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A reforma do sistema tributário e o pacto federativo brasileiro

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Agenda 09/04/2005 às 00:00

VI. UMA REFORMA FATIADA

Levando-se em conta que a implementação de um novo modelo, ou um modelo ideal de Sistema Tributário no Brasil não é tarefa fácil, em função das especificidades do sistema federativo, o Governo Federal, com aprovação do Presidente da República, resolveu por aprovar a Reforma Tributária de forma "fatiada", isto é, aprová-la em partes, a fim de se evitar discussões demasiado prolongadas com os diversos segmentos envolvidos.

Uma reforma tributária adequada seria aquela que conseguisse acomodar pelo menos três dos conflitos de interesse existentes:

(a) o conflito entre o setor público e o setor privado ou os contribuintes, pois aquele busca uma maior disponibilidade de receitas, este, por sua vez, busca a redução do impacto negativo da tributação sobre a eficiência e a competitividade do setor produtivo nacional, a prestação de serviços públicos compatíveis, e ainda execução da justiça fiscal;

(b) o conflito entre as esferas de governo, no sentido vertical, que competem por fatias maiores do bolo tributário para financiarem encargos;

(c) o conflito distributivo horizontal entre as regiões num mesmo nível de governo, como é o caso da tributação do ICMS na origem ou no destino, opondo os Estados produtores ricos (Sul e Sudeste) aos Estados consumidores (Norte e Nordeste).

A acomodação desses interesses exigiria uma ampla discussão sobre a matéria, envolvendo variedade de personagens, razão pela qual o governo federal se convenceu que a reforma tributária deveria ser feita aos poucos, vencendo, assim, as resistências que se formariam no caso de uma reformulação fiscal ampla.

Este, todavia, não é o entendimento do renomado jurista brasileiro Ives Gandra da Silva Martins, o qual, em um comentário sobre o reforma tributária, diz: "Resume-se à prorrogação da CPMF, à promessa de desoneração das exportações no que diz respeito à cumulatividade das contribuições, à simplificação e federalização do ICMS (…). A impressão que se teve quando do anúncio oficial, foi a de que o Governo, de rigor, está interessado, apenas, na prorrogação da CPMF (…). As demais propostas serviriam apenas para demonstrar que o Governo não está parado, mas não implicaria um interesse maior por parte dele em vê-las aprovadas (…). Exatamente a melhor parte da proposta é aquela que o Governo tem menos condições de aprovar, por oposição de Estados e Municípios, não interessados em terminar com a guerra fiscal." [14]

O "fatiamento" da Reforma Tributária foi contestado pelo Presidente da Comissão de Reforma Tributária da Câmara e por diversos governadores inconformados com a exclusão dos Estados na discussão do processo reformista, todavia, o real interesse do Governo Federal restringe-se a dois pontos principais que foram tratados em separado, a manutenção da CPMF e da DRU (desvinculação das receitas da União). Esta última, de grande importância, pois fornece mais maleabilidade ao Governos para lidar com parte de seus recursos arrecadados, uma vez que desvincula 20% total de sua arrecadação.

Desta forma, parte da Proposta de Emenda Constitucional que já foi aprovada e promulgada garante à União a prorrogação do CPMF e a vigência da lei que a instituiu até o ano de 2007, bem como, a possibilidade de desvinculação de percentual de suas receitas, também até o ano de 2007.

Aparentemente resolvidos os problemas ditos urgentes, começa a discussão dos temas que garantem maiores mudanças do sistema tributário. Assim, a próxima fase se refere a um período de transição. A primeira grande mudança será o fim da guerra fiscal entre os Estados. O fim da concessão de benefícios fiscais como instrumento para atrair indústrias é um ponto considerado fundamental pelo governo para modernizar o sistema tributário nacional.

A unificação da legislação do ICMS também consta desta segunda fase. As 44 alíquotas hoje vigentes serão reduzidas a cinco, que vão vigorar em todo o país. As 27 legislações (estaduais) serão reunidas numa lei nacional. O enquadramento dos produtos nas alíquotas será sugerido pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e terá de ser aprovado pelo Senado Federal.

O novo ICMS vigorará entre os anos de 2005 e 2007, quando então, entra em vigor a terceira fase, com a implantação do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que vai substituir o ICMS, o IPI e o ISS e será repartido entre União, estados e municípios.

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VII. LIMITES PARA UMA REFORMA

Perquirir a conveniência de modificar uma Constituição traz restrições de diferentes ordens. Primeiramente porque mudar a forma dos preceitos constitucionais significa inserir-se no interesse maior da coletividade. Não se tratam de interesses restritos a uma pessoa ou uma classe delas, mas a todos, indistintamente.

