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O princípio da liberdade de iniciativa e a inconstitucionalidade das leis municipais que limitam geograficamente a instalação de farmácias e drogarias

Agenda 03/04/2005 às 00:00

1. Introdução.

            O professor Gilberto Caldas leciona que a "Constituição é o estatuto máximo de uma nação. É a suprema lei a que todos os ramos do direito têm que se submeter. Daí os adjetivos ‘Lei Mater, Lei Excelsa, Magna Carta’. Este diploma disciplina a organização e o funcionamento do Estado, bem como delimita os deveres e direitos de todos os cidadãos".

            É a Constituição que delimita a própria existência do Estado e dos poderes republicanos.

            Nossa República adota um sistema constitucional rígido, de modo que somente se admite reforma da lei suprema por meio de emendas constitucionais, havendo ainda uma parte imutável, as chamadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4o e incisos).

            Partindo destes princípios, podemos chegar a duas conclusões relativamente às normas jurídicas inferiores à atual Constituição. A primeira delas diz respeito às leis já existentes anteriormente à vigência da Constituição de 1988: se compatíveis com a nova ordem constitucional, permanecem vigentes, dizendo-se que foram recepcionadas pela constituição; se incompatíveis, são revogadas, expressa ou tacitamente, pela simples aplicação do princípio de que norma posterior revoga norma anterior. A segunda delas diz respeito às normas promulgadas posteriormente à vigência da atual constituição: somente terão validade as que guardem consonância com as normas gerais traçados pela magna carta, de modo que aquelas que contrariem seus princípios estarão contaminadas pelo vício da inconstitucionalidade em decorrência da aplicação do princípio da incompatibilidade vertical.

            Norma inconstitucional é aberração jurídica, devendo ser ignorada no mundo do direito. José Afonso da Silva nos explica que "o fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores".


2. A inconstitucionalidade das leis municipais que limitam geograficamente a instalação de farmácias e drogarias. Caso concreto: Lei Municipal n° 3.863/2001 do município de Caicó – RN.

            Tem-se observado em diversos municípios brasileiros a elaboração de leis locais que proíbem a instalação de um segundo estabelecimento congênere, notadamente do ramo farmacêutico, dentro de um raio delimitado pela própria norma. Tais diplomas legislativos ferem diversos princípios constitucionais na ânsia de proteger alguns comerciantes previamente estabelecidos e que não raramente são protegidos ou "apadrinhados" por políticos locais.

            Um exemplo prático de tal espécie de norma e da aplicação do princípio da incompatibilidade vertical, conforme explanado no tópico anterior, pode ser feito com a análise da constitucionalidade da Lei Municipal n° 3.863/2001, do município de Caicó, Estado do Rio Grande do Norte. Tal diploma legislativo estabeleceu critérios para a instalação de novas farmácias e drogarias a partir da sua vigência. A polêmica reside no bojo do caput do seu art. 1o, o qual passamos a transcrever:

            Art. 1o A licença de localização para instalação de novas farmácias e drogarias no município de Caicó – RN, será concedida somente quando o estabelecimento ficar situado a uma distância mínima de 300 (trezentos) metros de raio de qualquer outro estabelecimento farmacêutico já existente.

            Observe-se que, em um primeiro momento, poderemos nos quedar pela constitucionalidade da aludida lei. De fato, tem o município competência para promover o adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e o controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, a teor do disposto no art. 30, VIII, da Constituição Federal de 1988.

            Ocorre que a análise da constitucionalidade de uma norma não pode se limitar a verificar seus aspectos formais, que no caso em apreço se perfaz na competência do município para legislar sobre a matéria. Apesar de existir a competência legislativa (validade formal), ainda deve o município, na elaboração do conteúdo da norma, observar que a mesma deverá guardar estreita consonância com os princípios constitucionais de ordem material que por ventura incidam sobre os casos previstos, sob pena de inconstitucionalidade material.

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            Nosso regime constitucional fez clara opção pela economia de mercado, o que significa dizer que deve existir, concomitantemente, a propriedade privada e o respeito à liberdade de iniciativa como condições sine qua non de tal regime. Perceba-se que a demarcação de áreas comerciais como exclusivas para ocupação de comerciantes previamente estabelecidos fere o princípio da liberdade de iniciativa e, por conseguinte, também o da livre concorrência, típicos de tal regime econômico e expressamente adotados pela nossa Constituição Federal (art. 170, caput, e respectivo inciso IV).

            Ademais, a norma municipal em destaque favorece a concentração capitalista em prol da dominação dos mercados, concentração dos lucros e eliminação da concorrência, pelo que mais uma vez recorremos ao magistério de José Afonso da Silva a respeito do tema:

            A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ela é uma manifestação da liberdade de iniciativa, e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4o).

