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A progressividade tributária e o princípio da capacidade contributiva no Brasil

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Agenda 20/10/2018 às 12:10

A culpa é dos impostos progressivos ou dos proporcionais? Refletimos sobre os principais aspectos relacionados com a capacidade contributiva e a progressividade tributária, e a relação que há entre ambas.

INTRODUÇÃO

A carga tributária nacional é uma das mais elevadas, o que faz com que a desigualdade social recrudesça a cada dia. A Constituição Federal de 1988 buscou reduzir o peso do fisco sobre o contribuinte dando margem para que os impostos pessoais fossem progressivos. Em um primeiro momento, apenas o Imposto Territorial Rural e o Imposto de Renda enquadravam-se nesse sistema progressivo.

A doutrina e a jurisprudência, entretanto, discutiam a possibilidade de outros tipos de tributos terem capacidade contributiva e a consequente progressividade. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o IPTU, o qual, por não ter Lei Complementar que lhe discipline as normas gerais, permitiu que o legislador dos Estados Membros legislasse tanto sobre as normas específicas como as gerais. Isso levou muitos estados-membros a instituírem a progressividade do IPTU.

Essas leis estaduais quase sempre iam parar no Supremo Tribunal Federal, pois alegavam-lhes inconstitucionalidade com argumento de que feriam o art. 145, § 1º da Constituição Federal. O Supremo considerava-as inconstitucionais, alegando que o IPTU não é imposto pessoal, mas sim, real, portanto, não pode ter alíquotas diferenciadas de acordo com a capacidade contributiva de cada cidadão. No máximo, suas alíquotas poderiam ser diferenciadas para garantir a função social da propriedade, como já previa a Constituição.

Os municípios percebiam no IPTU progressivo uma excelente fonte de arrecadação, haja vista o crescimento econômico e populacional. Os imóveis urbanos estavam cada vez mais bem estruturados, o que deixava transparecer uma boa capacidade econômica. Para os legisladores municipais, era injusto que um casebre da periferia pagasse o mesmo IPTU que uma casa grande e confortável. Por isso, pressionavam o congresso para que alterassem a Constituição, instituindo a progressividade do referido imposto.

A batalha ideológica entre os municípios e o STF foi aparentemente apaziguada com a Emenda Constitucional nº 29/2000, a qual assegurou dois tipos de progressividade: a seletiva, para garantir a função social da propriedade e progressividade fiscal, baseada no valor variável das alíquotas em função da capacidade contributiva.

Em pouco tempo, houve ações judiciais afirmando a inconstitucionalidade da supracitada Emenda. Para resolver o conflito jurisprudencial, o STF, na súmula 589, assegurou-lhe a constitucionalidade. No entanto, por uma falha lógica no texto da súmula, abriu-se margem para uma outra discussão, além da própria inconstitucionalidade do IPTU progressivo: a inconstitucionalidade de leis estaduais que versavam sobre a progressividade fiscal do IPTU e que haviam entrado vigor antes da Emenda supracitada. Realmente, o texto permite essa ambiguidade: leis sobre a progressividade antes da EC 29/2000 serem interpretadas como inconstitucionais e as mesmas leis se entrassem em vigor depois da Emenda não mais seriam inconstitucionais.

O fato é que a pendenga continua. O argumento pró-Emenda afirma que ela assegura a justiça social, pois quem tem mais, deve pagar mais; o argumento contrário a ela diz que essa justiça social é só aparente, pois a tendência é cada vez mais tornarem todos os tributos progressivos de acordo com a capacidade contributiva dos indivíduos, o que levaria a tributar mais e mais justamente aqueles que mais produzem e fazem a riqueza nacional aumentar. Segundo os teóricos dessa corrente, a progressividade faria, a longo prazo, a economia nacional declinar, pois os muitos ricos migrariam para investir em outros países.