Por outro giro, há que se observar que qualquer alteração na ordem constitucional, seja ampla (revisão) ou especifica (emenda) requer a observância de princípios e pressupostos que estão adstritos ao ordenamento jurídico. Desta forma, pode-se afirmar que uma das dificuldades a serem superadas no aprimoramento do Sistema Tributário Nacional, sem sua maioria, estão atreladas ao federalismo fiscal brasileiro, senão vejamos.

Uma das características, senão a principal, de um Estado federal é a autonomia financeira das entidades subnacionais que o compõem, que ocorre por meio de receitas próprias, resultantes de suas competências para instituir e cobrar tributos, e por meio de transferências de receitas de tributos alheios.

Nesse ponto, o princípio federativo se equilibra entre dois interesses. Por um lado a autonomia financeira dos Estados da Federação para legislar sobre os seus próprios impostos. Por outro, o Princípio da Conduta Amistosa dos Entes da Federação [15]que vem sendo vilipendiado pela guerra fiscal entre os estados, que vem concedendo benefícios fiscais unilaterais para atrair as empresas para seus territórios [16]. A questão se torna mais complicada, quando se sabe que o princípio federativo é cláusula pétrea em nossa Constituição.

A nossa Carta Magna preceitua limitações, formais e materiais, expressas e implícitas, à competência que o Congresso Nacional possui para emendar a constituição – ressalve-se que uma reforma tributária no sistema brasileiro só efetiva-se mediante emenda constituicional – são as chamadas cláusulas pétreas, consagradas no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição. Tais cláusulas consignam o núcleo irreformável da Carta, e integram seu conteúdo: (a) a forma federativa de Estado: (b) o voto secreto, direto, universal e periódico; (c) a separação dos poderes e (d) os direitos e garantias individuais.

Para uma emenda ser considerada violadora da cláusula pétrea não precisa abolir a Federação e instituir o estado unitário. Uma emenda que fira a autonomia administrativa dos estados e municípios também viola a Constituição. Nesse sentido, uma proposta que restrinja sensivelmente a competência tributária de um dos entes da Federação, ainda que reserve recursos dos impostos de outros entes para compensar a diferença, também é inconstitucional, pois retira da unidade federada a possibilidade de estabelecer uma política fiscal condizente com os seus objetivos políticos.

Dessa forma, o entendimento predominante na doutrina brasileira é o de que a Proposta de Emenda Constitucional, em trâmite no Congresso Nacional, para a reforma do atual sistema fiscal, quando preceitua a "federalização do ICMS", agride frontalmente o princípio federativo por retirar dos Estados boa parte de sua autonomia financeira, e consequentemente, suas autonomias políticas e jurídicas. Ademais, o ICMS representa 85% das receitas arrecadadas pelos Estados, isto quer dizer que, o exercício de sua competência tributária relativa ao ICMS é fundamental para sobrevivência e autonomia financeiras dos entes estaduais.

Ainda, esclarece o Professor Roque António Carrazza que "os Estados ver-se – ão na prática reduzidos à condição de meras satrapias, obrigados que serão a pechinchar as benesses federais. (…) Isto acabará, por via reflexa, com o princípio federativo, a cláusula pétrea importantíssima." [17]

O mesmo entendimento é compartilhado por Américo Lourenço Masset Lacombe, ao preceituar que " a tentativa de unificação do IPI com o ICMS, mesmo sem diminuição da receita dos entes federados, será inconstitucional, tendo em vista que retirará desses entres federados a possibilidade de auto-regular a imposição e a cobrança do seu imposto, visto que todos os aspectos da hipótese normativa passariam a ser definidos em lei federal." [18]

O certo é que com o aumento das limitações ao exercício da competência estadual relativamente ao ICMS, inspirado no combate à guerra fiscal, suprem-lhes as competências, os quais passam a ser tão somente titulares da capacidade tributária ativa [19] e destinatários de parte da arrecadação do tributo. Sem sua competência tributária plena, qualquer ente da federação fica impossibilitado de estabelecer a política fiscal condizente com suas prioridades político-administrativas.

Além do aspecto tributário, no que pertine ao federalismo, deve-se lembrar e respeitar o fato da federação ser uma forma de Estado cujo objetivo é manter reunidas autonomias regionais e, assenta-se sobretudo, na Constituição Federal. A Reforma proposta deve reunir aspectos que convirjam para a manutenibilidade e reforço do pacto federativo, assim como, na descentralização política e principalmente na participação da vontade regional na vontade nacional.


VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reformador tributário deve ter em mente que as normas geradas pelo Parlamento não se traduzem em realidade de forma espontânea e automática, mas que o seu cumprimento implica uma estrutura administrativa e um consentimento social, uma conformidade, uma disposição de acatamento por parte do público.