            Mas os desrespeitos à Constituição Federal não cessam por aí, posto que a delimitação de áreas para o estabelecimento de determinado seguimento do mercado ainda dificulta a busca do consumidor por melhores preços, uma vez que o mesmo terá de se deslocar maiores distâncias para adquirir o mesmo produto por custo inferior ou de melhor qualidade, o que se perfaz em uma afronta ao princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, da CF/88).

            Instado a se pronunciar a respeito da matéria em casos análogos ao da lei supracitada, o Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Constitucional, já se manifestou pela inconstitucionalidade de tais normas por quatro vezes consecutivas (RE 193.749-SP, rel. Min. Carlos Velloso; RE 213.482-SP, rel. Min. Ilmar Galvão; RE 199.517, rel. Min. Maurício Corrêa; e RE 203.909, rel. Min. Ilmar Galvão). Por ocasião da publicação do aresto que apreciou o último feito citado, prolatou-se decisão com a seguinte ementa:

            AUTONOMIA MUNICIPAL. DISCIPLINA LEGAL DE ASSUNTO DE INTERESSE LOCAL. LEI MUNICIPAL DE JOINVILLE, QUE PROÍBE A INSTALAÇÃO DE NOVA FARMÁCIA A MENOS DE 500 METROS DE ESTABELECIMENTO DA MESMA NATUREZA. Extremo a que não pode levar a competência municipal para o zoneamento da cidade, por redundar em reserva de mercado, ainda que relativa, e, consequentemente, em afronta aos princípios da livre concorrência, da defesa do consumidor e da liberdade do exercício das atividades econômicas, que informam o modelo de ordem econômica consagrado pela Carta da República (art. 170 e parágrafo, da CF). Recurso não conhecido.

            O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte já se pronunciou em duas oportunidades a respeito da lei em comento (Lei Municipal n° 3.86/2001 de Caicó – RN). A primeira delas ocorreu no Agravo de Instrumento de n° 03.000729-1, no qual fora concedido efeito suspensivo ativo (tutela antecipada recursal) para que se suspendesse ato do Poder Executivo Municipal (Caicó-RN) que casssou Alvará de Localização e Funcionamento com base na aplicação de tal norma jurídica. Tal decisão monocrática fora confirmada no julgamento do agravo através de acórdão que teve ementa com o seguinte teor:

            CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE NÃO CONCEDEU LIMINAR EM AÇÃO CAUTELAR – ALVARÁ DE LICENÇA E LOCALIZAÇÃO – FARMÁCIA – LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA – DISTÂNCIA MÍNIMA ENTRE ESTABELECIMENTOS CONGÊNERES – INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL VERIFICADA NO CASO CONCRETO - FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA EVIDENTES PARA CONCESSÃO DA LIMINAR REQUERIDA - CONHECIMENTO E PROVIMENTO DO RECURSO INTERPOSTO PELA AGRAVANTE. I. A limitação geográfica à instalação de drogarias cerceia o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica privada (CF/88, artigo 170, inciso IV e parágrafo único c/c o artigo 173, § 4º). II. "O desenvolvimento do poder econômico privado fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada à medida que impede ou dificulta a expansão das pequenas iniciativas econômicas". (RE n.º 199.517, Min. Maurício Correa)." – Agravo de Instrumento n° 03.000729-1-TJ/RN, Rel. Des. Aderson Silvino; publicação: 20.09.2003, p. 03, Diário Oficial do RN.

            O segundo pronunciamento surgiu nos autos da Apelação Cível n° 02.002990-0, na qual o relator do feito deferiu tutela antecipada recursal determinando ao Prefeito Municipal de Caicó que expedisse Alvará de Localização e Funcionamento dantes negado com base no diploma legal em discussão, permitindo assim que a apelante pudesse se instalar comercialmente no município. Nas duas hipóteses foram seguidas as orientações jurisprudenciais emanadas do Supremo Tribunal Federal, mencionadas alhures.


3. Formas de controle de constitucionalidade exercidas pelo Poder Judiciário.

            Nosso sistema jurídico-legal prevê duas formas de controle de constitucionalidade a serem exercidas por parte do Poder Judiciário: a forma concentrada (por via direta) e a forma difusa (por via de exceção).

            O controle concentrado é exercido através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade, sendo as normas analisadas em tese. Compete ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de tais feitos propostos em face da Constituição Federal, e aos Tribunais de Justiça dos Estados o julgamento de demandas da mesma natureza propostas em face das Constituições dos Estados. Válido salientar que nosso sistema jurídico não prevê tais ações quando a constitucionalidade ou inconstitucionalidade a ser analisada seja de norma municipal em face da Constituição Federal, restando, nestes casos, apenas o controle de constitucionalidade difuso.