O autor desta monografia, durante um curso extensão em Direito Tributário, teve contato com o livro “Uma Teoria da Justiça”, do pensador norte-americano John Rawls, e percebeu que as ideias contidas no citado livro coadunavam com a problemática da progressividade tributária brasileira. Como trabalho de conclusão do curso, o professor Breno de Paula, titular da cadeira, pediu para a turma que escrevessem um artigo relacionando a noção de progressividade com as ideias de Rawls.

Foi justamente desse artigo que surgiu uma primeira problemática: Pode uma sociedade capitalista chegar a ter justiça social tributária? Era essa pergunta que atormentava Rawls durante a década de 70, marcada por conflitos sociais oriundos da Guerra Fria.

Com o tempo, essa pergunta evoluiu para a seguinte: numa sociedade capitalista como a brasileira, marcada por enormes desigualdades sociais, pode a técnica da progressividade tributária, sendo estendida para todos os tributos, ser, de fato, um fator de equilíbrio e justiça social?

E é justamente essa pergunta a central desta monografia. A tese defendida pelo autor é que se houvesse uma extensão maciça da progressividade fiscal para todos os tributos, mesmo assim a desigualdade social continuaria a existir, pois o problema não está na quantidade de impostos arrecadados, mas no próprio sistema tributário nacional, descendente direto dos sistemas tributários coloniais, onde a arrecadação era quase predatória, deixando o país em constante dependência da Metrópole.

Por ser uma temática que está em debate constante, percebe-se a importância de se tentar ao máximo compreender as nuances que estão por detrás da questão da progressividade tributária, para não incorrer nos mesmos erros grosseiros apregoados pela mídia nacional. Erros como os de confundir imposto com taxa, por exemplo.

Para comprovar a tese acima levantada, o eixo metodológico para chegar a um resultado convincente foi a análise comparativa entre as consequências, positivas ou negativas, da progressividade em alguns países da América e da Europa em relação ao sistema progressivo vigente no Brasil.

Para tanto, dividiu-se este trabalho em sete capítulos dispostos da seguinte forma:

No primeiro capítulo, buscou-se uma breve contextualização histórica, não do tema progressividade em si mesmo, mas do conceito de tributo, como surgiu, sua etimologia, como era tratado na Antiguidade Clássica, como se relacionou na Idade Média, haja vista a condenação da Igreja contra a usura e a busca de riquezas materiais. Além disso, analisou-se a relação entre os principais tipos de Estados nacionais e a intervenção tributária praticada por eles na economia.

No segundo capítulo resolveu-se abordar como a Constituição e o Código Tributário Nacional tratam as espécies tributarias. Buscou-se aqui definir as diferenças entre imposto, taxa, contribuição de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais, abordando as possíveis imunidades e isenções tributárias. A intenção deste capítulo é criar o cabedal necessário de informação para que o leitor possa compreender o debate que se travará nos capítulos seguintes sobre se se deve estender a capacidade contributiva para todo tributo ou limitá-la apenas aos permitidos constitucionalmente.

No terceiro capítulo, ainda há a função propedêutica, pois há uma análise mais detalhada da estrutura jurídica de cada uma das espécies tributárias previstas na Constituição. Aqui o intuito é revelar como o Estado se utiliza dos tributos que têm cunho fiscal, extrafiscal e parafiscal para conseguir organizar a administração pública e abastecer os cofres do Tesouro.

Já o quarto capítulo começa a tratar sobre a temática específica deste trabalho: aborda-se neste ponto o que seja de fato capacidade contributiva, gradação tributária, progressividade, seletividade, regressividade; e o que a doutrina e a jurisprudência dizem sobre tais conceitos.

O quinto capítulo trata de um estudo de caso, pois analisa-se a capacidade contributiva e a progressividade em dois tipos tributários, o IPTU e o IPVA.

No sexto capítulo o autor deste trabalho se posiciona para defender sua tese. Os argumentos encontrados para defendê-la estão baseados na jurisprudência e na doutrina, como também encontram suporte no pensamento de John Rawls e de sociólogos como Raymundo Faoro e Gilberto Freyre.

