada pelo Estatuto da Cidade, e tem seu apogeu na gestão democrática da cidade.
Assim, mesmo tendo sido vetado o referido inciso do Estatuto da Cidade, como a sua norma é tão importante, pode ser extraída de outros trechos de nosso ordenamento, notadamente a Constituição e a própria lei de improbidade administrativa, não estando de mãos atadas o Ministério Público, podendo ele processar por improbidade administrativa os governantes que se omitirem em promover ou estimular as discussões necessárias à implementação do planejamento e da gestão orçamentária participativos.
Entendemos também necessária – via reforma legislativa federal e estadual – a distribuição local imediata, para os municípios, de parte dos impostos federais e estaduais pagos em seus territórios, porque assim os espaços locais que imediatamente geram a riqueza tributada não precisam esperar que a riqueza vá ao centro (para Brasília ou para a capital estadual) para depois esta ser redistribuída pelas transferências constitucionais/obrigatórias, e por outras, “voluntárias”, estando estas últimas ainda por cima sujeitas a eventuais retenções abusivas ou liberações que variam conforme as alianças político-partidárias, e não conforme as necessidades da sociedade e os acordos ou convênios firmados.
Os bairros carentes devem ter seus próprios equipamentos urbanos e comunitários, suas escolas e postos de saúde, praças, centros comunitários. Cooperativas de crédito e de serviços devem ser facilitadas, e deve haver estímulo à criação de estações de rádio e/ou canais de televisão comunitários (que veiculariam programas e seriam uma opção diferenciada aos outros canais e estações). Há que se falar ainda em direito a políticas públicas localmente adaptadas, descentralizadas e fiscalizadas quotidianamente pela própria população que recebe o serviço.
Gostaríamos, por fim, de ressaltar que inúmeras outras formas de apoio ao associativismo podem ser lembradas, como por exemplo o financiamento de projetos sociais executados por Organizações não governamentais em áreas carentes, com recursos provenientes de empresas e/ou do governo; ou ainda, a prestação de serviços de interesse social e comunitário por parte de Professores e alunos de cursos universitários, de forma integrada com as comunidades carentes, em projetos de extensão universitária, que podem ser financiados por empresas, por bolsas concedidas por Universidades, Fundações ou pelo próprio Governo.
Partimos do ponto de vista que, para ter sustentabilidade, os projetos sociais não devem a princípio estar fundados no trabalho voluntário, a não ser que este não tome muito tempo das pessoas. Determinados projetos sociais exigem dedicação integral, e para que sejam estáveis e produzam efeitos de longo prazo, devem pressupor uma remuneração fixa para os que trabalham nos projetos. Isso possibilitaria, a longo prazo, uma mudança da cultura e das práticas locais, pela construção coletiva e espacial da cidadania com seus direitos, liberdades e garantias correspondentes.