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Repensando o cooperativismo

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Agenda 05/04/2005 às 00:00

VI – FECHO

            O cooperativismo, fundado em valores de alta significação, exalta o homem enquanto ser dinâmico, destronando a propriedade, que tem servido, ao longo da história do capitalismo, a toda espécie de opressão e exploração.

            Reservando ao capital papel puramente instrumental, o cooperativismo faz dele elemento a serviço do homem, colocando-o, assim, em seu devido lugar, o que propicia o fim dos conflitos ente capital e trabalho e a titularização, pelos trabalhadores, dos meios de produção.

            Cuidando do ser humano em seus múltiplos aspectos, na busca de sua emancipação e dignificação, o cooperativismo, primado da atividade sobre o capital, corrige os desajustamentos provocados pelo capitalismo, impedindo a exploração do homem pelo homem e possibilitando a obtenção do justo preço dos produtos e serviços.

            Assim, como se vê, a harmonia do cooperativismo com os fundamentos e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito constituído pela República Federativa do Brasil – cf. os arts. 1.º e 3.º da Constituição da República de 1988 – é perfeita, o que deu a ele, inclusive, dignidade constitucional: "A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo" (§ 2.º do art. 174 da Constituição da República de 1988). (30)

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NOTAS

            1

Sobre esses valores e sua relação com o cooperativismo, cf. publicação da Aliança Cooperativa Internacional, organização não-governamental que, fundada em 1895, é integrada por mais de 230 organizações, oriundas de mais de 100 países, representando aproximadamente 730 milhões de pessoas: Review of International Co-operation, v. 88, n.º 3, Section II, p. 12-15, 1995.

            2

A cooperação, como nos lembra Wilhelm Jäger, é uma comunidade de vantagens, e não de distribuição (JÄGER, Wilhelm. As Cooperativas Brasileiras sob o Enfoque da Moderna Teoria da Cooperação. Tradução de Helmut Egewarth. Brasília: Coopermídia, 1995, p. 9).

            3

Os interesses envolvidos na cooperação fazem com que a cooperativa tenha caráter orgânico, sendo, como bem assinala Walmor Franke, um "‘prolongamento’ (prolongement), uma ‘extensão’ (Dec. n.º 60.597/67, art. 105), o ‘braço alongado’ (verlaengerte Arm) das economias dos sócios" (FRANKE, Walmor. Direito das Sociedades Cooperativas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p. 26).

            4

Impende ressaltar que cuidaremos, aqui, das sociedades cooperativas singulares, entidades cooperativas por excelência, embora o que se disser se aplique, mutatis mutandis, observadas as ressalvas legais, às cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas.

            5

BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo (de acordo com o novo Código Civil). São Paulo: Dialética, 2002, p. 132.

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O que se disse é verdade mesmo quando o cliente for um sócio, pois, nesse caso, assume ele, na relação com sua organização, a condição de terceiro.

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Outro não é o entendimento de Walmor Franke, que afirma que "Nas cooperativas, o fim visado pelo empreendimento se identifica com o da clientela-associada" (FRANKE, Walmor. Op. cit., p. 16).

            8

SANDRONI, Paulo (org. e superv.). Novo Dicionário de Economia. 2.ª ed. São Paulo: Best Seller, 1994, p. 201.

            9

Veremos à frente, contudo, ao tratarmos dos atos não-cooperativos, que a cooperativa pode, extraordinariamente, quando da prática de tais atos, auferir lucro.

            10

Cada cooperado contribui para o custeio da cooperativa na proporção do gozo dos serviços por ela prestados, pois quem mais se beneficia dos serviços da cooperativa mais dá causa aos custos operacionais. A Lei n.º 5.764/71, contudo, por uma razão de equanimidade, permite, no parágrafo único do seu art. 80, que as despesas operacionais da cooperativa sejam divididas em despesas gerais e especiais, aquelas relacionadas ao custo fixo e estas ao custo variável da cooperativa, com reflexos no rateio das sobras e perdas.

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Na prática, é comum se adotar, na entrega aos cooperados ou recebimento dos cooperados de produtos ou serviços pela cooperativa, os preços médios praticados no mercado ao qual estariam eles potencialmente sujeitos caso não cooperassem.

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Se a entrega de valores foi aquém do demandado pela cooperativa para cobrir seus gastos operacionais, há a figura anômala das perdas, que, a nosso juízo, não revela, necessariamente, insucesso da cooperativa, pois pode resultar apenas e tão-somente de previsão equivocada dos custos operacionais da entidade. As perdas devem ser suportadas pelos cooperados na proporção do gozo, por cada um, dos serviços prestados pela cooperativa.