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1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA TRIBUTAÇÃO

Este capítulo tem com escopo abordar noções históricas básicas sobre a evolução do conceito de tributo, tocando nos pontos principais tais como o surgimento, as formas principais de tributação e a relação entre os que instituíam, cobravam e recolhiam os impostos.

1.1 O tributo na Antiguidade

A noção histórica de tributo vincula-se à de Estado, seja o absolutista, compreendido como Hobbes o definia, seja liberal, como o queria Rousseau. Em realidade, ambos os autores concordam que os indivíduos cedem um pouco de sua liberdade e autonomia para a criação e fortalecimento de um ente abstrato que se concretizará por meio de instituições que, por sua vez, ajudarão a proteger e garantir o mínimo necessário para a sobrevivência da coletividade.

Para tanto, é necessário que haja colaboração desses mesmos indivíduos em termos econômicos para que tal ente possa atuar na construção de estradas, pagamentos de servidores, criação de escolas e universidades, hospitais etc. Dessa forma, cria-se um fundo comum, o Tesouro Público, que deve suprir as carências individuais e coletivas, sempre que for possível.

Desta forma, não é apenas a noção de liberdade que os indivíduos cedem para a criação do Estado, é necessário também financiá-lo constantemente. Esse fundo comum, muitas vezes, é conseguido de forma justa e igualitária, ou seja, as pessoas contribuem de acordo com as suas posses, é assim, por exemplo, em países como a Finlândia; outras vezes, a contribuição é pela força ou dominação.

Neste último caso, apresentam-se com exemplo as sociedades que foram dominadas por meio das armas e que se viram obrigadas a recolher altos tributos para não serem extintas. As nações invadidas pelo Império Romano, por exemplo, encontravam-se nessa situação. Há também o caso de apropriação indevida, aqui não é culpa do Estado em si mesmo, mas de alguns governantes que, geralmente, se apoderam da coisa pública, olvidando-se do bem-estar geral. Neste último caso, enquadram-se quase todos os países da América Latina.  O fato, porém, é que há a necessidade de que para o Estado atue, os tributos sejam recolhidos. Cada época trata essa relação de forma distinta, como se verá.

A noção de tributo, na Antiguidade, caracteriza-se quase sempre por uma relação opressora entre dominador e dominado. Etimologicamente, o vocábulo tributo provém do Latim tributum, que significava basicamente “distribuir entre as tribos”. Quando os primeiros povos romanos chegaram à região do Lácio, dominaram os moradores antigos, e os obrigaram a trabalhos forçados ou pagamentos de valores para a coroa romana.

 Os romanos originais estavam divididos em três tribos, os Tities, os Ramnes e os Luceres. O que era arrecadado distribuía-se em partes iguais entre essas tribos. Por conseguinte, aos que pertenciam à mesma etnia dos romanos era-lhes assegurado o direito à igualdade na distribuição das benesses estatais, sendo que o pagamento dos tributos ficava a cargo dos povos dominados.

Para os romanos, o tributo era uma forma de indenização das guerras e quem deveria indenizar eram justamente os povos derrotados no campo de batalha. Essa prática não era exclusiva dos romanos, era comum a quase todos os povos desde a pré-história e revela os conflitos políticos e econômicos de cada período. Por isso, como assinala Diep, a obrigação de tributar:

fue producto de la dominación, es decir, de la imposición del dominador sobre el dominado, así afuera en su carácter de gobernante, conquistador o simple opresor, siempre que se valiese de la fuerza en cualquiera de sus múltiples formas convencionales y históricas, incluyendo la magia y el dominio de la mujer sobre el hombre o de éste sobre aquélla, del mayor sobre el menor, etc. (DIEP, 2003, p. 65).

Portanto, o conceito de tributo era entendido como uma dominação absoluta do dominador sobre o dominado. Assim, aquele tinha a propriedade de tudo que pertencia a este, inclusive o corpo. A vida do escravo pertencia legalmente ao seu proprietário, podendo este usá-la da melhor maneira que lhe aprouvesse.

