3. O direito fundamental à tutela executiva
O processo constitui “ferramenta jurídica indispensável para realização da justiça” e, portanto, essencial para concretização dos direitos fundamentais proclamados na Constituição. Assim, o processo deve ser dotado de técnicas capazes de atender estas garantias.
O processo do Estado Democrático de Direito contemporâneo “não se resume a regular o acesso à justiça, em sentido formal. Sua missão, na ordem dos direitos fundamentais, é propiciar a todos uma tutela procedimental e substancial justa, adequada e efetiva. Daí falar-se, modernamente, em garantia de um processo justo de preferência à garantia de um devido processo legal”.
Em outros dizeres, as técnicas processuais devem estar ajustadas às necessidades de tutelar os direitos, especialmente os direitos fundamentais, que traduzem as concepções filosóficas-jurídicas aceitas por uma determinada sociedade em certo momento histórico, sendo, ao mesmo tempo, valores fins da sociedade e direitos de seus indivíduos.
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais se manifesta em planos diferentes, inclusive orientando a concretização dos direitos fundamentais aos órgãos jurisdicionais. Em que pese a importância da dimensão objetiva, a perspectiva subjetiva também é relevante, pois é nesta função que os direitos fundamentais garantem posições jurídicas individuais a seus titulares.
O princípio da acessibilidade à Justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), comporta significado amplo, de forma a abranger não só o direito à jurisdição, mas sim que esta tenha instrumentos para efetivar os direitos declarados pelo juiz ou já reconhecidos no título extrajudicial.
O direito fundamental à tutela executiva consiste na existência de meios executivos adequados e capazes de satisfazer o direito previsto no título executivo (judicial ou extrajudicial).
Assim, com o objetivo de realizar os preceitos fundamentais do credor na execução, o intérprete deve buscar no ordenamento jurídico vigente normas que tutelam a garantia desse direito consagrado no título executivo.
Concretamente, segundo Marcelo Lima Guerra , o direito fundamental à tutela executiva atribui ao juiz as seguintes funções:
a) O juiz tem o poder-dever de interpretar as normas relativas aos meios executivos de forma a extrair delas um significado que assegure a maior proteção e efetividade ao direito fundamental à tutela executiva;
b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar normas que imponham uma restrição a um meio executivo, sempre que tal restrição – a qual melhor caracteriza-se, insista-se, uma restrição ao direito fundamental à tutela executiva – não for justificável pela proteção devida a outro direito fundamental, que venha a prevalecer, no caso concreto, sobre o direito fundamental à tutela executiva;
c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva, mesmo que não previstos em lei, e ainda que expressamente vedados em lei, desde que observados os limites impostos por eventuais direitos fundamentais colidentes àquele relativo aos meios executivos.
Uma vez compreendido o direito fundamental à tutela executiva, tem-se que o mesmo será transgredido, violado, quando não houver técnicas processuais capazes de alcançar ao credor a satisfação integral do direito reconhecido no título.Importante destacar que a falta de efetividade da execução, não afeta exclusivamente o exequente, pois o problema decorrente do inadimplemento tem desdobramentos econômicos , vez que, também, poderá engessar a atividade produtiva, comprometer o comércio, encarecer financiamentos e atingir a sociedade civil.
A garantia de acesso a uma prestação jurisdicional efetiva está diretamente vinculada ao exercício da cidadania e foi alçada a direito fundamental, por força dos comandos do art. 5º, XXXV, LIV e LXXVIII, da CF/88. Contudo, não basta garantir acesso aos tribunais para obtenção da declaração do direito material, pois de nada adianta uma decisão inoperante, sem efetividade que, via de regra, é alcançada apenas no processo de execução.
A ideia de justiça está indelevelmente ligada à busca de equilíbrio. Tornou-se frequente na jurisdição a necessidade de se ter de escolher entre normas conflitantes, sendo necessário ponderá-las, “a fim de saber qual delas, abstratamente da mesma categorias, possui maior peso no caso concreto” . O resultado dessa operação conduz ao acolhimento de um dos enunciados e afastamento dos demais.
Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade tem fundamental importância, pois funciona como parâmetro técnico à conduta do legislador ou à interpretação do juiz quando estiverem em causa limitações aos direitos fundamentais, já que é através dele que se verifica se os fatores de restrição levados em consideração são adequados à realização dos direitos em colisão.
Logo, a medida ora tratada – possibilidade de inclusão do nome da parte devedora em cadastro de proteção ao crédito – vem ao encontro da tão almejada efetividade processual e do princípio da satisfação do credor, de modo que, verificado pelo magistrado que as demais medidas não alcançaram o êxito almejado, não coagindo o devedor ao cumprimento da obrigação, a inscrição não apenas pode (conforme previsão do art. 782, § 3° do NCPC) como deve deferir a medida. Afinal, sopesando os direito fundamentais postos em jogo – de um lado o direito fundamental do credor à tutela executiva e de outro os direitos de personalidade do devedor (porque é evidente que tal medida não recai sobre o seu patrimônio, mas sim, ainda que de modo reflexo, em sua própria pessoa, e ao ter o nome “sujo” afeta-se a integridade moral que é, indubitavelmente, um direito de personalidade, associado à pessoa e não ao patrimônio, conforme doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ) – aquele deve prevalecer.
Afinal, como bem lembra Clemerson Merlin Cleve
a função do judiciário, em princípio, é a de dirimir conflitos de interesse. Mas a função do Judiciário também é a de distribuir justiça (...). O Estado Democrático de Direito é mais do que um Estado de Direito. É um Estado de Justiça (...) hoje já está demonstrado que o Juiz não constituiu mero aplicador da lei despido de vontade; um órgão neutro, surdo e mudo, que nada mais faz do que solucionar o caso concreto, aplicando não a sua vontade (decisão), mas sim aquela antes pronunciada pelo legislador. Muito mais do que isso o Juiz participa, ainda que procure negá-lo, ativamente do processo de formação e eterna reconstrução da ordem jurídica.
Com propriedade, ensina Marcelo Lima Guerra que o credor deve ser visto como um titular à tutela jurisdicional justa e efetiva e o prejuízo causado pelo devedor poderá ter-lhe atingido a dignidade e, por isso é incompatível com a supremacia da Constituição qualquer solução abstrata.
Assenta-se, por oportuno, que os ônus/custos da inscrição, exclusão e suspensão devam recair diretamente na parte autora desse pedido, e que uma vez paga a dívida ou extinta a execução por qualquer outro fundamento, caberá à parte exeqüente requerer o cancelamento da inscrição.
4. Considerações finais
Em apertada síntese, pode-se dizer que a medida abordada - inclusão do nome da parte devedora em cadastros de proteção ao crédito – vem ao encontro da tão almejada efetividade processual e do princípio da satisfação do credor, de modo que, verificado pelo magistrado que as demais medidas não alcançaram o êxito almejado, não coagindo o devedor ao cumprimento da obrigação, não apenas pode como deve deferir a medida, seja em execução de título extrajudicial e judicial, permanecendo a discussão quanto à possibilidade de utilização do meio nas execuções provisórias.
Quanto à colidência entre os direitos fundamentais do credor à tutela executiva e os direitos de personalidade do devedor, que são afetados pela negativação de seu nome, cabe ao aplicador do direito ponderar as normas conflitantes, verificando qual delas possui maior peso no caso concreto, o que, se conclui, conduz ao acolhimento da pretensão do titular do direito estampado no título executivo.
A inscrição somente pode ser realizada quando decorrido o prazo de cumprimento voluntário da obrigação, cabendo à parte autora do pedido arcar com os custos da inscrição e da exclusão, que deve ser providenciada tão logo paga a dívida ou extinta a execução por qualquer outro fundamento.
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