            A declaração de inconstitucionalidade pela via direta, somente feita pela maioria absoluta dos membros componentes do órgão julgador, fulmina a norma do ordenamento jurídico desde a sua promulgação, sendo oponível erga omnes. Válido salientar que poucos são os que detêm legitimidade ativa para propor tais ações.

            Por outro lado, o controle de constitucionalidade difuso pode ser exercido por qualquer interessado, em qualquer litígio judicial, seja de que natureza for, seja qual for o juízo, bastando argüir-se o vício da inconstitucionalidade diante do caso concreto, como um dos fundamentos da demanda. Convencendo-se da inconstitucionalidade da norma, a autoridade julgadora do feito negará a aplicação da norma atacada diante daquele específico caso concreto.

            Negar a aplicação de norma inconstitucional diante do caso concreto, ademais, não se trata de mera faculdade dos magistrados, mas de verdadeiro dever destes no exercício da função de guardiões da Constituição, a qual lhes é conferida pela própria carta magna. O não-exercício de tal dever equivale a admitir-se que normas inferiores possam desafiar o poder da norma suprema do Estado brasileiro, bem como à negativa da soberania estatal e da existência do próprio Poder Judiciário, uma vez que o poder de dizer o direito a ser aplicado no caso concreto é a mais fina forma de se exercer a soberania.

            Dentro desta linha de raciocínio, a Lei de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Norte assim dispôs:

            Art. 3oOs juízes devem negar aplicação, nos casos concretos, às leis que entenderem manifestamente inconstitucionais, sendo, entretanto, da competência privativa do Plenário do Tribunal de Justiça, pela maioria absoluta dos seus membros, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público estadual ou municipal em face da Constituição do Estado – grifei.

            Válido salientar que, de acordo com o disposto no art. 481, Parágrafo Único, do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei n° 9.756/98, não há a necessidade, no controle de constitucionalidade difuso, dos órgãos fracionários dos tribunais submeterem ao plenário a argüição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento do próprio Tribunal ou do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria.


4. Conclusão.

            Diante dos princípios constitucionais que regem a ordem econômica nacional, notadamente a liberdade de iniciativa, a livre concorrência e a proteção ao consumidor, bem como a determinação (também constitucional) de repressão ao poder econômico que vise a dominação do mercado, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros, é inconcebível que uma norma legal delimite áreas para a instalação de estabelecimentos de determinado seguimento comercial, em detrimento de demais estabelecimentos do mesmo ramo a serem posteriormente instalados.

            A Lei Municipal n° 3.683/2001 do município de Caicó – RN e demais normas da mesma natureza são manifestamente inconstitucionais diante de tais princípios. Tal vício já fora pronunciado em casos análogos pelo Supremo Tribunal Federal e reconhecido quanto à norma em destaque pela via do controle de constitucionalidade difuso.

            Negar-se aplicação a tais tipos de normas, elaboradas nos mais diversos municípios brasileiros, mais que mera faculdade dos magistrados de quaisquer isntâncias a que seja o caso submetido, constitui-se em verdadeiro dever destes no exercício da função de guardiões da Constituição Federal. Ademais, admitir que uma norma municipal (de hierarquia inferior) possa negar princípios consagrados pela norma suprema do Estado brasileiro seria o mesmo que negar a soberania estatal e a existência do Poder Judiciário como responsável pelo controle da legalidade dos atos administrativos.


5. Bibliografia.

            BRASIL. Constituição Federal de 1988.

            CAICÓ-RN. Lei n° 3.863, de 13 de março de 2001.

            CALDAS, Gilberto. Direito para Concursos. Jalovi: São Paulo, 1990.

            RIO GRANDE DO NORTE. Lei Complementar n° 165, de 28 de abril de 1999.

            SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19a ed., Malheiros: São Paulo, 2001.

            SLAIBI FILHO, Nagib. Sobre a Argüição de Inconstitucionalidade. Revista Prática Jurídica, ano II, n° 10. Consulex: Brasília, 31.01.2003.

            SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Site: www.stf.gov.br.

            TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RN. Site: www.tjrn.gov.br.

Sobre o autor
Síldilon Maia Thomaz do Nascimento

Acadêmico do curso de Direito da UFRN/CERES, campus de Caicó – RN e aluno do Curso de Especialização em Direito Processual Civil pela Universidade Potiguar (UnP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Síldilon Maia Thomaz. O princípio da liberdade de iniciativa e a inconstitucionalidade das leis municipais que limitam geograficamente a instalação de farmácias e drogarias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 634, 3 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6563. Acesso em: 24 nov. 2024.

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