Assim, durante quase toda a Antiguidade, os impostos foram a forma legal de manutenção das três classes sociais oriundas dos dominadores, citadas alhures. Com o passar do tempo e a miscigenação cultural, vencidos e vencedores se amalgamaram de tal forma que ficava difícil dizer de qual grupo étnico eram oriundos. Foi justamente essas brigas que levaram a revoltas populares e guerras civis em Roma, e o objetivo era sempre o mesmo: diminuição dos impostos.

Essa realidade entre os romanos só foi melhorar com a transição da monarquia para o regime republicano.

A questão tributária para outro grande povo da Antiguidade, os atenienses, não diferia muito da prática romana. A noção de tributo era voltada para o bem estar da coletividade dos cidadãos, no entanto a cidadania era um atributo pertencente a um grupo muito restrito, ficando de fora deste, por exemplo, os estrangeiros, os escravos, as mulheres e os pobres.

Neste mesmo período, no Oriente Médio e no Egito, o sistema tributário estava vinculado diretamente a questões religiosas, pois os governantes, quase todos, se autoconsideravam descendentes diretos de seus deuses, portanto acreditavam que o pagamento de tributo lhes era devido por respeito a autoridade divina que sustentam possuir.

 Dessa forma, os indivíduos, escravos ou súditos, tinham que trabalhar duro para, de tudo o que produziu, fosse a esmagadora maioria para os seus senhores. A exploração era quase a mesma, mas agora havia um nome claro para essa “arrecadação”: imposto. Pelo próprio nome já se pode ter uma ideia, pois era algo imposto de forma compulsória, obrigatória, não dando margem para que se pudesse contestá-lo.

1.2. O tributo na Idade Média

Durante quase toda a Idade Média, havia a noção de servidão nas relações trabalhistas: o tributo era cobrado de forma consentida pelo trabalhador que iria habitar as terras do senhor feudal. O tributo era aceito como uma espécie de permissão divina concedida ao senhor feudal.

Durante o Feudalismo, os camponeses (comumente chamados de servos) viviam, plantavam e recolhiam impostos em terras que não lhes pertenciam, mas sim aos senhores feudais, grandes latifundiários que tinham títulos de nobreza cedidos pela monarquia com o aval da Igreja. Os servos se viam na iminência constante de pagar tributos, seja na forma de trabalho, seja através de dinheiro ou mercadorias. A produção quase que em sua totalidade era destinada aos cofres dos proprietários das terras, restando ao camponês apenas o mínimo sobrevivência sua e de seus familiares.

Os tipos de tributos eram variados[1], mas os principais eram a talha, a corveia, o pedágio e as banalidades. A talha constituía-se em uma obrigação do camponês que deveria repassar metade do que era produzido por ele ao suserano. Se colhesse 100 quilos de trigo, 50 eram para o dono das terras. A corveia não era a tributação sobre a terra, mas sim sobre serviços prestados nas terras do senhorio. O servo era obrigado a trabalhar na construção de castelos e muros, cuidar dos moinhos, do gado, etc. O pedágio era recolhido quando servo precisava passar pelas terras exclusivas do senhor feudal, sendo isento somente quando o camponês ia lá a serviço do suserano. Por fim, as banalidades, que consistiam no pagamento de ferramentas e objetos inseridos dentro do castelo. Se o servo necessitasse de qualquer ferramenta que pertencesse ao suserano, devia pagar pelo uso dela.

Havia outros tipos, cada vez mais exóticos, como o tributo sobre a “mão-morta”, que consistia em uma taxa paga ao latifundiário quando da morte do pai da família campesina. O pai era o titular da posse, se ele morresse os herdeiros deveriam pagar para continuar a viver na mesma residência.