Entender que a Reforma tributária é um processo e não um ato isolado é o primeiro passo para superar divergências. Neste processo é preciso respeitar a história, a cultura, a realidade político-institucional e as peculiaridades da Federação brasileira.

O Governo, que certamente esperava receber propostas para alteração do sistema tributário nacional, concretas e equânimes, acabou por deparar-se com um verdadeiro impasse – o local de recolhimento do novo tributo unificado que substituirá o ICMS – agravado pela má vontade dos estados ricos em acabarem com a guerra fiscal, por eles utilizados como eficaz instrumento de mercado.

É verdade que o ICMS é o maior tributo nacional e que a competência concedida aos Estados federados para instituí-lo acabou por ensejar uma indesejável "guerra fiscal", assim como também é certo que a tentativa de reaproximá-lo ao modelo IVA europeu seria conveniente, buscando uniformizar nacionalmente as legislações e alíquotas, adotando o princípio do destino e incorporando serviços e a etapa de produção.

Teríamos, quem sabe, ao final uma tributação racional, moderna, uniforme, e não cumulativa sobre o consumo, análoga à que se pratica na maioria dos países que são nossos parceiros comerciais, diminuindo o "custo-Brasil" e desonerando as exportações.

Embora a solução pretendida pareça racional é preciso não esquecer que ainda persistem obstáculos que não estão sendo respeitados.

Primeiramente que, sob o aspecto tributário, em comparação ao IVA europeu, pode-se dizer que a Proposta é nefasta por excluir da indesejável integração o ISS (imposto sobre serviços de qualquer natureza – competência municipal), que também é um imposto sobre o consumo e deve ser não cumulativo, como na experiência européia. Dessa forma, cria-se uma expectativa de um IVA nos moldes europeu, completo, não obstante mantendo os serviços fora de sua incidência, mas o que na verdade reflete é o interesse ilegítimo do Governo Federal, em paulatinamente, federalizar o ICMS. " Essa integração, vem confirmar a previsão de que – tal como aconteceu no México – primeiro o imposto sobre o consumo foi unificado, para depois ser federalizado." [20]

A lembrar, ainda, da peculiaridade federativa brasileira, com autonomia dos entes tributantes federados, o que representa sérios empecilhos à uniformização pretendida.

A capacidade que os entes federados têm de terem as suas receitas originárias ou próprias e, de terem sobre elas a autonomia, em relação à competência tributária é característica marcante de um federalismo fiscal. A atual Carta Magna estabelece um sistema rígido de competência tributária, definindo os impostos de cada esfera de Governo, delimitando o federalismo fiscal e concebendo-o como imutável ao considerar como cláusula pétrea o Estado Federado (artigo 60 parágrafo 4º), bem como inconstitucional qualquer medida tendente a abolir este federalismo. Ou seja, as cláusulas pétreas só poderão ser objeto de alteração mediante a realização de uma nova Assembléia Geral Constituinte, o que não é o caso da presente Reforma Constitucional.

Desta forma, seja a normatização legislativa do ICMS por lei federal, ou a integração deste com o IPI em razão de um possível IVA, confrontam-se com o federalismo fiscal aplicado no Brasil, posto que haverá superposição da União em detrimento dos Estados-membros, por retirar-lhes a autonomia fiscal.

Por seu turno, quando se fala em finalidade precípua de acabar com a "guerra fiscal", há-de se saber também que ela pode ser combatida com outras medidas, como por exemplo, a neutralidade do ICMS, a vedação de concessão de benefícios e incentivos fiscais, a punição" efetiva" aos Estados e seus agentes que venham a praticar atos contrários à lei e a Constituição e uma política de desenvolvimento regional de iniciativa do Governo Federal.

Não se há de olvidar, ainda, que qualquer reforma fiscal deverá obrigatoriamente ter em vista o MERCOSUL [21], realidade a que se não pode furtar o legislador do nascente Século XXI, dada a interpenetração dos blocos regionais, com o que este deve estar atento às exigências desta nova construção político - institucional.

Nesse sentido, importante também salientar que a melhor inserção do Brasil no processo de integração mercosulino depende de um fortalecimento do pacto federativo pátrio contido na Constituição Federal de 1988, através da verificação de verdadeiras autonomias financeiras dos governos locais ou regionais, e da convergência de forças dos entes federados para o fortalecimento interno do Estado Federal para, assim, poder contribuir como um todo de maneira mais sólida e significativa para o processo de integração regional, principalmente através do combate à guerra fiscal.

Sobre a autora
Manoelle Soldati

Mestranda pela Faculdade de Direito de Lisboa – Portugal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOLDATI, Manoelle. A reforma do sistema tributário e o pacto federativo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 640, 9 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6557. Acesso em: 25 nov. 2024.

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