UMA ALTERNATIVA POSSÍVEL
No íntimo, todos compartilham dos mesmos valores de preservação da vida humana, seja fetal ou embrionária. A questão é como atingir esta aspiração de forma realmente efetiva. Um número crescente de casais busca, por anos, a realização de um simples sonho de ter filhos, igualmente frustrados pelo elevadíssimo custo dos procedimentos de inseminação artificial ou pelo complexo e ineficiente sistema de adoção brasileiro, que condena os que nele se aventuram nas intermináveis, burocráticas e pouco transparentes listas do Cadastro Nacional de Adoção a uma longa e penosa - e quase sempre frustrante - espera por uma criança disponível (destituída de poder familiar).
Para Souza (2009), uma alternativa interessante que poderia diminuir a incidência do aborto clandestino é a adoção direta, que é aquela “decorrente de ato no qual a(os) genitora(es), por não desejar(em) ou não possui(rem) condições financeiras e/ou emocionais de cuidar do seu filho, opta(m) por doá-lo a um terceiro, que passa a exercer a guarda de fato da criança” (SOUZA, 2012, p. 184) e posteriormente requer a sua adoção. Em regra, esta adoção ocorre quando uma mulher que irá dar à luz revela a pessoas conhecidas que não tem condições de criar e educar o filho, e que pretende dá-lo a quem tiver mais condições.
O autor ainda analisa que em se tratando de valores em conflito, o princípio constitucional deve prevalecer, tendo em vista que o futuro de uma criança não pode ser prejudicado em razão da forma pela qual aqueles que exercem a sua guarda de fato a obtiveram. Incumbe aos Conselhos Tutelares fiscalizar e impedir que menores permaneçam em situação irregular. Se os estudos sociais e psicológicos são favoráveis; se os guardiões de fato oferecem toda a estrutura necessária para o bom desenvolvimento psíquico-social do infante; se há vínculo afetivo entre eles “que acarrete sofrimento emocional ao menor no caso de separação, se justifica a consolidação da adoção dirigida, ignorando-se, nestes casos, excepcionalmente, o cadastro de adotantes previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.'' (SOUZA, 2009, p. 184)
Um bom exemplo desta prática, inteligente e de grande sensibilidade, encontra-se no Canadá, onde a lei a permite. Os pais biológicos conhecem e decidem sobre a escolha dos candidatos. A eles deve ser oferecido, obrigatoriamente, aconselhamento jurídico e psicológico, ao mesmo tempo em que são obrigados a apresentar histórico médico. Depois de assinado o consentimento para adoção, a família tem ainda um período para repensar, podendo mudar de ideia. Esse tempo, em geral, é de 30 dias. (SENADO NOTÍCIAS, 2014)
CONCLUSÃO
A partir do histórico de razões pelas quais se permitiu ou se proibiu o aborto, através do tempo, nas sociedades ocidentais, é correto afirmar que um direito que se pretende democrático não pode "criminalizar" um desejo legítimo de não ter filhos indesejáveis, até porque a simples proibição não possui a efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de 9 milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.
É fato que ninguém em sã consciência acredita que a melhor forma de evitar que nossos filhos, maiores e cursando uma universidade, gazeteiem as aulas seja através de castigos que impliquem no cerceamento de suas liberdades, posto que tal procedimento seria - a exemplo da criminalização da prática do aborto - igualmente ineficaz. O que fazemos, com grande sucesso, é orientá-los e educá-los, o que igualmente pode ser feito com grande efetividade no caso do aborto.
A criminalização do aborto representa ainda um tentáculo simbólico da ideologia patriarcal e não tem sido eficaz nem útil para a proteção da vida intra-uterina. Além do elevado custo social, a penalização impede a implantação e efetivação de medidas realmente eficazes para o enfrentamento do problema e acarreta às mulheres terríveis seqüelas e morte.
Este tema tem de ser debatido de modo que o poder público ouça a sociedade civil, analise e aplique a solução após a coleta de dados e pesquisas de campo, usando de máximo bom senso e estudo técnico na confecção da solução do problema. É necessário ultrapassar a dicotomia entre afronta ao direito à vida e o direito da mulher sobre o seu próprio corpo. Este dueto antagônico se perpetua por vários campos de estudo do comportamento humano, sejam antropológicos, sociológicos, religiosos ou jurídicos.