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Como se vê, as sobras não se confundem com o lucro, pois este é a remuneração daquele que reúne com êxito os fatores necessários ao exercício de atividade econômica e é distribuído na proporção da participação de cada sócio no capital social, ao passo que as sobras decorrem apenas de impossibilidade de previsão exata de custos operacionais e são devolvidas na proporção da participação de cada sócio no custeio, em operação que visa, exatamente, eliminar a figura do lucro. Como se percebe, a devolução das sobras representa nada mais que a restituição daquilo que foi percebido a mais para a cobertura das despesas operacionais da cooperativa, o que revela ser o retorno verdadeiro instrumento de eliminação do lucro.

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A Constituição da República de 1988, ao extirpar a interferência estatal no cooperativismo (inciso XVIII do seu art. 5.º), consagrou a autogestão cooperativista, vale dizer, a gestão da cooperativa exclusivamente por seus cooperados, sem qualquer interferência externa, o que ensejou, inclusive, a não-recepção de diversos dispositivos da Lei n.º 5.764/71. Impende ressaltar que a autogestão não impede a adoção de gestão profissional, imperativo do mundo moderno, globalizado e informatizado, que exige eficiência e competitividade, haja vista que, nesse caso, o gestor profissional atuará por força de decisão exclusiva dos cooperados.

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Cf. o inciso IX do art. 4.º da Lei n.º 5.764/71.

            16

Cf. o inciso I do art. 4.º e o art. 29 da Lei n.º 5.764/71.

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Importante a lição de Rubens Requião: "Uma característica fundamental distingue, na exposição de Hariou, a instituição do contrato. Na primeira, o consentimento dos membros se restringe à aceitação da disciplina, sem preocupação imediata dos resultados de sua atividade; no segundo, o consentimento tem por objeto os atos dos contratantes e implica os resultados. ‘Não é bastante dizer que a conservação da situação contratual está subordinada à execução dos atos que cada um dos contratantes prometeu e uma condição resolutiva é para esse fim subentendida nos contratos sinalagmáticos. Ao contrário, na instituição a existência da organização criada não está subordinada à execução de tais ou tais atos que um dos membros poderia ter prometido" (REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 8.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 1, p. 257-258).

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Mister se faz salientar que não há contradição entre o art. 3.º da Lei n.º 5.764/71 e a Seção II do Capítulo IV dessa Lei, pois, como destaca Walmor Franke, citando Regelsberger, o surgimento da instituição cooperativa pressupõe a existência efêmera de um contrato de organização e submissão celebrado entre seus fundadores, havendo, pois, verdadeira transposição de regimes societários – do contratual para o institucional – com a personificação da cooperativa, ocorrida com o registro de seus atos constitutivos no registro próprio (FRANKE, Walmor. Op. cit., p. 50-52).

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Vale mencionar, aqui, embora sem a preocupação de exaurir o tema, as características que não foram por nós examinadas: (a) variabilidade do capital social, independentemente de reforma estatutária, decorrência do livre ingresso na cooperação; (b) incessibilidade das quotas do capital a terceiros, estranhos à sociedade, ainda que por herança, decorrência do livre ingresso na cooperação e do fato de o cooperativismo, instrumentalizando o capital, ser antiespeculativo; (c) possibilidade de pagamento de juros fixos e, entendemos, limitados a 12% ao ano sobre o capital social realizado, decorrência da eqüidade e do caráter não-especulativo do cooperativismo; (d) indivisibilidade, ainda que em caso de dissolução, dos fundos de reserva e de assistência técnica, educacional e social, decorrência da inexistência de fins lucrativos no cooperativismo; (e) participação de pessoas jurídicas na cooperação apenas em via de exceção, decorrência de se buscar, na cooperação, a dignificação da pessoa humana; (f) necessidade de haver concurso de cooperados em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo; (g) limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada cooperado poderá tomar; (h); prestação de assistência aos cooperados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados, decorrência do fato de se buscar, na cooperação, a sublimação do ser humano; (i) área geográfica de admissão de cooperados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços; (j) possibilidade de a responsabilidade dos cooperados por obrigações da cooperativa ser limitada ou ilimitada; (l) não sujeição da cooperativa ao processo falimentar; (m) estrutura federalizada do sistema cooperativista brasileiro.

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É interessante destacar que em tais negócios figuram predominantemente como clientes os terceiros ou a cooperativa, conforme se esteja a tratar, respectivamente, de cooperativa que propicie aos cooperados o exercício de atividade econômica de colocação ou de obtenção. Como foi dito, esses negócios compõem, ao lado dos realizados com os cooperados, a prestação de serviços implementada pela cooperativa em benefício destes, genuínos clientes no cooperativismo.

            21

Cf. BECHO, Renato Lopes. Tributação das Cooperativas. 2.ª ed. (revista e ampliada). São Paulo: Dialética, 1999, p. 132 e ss.