Além do pagamento ao senhor feudal, os servos se viam obrigados a pagar também à Igreja. Um dos impostos cobrados por esta era o “Tostão de Pedro”, equivalente a 10% da produção, que o servo contribuía na sua paróquia.

Essa situação começou a mudar, ao menos no mundo anglo-saxônico, a partir de 1215, com a publicação da Magna Carta[2], pois com esta passou-se a se preocupar com regras mais claras sobre a criação e o recolhimento dos tributos. Este momento foi um marco para o Ocidente, pois o surgimento de um tributo distanciava-se do arbítrio do monarca para se aproximar de leis que, de fato, representassem os anseios coletivos. Com a referida Carta, lançaram-se as bases para o moderno sistema democrático, principalmente em se tratando de tributação. Sobre isso, é claro o seguinte trecho do citado documento:

Nenhuma “ajuda” ou “tributo de isenção militar” será estabelecida em nosso reino sem o consentimento geral[...];

Para obter o consentimento geral acerca do levantamento de uma “ajuda” [...], faremos com que sejam intimados, individualmente e por carta, os arcebispos, bispos, abades, condes e os altos barões do reino; por outro lado, faremos com que sejam intimados coletivamente, por meio de nossos sheriffs e meirinhos, todos aqueles que possuem terras diretamente da Coroa, para se reunirem num dia fixado (do qual deverão ser notificados com antecedência mínima de quarenta dias) e num lugar determinado. Em todas as cartas de intimação indicaremos a causa da mesma. Quando a intimação tiver sido feita, proceder-se-á à reunião no dia marcado, decidindo se a matéria estabelecida para a mesma de acordo com a resolução de quantos estiverem presentes, embora não tenham comparecido todos os que foram intimados(Fonte:   http://georgelins.com/2009/08/09/a-magna-charta-de-joao-sem-terra-1215-a-peticao-de-direitos-1628-e-o devido-processo-legal/).

Pode-se perceber neste trecho a questão do princípio da legalidade, a partir daí o rei não poderia mais instituir impostos sem a devida justificativa do porquê da instituição dele. A Magna Carta de 1215 também aborda o princípio da proporcionalidade tributária evitando assim o confisco:

20 – Um homem livre não poderá ser multado por um pequeno delito a não ser em proporção ao grau do mesmo; e por um delito grave será multado de acordo com a gravidade do mesmo, mas jamais tão pesadamente que possa privá-lo de seus meios de vida. Do mesmo modo, tratando-se de um mercador, deverá ter este resguardada a sua mercadoria; e de um agricultor, deverá ter este resguardado o equipamento de sua granja – se estes se encontrarem sob a mercê de uma corte real. Nenhuma das multas referidas será imposta a não ser mediante o juízo de homens reputados da vizinhança.

(Fonte:   http://georgelins.com/2009/08/09/a-magna-charta-de-joao-sem-terra-1215-a-peticao-de-direitos-1628-e-o devido-processo-legal/).

Em suma, estão já presentes neste trecho os princípios da legalidade, da anterioridade, do não confisco etc. A Constituição Federal de 1988 e o CTN, de certa forma, recepcionam quase todas as leis sobre tributação contidas na Magna Carta.

1.3. O tributo na Idade Contemporânea

Durante o século XVIII, até meados do XIX, prevaleceu, no campo das finanças públicas, o princípio do não intervencionismo estatal na economia ocidental, pois se acreditava que as leis econômicas eram imutáveis tais como as físicas, desta forma os desajustes econômicos autorregular-se-iam por si sós.

O Estado Liberal teve, nesse momento, suas raízes em dois pontos cruciais. O primeiro foi o conceito de individualismo proveniente do racionalismo filosófico oriundo da Revolução Francesa, o qual punha como obrigações do Estado a proteção de certos direitos individuais em vista dos abusos das autoridades estatais. O segundo ponto crucial foi, de acordo com Rosa Junior (1983), o liberalismo dos fisiocratas ingleses, principalmente Adam Smith, para quem o jogo das relações econômicas não podia ser interferido pelo interesse da coletividade, pois esta não teria a propriedade de intervir na ordem econômica.