Necessário se faz o ajuste no que tange a falta de informação e acesso a programas de planejamento familiar em nosso país. Mesmo com significativa melhora em nosso sistema de saúde pública, há lugares que o acesso gratuito a programas de planejamento familiar ainda encontra-se restrito. O planejamento compreende dentre outros meios, o acesso a informações e métodos contraceptivos.
Diante da gama de possibilidades, fica claro que a educação, acesso a informação e estudos sobre o tema, são as melhores ferramentas para a construção de qualquer entendimento que leve ao melhor resultado, principalmente para um assunto tão complexo e polêmico como a descriminalização do aborto.
Assim, o Brasil, como verdadeiro aspirante a Estado Democrático de Direito, à luz dos princípios emanados da Carta Magna, e que tem nesta, a defesa dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres, princípios estes consubstanciados por importantes tratados internacionais de direitos humanos adotados por nosso país tem a obrigação jurídica e ética de descriminalizar o aborto, tornando-se verdadeiramente uma democracia em sua plenitude material e efetiva e deixando de ser apenas uma democracia formal.
Por fim, uma política pública que tenha como escopo a prevenção, resultando em meios eficazes para redução da incidência do aborto, poderá trazer melhores resultados do que uma legislação que vise a diminuir a realização de abortamentos punitivamente, visto que a simples proibição não conduz a diminuição desta prática, como fica sobejamente demonstrado pelos mais diversos estudos e estatísticas.
REFERÊNCIAS:
CASTRO, C. O.; TINOCO, D.; ARAUJO,Vera. “Tabu nas campanhas, aborto é feito por 850 mil a cada ano”. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, de 19 de set. de 2014.
DE SOUZA, Rodrigo Faria. “Adoção: vantagens e desvantagens”. Revista da EMERJ, v. 12, nº 45, 2009, pp. 184-194
DISCUSSÃO: ADOÇÃO NO CANADÁ. Senado Notícias. Disponível em < http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/regras-de-adocao-ao-redor-do-mundo/adocao-no-canada.aspx> Acesso em 10 de dez. de 2014.
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde Coletiva, vol.15 supl.1, june de 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232010000700002&script=sci_arttext>. Acesso: 23 de set de 2014.
DOMINGOS, Selisvane; MERIGHI, Miriam. “O aborto como causa de mortalidade materna: um pensar para o cuidado de enfermagem” Rio de Janeiro. Escola Anna Nery. Vol.14, no.1 . Jan./Mar. 2010.
GALEOTTI, Giulia: História do aborto. Coimbra: Edições 70, 2007.
GUTIERREZ, Estrella. Moeda de pacto e de poder. Caracas: IPS, 2010. Disponível em <http://www.ipsnoticias.net/portuguese/2010/03/america-latina/america-latina-aborto-moeda-de-pacto-e-poder/> Acesso em 13 de jan. de 2015
JACOBSEN, Eneida. A História do aborto: São Leopoldo, RS. Protestantismo em Revista, vol.18, jan-abril 2009
PEDREBON, L. Aborto no Brasil: a negligência que vitimiza. Universidade Federal do Oeste do Paraná. Trabalho de Conclusão de Curso, 2007.
SANTOS, Vanessa Cruz; ANJOS, Karla Ferraz dos; SOUZA, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. “Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde pública”. Brasília. Revista de Bioética vol. 21, no. 3 Set/dez de 2013.
TEIXEIRA, Fabio. “Cremerj: Só 12 casos de aborto em 4 anos”. Rio de Janeiro: Jornal O globo, de 23 de set. de 2014.
TORRES, José Henrique Rodrigues. “Aborto e legislação comparada”. São Paulo: Revista Ciência e Cultura, v. 64, nº 2 abril/junho, 2012.
Notas
[1] É importante ressaltar que a ''vida embrionária'' não se confunde com a ''vida fetal''. A primeira ocorre nos três primeiros meses de gestação, ao passo que a segunda, a partir do quarto mês. A grande maioria dos países que admitem a prática do aborto limitam a mesma ao denominado aborto embrionário (celular), conservando, entretanto, a condenação do chamado aborto fetal.
[2] O argumento basilar segundo o qual a vida inicia-se na concepção fundamenta-se, sobretudo, na crença de que a alma do indivíduo é adquirida nesse momento, sendo, portanto, irrelevante que nos primeiros dias após a concepção esta suposta vida somente tenha sentido científico no nível celular.