            22

En passant, destacamos que, a nosso juízo, a Constituição da República de 1988, ao dispensar, por meio da alínea c do inciso III do seu art. 146, adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, adota a corrente ampla, atingindo os negócios cooperativos praticados com terceiros, haja vista a intributabilidade dos negócios-fim, decorrente de sua própria natureza jurídica. De fato, caso se entenda que a Carta Magna adota a corrente restrita, haverá uma anomalia jurídica: um dispositivo constitucional determinando adequado tratamento tributário a uma operação não-tributável.

            23

Como se vê, não é correto se afirmar que ato não-cooperativo é todo aquele que não seja ato cooperativo, pois, em se adotando a corrente que afirma que ato cooperativo é sinônimo de negócio-fim, teremos determinados negócios cooperativos – negócios-meio, negócios auxiliares e negócios acessórios – que não serão atos cooperativos nem atos não-cooperativos.

            24

A Lei n.º 5.764/71 determina, no seu art. 87, que o lucro resultante dos atos não-cooperativos seja contabilizado em separado, de molde a permitir cálculo para a incidência de tributos, e levado à conta do fundo indivisível de assistência técnica, educacional e social, "destinado à prestação de assistência aos associados, seus familiares e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa" (inciso II do art. 28 da referida Lei). Oportuno destacar, contudo, que entendemos, mesmo nesse caso, que a tributação deve ser mais suave do que a incidente em desfavor das organizações capitalistas, haja vista o § 2.º do art. 174 da Constituição da República de 1988, o princípio da isonomia, que manda tratar de forma desigual os desiguais, na medida em que se desigualem, e o fato de o lucro decorrente dos atos não-cooperativos ser levado a fundo indivisível destinado a custear ações que, sendo de interesse coletivo, competem naturalmente ao Estado, o que atrai este raciocínio: aqueles que contribuem diretamente para a consecução dos fins do Estado devem ser dispensados de contribuir indiretamente, por meio do pagamento de tributos (nesse sentido, cf. FRANKE, Walmor. Op. cit., p. 28-31).

            25

LIMA, R. F. Conclusões da 90.ª Conferência Internacional do Trabalho (OIT) Genebra. Jornal Gazeta Mercantil, São Paulo, p. 2, 17 jul. 2002.

            26

Cuidamos da necessidade de incrementação de benefícios quando examinamos as características das sociedades cooperativas, oportunidade em que revelamos se tratar de mera explicitação do núcleo do cooperativismo: a busca pela dignificação do ser humano.

            27

É importante ressaltar que essa denominação consta da Recomendação n.º 193/02 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe, na alínea b de seu item 8.1, o seguinte: "8. 1) Las políticas nacionales deberían, especialmente: (...) b) velar por que no se puedan crear o utilizar cooperativas para evadir la legislación del trabajo ni ello sirva para establecer relaciones de trabajo encubiertas, y luchar contra las seudo-cooperativas, que violan los derechos de los trabajadores, velando por que la legislación del trabajo se aplique en todas las empresas". Disponível em: www.ilo.org/ilolex/spanish/recdisp2.htm. Acesso em: 17 jun. 2004.

            28

Cf. os arts. 986 a 990 do Código Civil de 2002.

            29

Vejamos esta esclarecedora lição de Fran Martins: "Para nós, quer a sociedade tenha os atos constitutivos escritos e não arquivados, quer resulte apenas de atividade comercial em comum, com ânimo societário, teremos uma sociedade de fato e não uma sociedade irregular. Esta será a sociedade que se organiza legalmente, arquiva seus atos constitutivos no Registro do Comércio, mas, posteriormente, pratica atos que desnaturam o tipo social (...) ou que funciona sem cumprir as obrigações impostas por lei (...)" (MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 2.ª ed. (revista e atualizada). Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 262). Impende destacar que a sociedade em comum ou de fato não possui personalidade jurídica, ao passo que a sociedade irregular não perde, por conta dessa qualidade, sua personalidade jurídica.

            30

Impende ressaltar que a Constituição da República de 1988 cuida do cooperativismo em outras passagens do seu texto: inciso XVIII do art. 5.º (inserido dentro do Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), alínea c do inciso III do art. 146 (inserido dentro do Capítulo do Sistema Tributário Nacional), §§ 3.º a 4.º do art. 174 (inseridos dentro do Capítulo dos Princípios Gerais da Atividade Econômica) e inciso VI do art. 187 (inserido dentro do Capítulo da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária).
Sobre os autores
Flávio Valle

Economista e especialista em Cooperativismo e associativismo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALLE, Flávio; VALLE, Gustavo. Repensando o cooperativismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 636, 5 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6559. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista de Direito do Trabalho, vol. 116, Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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