De uma forma ou de outra, divulgava-se que o indivíduo e o Mercado eram o cerne de tudo e que o livre comércio era a única fonte de riquezas, não se admitindo a intervenção do Estado, dando, por conseguinte, à tributação um caráter de neutralidade, ou seja, naquele momento não se via “na tributação um meio de modificar a estrutura social e a conjuntura econômica, daí a expressão finanças neutras” (ROSA JUNIOR, 1983, p. 15).

Não havia impostos com a função primordialmente regulatória, como há hoje; a função precípua deles era tão somente abastecer os cofres públicos para as necessidades vitais do Estado.

Assim, este se limitava às funções essenciais, relativas à justiça, política, diplomacia, segurança, guerras etc.; cujas atribuições não podiam ser repassadas à iniciativa privada. Aos particulares cabia abastecer os cofres públicos, entretanto a tributação era igual para todos, pois prevalecia o positivismo jurídico, e este impunha a lei sem levar em consideração as diferenças econômicas e culturais dos indivíduos.

 Fazia-se isso por se acreditar que todos deveriam ter as mesmas chances e, portanto, pagar os mesmos tributos. Mas essa suposta igualdade era avassaladora para os menos favorecidos economicamente, pois eles não suportavam a mesma carga tributária dada aos mais ricos.

O câmbio de mentalidades adveio com as pressões impostas pelos socialismos utópico e científico. Muitos teóricos dos séculos XVIII e XIX perceberam que o caos social pelo qual passavam as grandes cidades europeias era provocado pelas primeira e segunda revoluções industriais. Estas criaram riquezas gigantescas, porém suas distribuições não foram equânimes. O sistema jurídico, por sua vez, impunha regras objetivas e iguais para todos os indivíduos de uma mesa sociedade, não levando em consideração o contexto político e social de cada um.

Não havia neste momento o conceito de “minorias políticas”, deste modo a pena para quem roubava era a mesma, não importando se o objeto do roubo era um pão ou um milhão em moedas de ouro. Essa realidade foi criticada não só pelos filósofos e economistas.

O socialismo científico está baseado em uma visão sistemática e metodológica trazida por Karl Marx e Friedrich Engels acerca da exploração econômica por meio da mais-valia e da criação de um sistema ideológico e jurídico que a justificasse como legal. Dos livros que apontam tal exploração de forma contundente está o romance “Germinal”, de Émile Zola, nesse romance há uma exposição clara não só das mazelas sociais, nas também da classe social responsável por elas. Zola demonstrou que a produção industrial e a tributação, então vigentes, não eram fonte de riqueza para todos.

Assim, o liberalismo econômico começou a ser pressionado pelas constantes crises sociais pelas quais passava o mundo europeu. Devido a tais pressões, a partir do final do século XIX, muitos Estados ocidentais começaram a ceder gradativamente, alargando um pouco as suas funções e passaram a intervir diretamente nas funções econômicas.

1.3.1. O Estado e a intervenção na economia

As intervenções estatais citadas no parágrafo anterior já representam uma tentativa de equalizar as relações sociais. E devem ser entendidas como uma das funções estatais que tem como meta evitar que a esfera privada interfira de forma abusiva na economia. A economia de livre mercado foi uma das grandes vitórias ideológicas dos séculos XVIII e XIX, aparecendo em quase todas as constituições democráticas posteriores. Na Constituição Federal brasileira ela está resguardada no art. 170:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - [...]

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Uma das batalhas intermináveis entre os doutrinadores é saber quando e como o Estado deve intervir. A regra, ao menos numa sociedade democrática, é que ele intervenha quando há situações que ponham em perigo a ordem nacional ou que tenham cabal importância para a coletividade, é o que dispõe o art. 173 da CF/88:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Mas há outras concepções, as quais impõem uma intervenção maior do Estado na economia. E elas tiveram seu apogeu a partir do século XX, pois com o advento da Primeira Grande Guerra, da Revolução Russa, da Quebra da Bolsa de Valores de Nova York e, por fim, com a Segunda Grande Guerra. Com tais eventos, houve além da militarização e da centralização política, tentativas de superar as graves crises econômicas pelas quais passavam as nações.

Uma delas foi o redirecionamento do intervencionismo estatal, o qual ganhou ares tais de políticas assistencialistas. O Estado de Bem-Estar social, como ficou conhecido um segmento dessas políticas assistencialistas, tem suas origens na Alemanha de finais do século XIX, durante a administração do  chanceler Bismarck. Tal Estado possui quatro pilares:

La educación, obligatoria y gratuita en las primeras etapas, y fuertemente subvencionada en los niveles superiores.  (…) La sanidad, en un principio universal y gratuita. La seguridad social(…).Los servicios sociales, conjunto de ayudas destinadas a cubrir necesidades de ciertos colectivos menos favorecidos, en este punto destaca la atención a dependientes (CRESPO, 2006, p. 06). 

O Estado de Bem-Estar social tributava com o objetivo geral de criar uma espécie de fundo coletivo em determinadas áreas sociais com o objetivo claro de revestir o dinheiro arrecadado em ajuda social. Para tanto, os indivíduos tinham que pagar determinadas cotas, sendo que os demais que não contribuíssem estariam fora desse sistema de proteção.

Apesar de não abarcar todos os indivíduos de uma nação, pelo menos já atribuía ao Estado sua função de intervir diretamente no sentido de prestar ajuda humanitária aos cidadãos. Durante a primeira metade do século XX, os Estados nacionais ocidentais vão aderir a essa concepção, tanto os de origem liberal como os de origem comunista. Assim, surgiram Estados poderosos, que tentavam de forma arrojada acalentar as crises financeiras.

Em suma, pode-se dizer que desde o período clássico da economia burguesa houve tão-somente duas grandes teorias sobre as finanças públicas:

a da prevalência da escola liberal, [na qual] o Estado procurava comprimir as despesas aos seus menores limites, e era encarado apenas como consumidor. Tal política se devia à absoluta supremacia da iniciativa privada e à teoria da imutabilidade das leis financeiras. As despesas visavam, assim, apenas cobrir os gastos essenciais do governo. (ROSA JR, 1983, p. 25).

E outra, de cunho social, na qual:

o Estado funciona como um órgão de redistribuição da riqueza, concorrendo com a iniciativa privada. O Estado passa a realizar despesas, que, embora não sejam úteis sob o ponto de vista econômico, são úteis sob o ponto de vista da coletividade (Idem).

Essas duas teorias, a não intervencionista e a intervencionista, foram motivos de embates teóricos durante o século XX, tendo como pano de fundo os conflitos ideológicos oriundos da Guerra Fria. Todavia tanto países capitalistas como comunistas concordavam que a arrecadação tributária devia voltar-se para uma tentativa de equilíbrio social.  A Guerra Fria, por conseguinte, propunha duas formas distintas de se conceber a realidade, seja social ou fiscal: uma pela perspectiva capitalista e outra, pela socialista, ambas, porém, tendo pontos de contato.

Sobre o autor
Elton Emanuel Brito Cavalcante

Doutorando em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente - UNIR; Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia (2013); Licenciatura Plena e Bacharelado em Letras/Português pela Universidade Federal de Rondônia (2001); Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (2015); Especialização em Filologia Espanhola pela Universidade Federal de Rondônia; Especialização em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela UNIRON; Especialização em Direito - EMERON. Ex-professor da rede estadual de Rondônia; ex-professor do IFRO. Advogado licenciado (OAB: 8196/RO). Atualmente é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Elton Emanuel Brito. A progressividade tributária e o princípio da capacidade contributiva no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5589, 20 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65380. Acesso em: 21 nov. 2024.

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