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ADPF 186 x ADC 41: A justiça social das ações afirmativas

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Agenda 25/04/2018 às 22:33

Embora o STF entenda pela constitucionalidade das ações afirmativas, à luz da teoria de Rawls, a justiça social por trás das ações afirmativas apenas poderá ser verificada mediante reflexão que conjugue consentimento e reciprocidade no contrato social.

I. Introdução

                        Um tema constitucional que tem desafiado operadores do direito, da sociologia e da filosofia jurídica são ações afirmativas destinadas a viabilizar uma justiça distributiva mais igualitária a minorias.

                        No Brasil, entre esses grupos ditos qualitativamente minoritários, os negros têm sido alvo de políticas públicas afirmativas destinadas a proporcionar-lhes condições facilitadas intencionando a realização do princípio da igualdade em sua forma plena, em especial, na igualdade de oportunidade de competição pelos bens sociais escassos, porém desejados na busca da felicidade individual à qual todos os cidadãos têm direito.

                        Considerando que as ações afirmativas promovem tratamento diferenciado em relação aos grupos majoritários e que na busca pela desejada igualdade material plena há pessoas que serão diretamente afetadas pela distinção no sentido de receberem menor distribuição dos bens sociais do que almejam, não raras são as vezes em que o Supremo Tribunal Federal é acionado para julgar a (in)constitucionalidade dessas ações afirmativas.

                        O presente artigo pretende fazer uma análise dos casos ADPF 186 e da ADC 41 julgados pelo Supremo Tribunal Federal para entender como a Corte se posicionou acerca do princípio da igualdade diante de duas ações afirmativas baseadas em cotas raciais.

                        No primeiro caso, a ADPF 186 julgada em 2011, o colegiado foi provocado a examinar a constitucionalidade de um ato administrativo da Universidade de Brasília/UNB que reservava 20% das vagas do vestibular para alunos autodeclarados negros e pardos.

                        Já no segundo caso, na ADC 41, julgado em 2017, a Corte foi provocada a examinar a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014 editada pelo Congresso Nacional visando reservar 20% das vagas de todos os concursos públicos federais a candidatos autodeclarados negros e pardos.

                        A questão central dos casos concretos diz respeito ao princípio da igualdade e o significado constitucional que o Supremo construiu nesses julgamentos. Ao enfrentá-lo, o Tribunal precisava examinar se o tratamento distintivo promovido nas duas políticas públicas inclusivas de natureza racial que concedia facilitações em favor de um grupo qualitativamente minoritário afrontaria o princípio da igualdade ou se essas ações afirmativas estariam consentâneas com os matizes ideológicos que o balizam.

                        Não pretendemos neste ensaio, investigar os fundamentos jurídicos utilizados pelos julgadores para opinar sobre (in)constitucionalidade das medidas ou a (in)correção das decisões proferidas sob o prisma jurídico-constitucional.

                        Sob o aspecto constitucional, independente do mérito da decisão, pensamos que o predicado jurídico (constitucional ou inconstitucional) está mais diretamente conectado à observância dos procedimentos democráticos estabelecidos na Constituição para a elaboração de normas atinentes a esse tipo de política pública. Dito isso, acreditamos que ambas políticas públicas são constitucionais e concordamos com as decisões tomadas pelo STF.

                        Pretendemos, contudo, examinar o problema sob uma perspectiva ralwsiniana, onde a justiça para distribuição de bens sociais depende de observância de dois critérios específicos mais adiante identificados, o princípio da igualdade e o princípio da diferença.

                        Em nosso entendimento, o exame dos casos demonstra que a despeito de semelhanças aparentes e superficiais, tratam-se de casos essencialmente diferentes pois cuidam de disputas por bens sociais distintos.

                        Após identificarmos o significado constitucional do princípio da igualdade construído pelo Supremo, submeteremos a solução alcançada pela Corte ao teste dos critérios de justiça criados por Rawls para sustentar que conquanto seja justo facilitar a admissão de negros e pardos nas instituições de ensino superior utilizando uma política de cotas raciais, independentemente do curso, o mesmo não se poderia dizer com relação aos cargos públicos.

                        Argumentaremos que a política pública inclusiva através da educação é justa na medida em que distribuir mais educação aos negros e pardos consegue atacar ou enfrentar o problema destacado mais diretamente e realiza, hipoteticamente, um ganho sistêmico social que a política pública inclusiva através da distribuição de cargos públicos indistintamente não consegue.

                        A intenção do estudo é estabelecer a premissa de que, embora o critério racial seja válido e legítimo, sob uma perspectiva de justiça rawlsiniana, ele só se justifica quando possibilitar um ganho sistêmico social maior do que as alternativas, em especial para aqueles menos dotados dos talentos necessários para a disputa em questão.

                        A relevância de se buscar um critério de justiça mais objetivo, ou melhor identificado é a tentativa de promover a justiça social em si, evitando um backlash reativo à políticas segregadoras, que na experiência global tem se traduzido em ódio racial e derramamento de sangue em real prejuízo ao que originalmente se buscava proteger: igualdade[1].

                       

II. Significado do princípio da igualdade para o STF à luz da ADPF 186 e ADC 41

                        A ADPF 186 foi proposta em 2009 pelo Partido Democratas – DEM e foi distribuída ao Min. Lewandowski. A ação postulava a declaração da inconstitucionalidade de ato administrativo praticado pela Universidade de Brasília – UNB, destinado a reservar 20% das vagas do vestibular para candidatos autodeclarados negros.

                        Já a ADC 41 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e distribuída à relatoria do Min. Luís Roberto Barroso. A ação buscava um pronunciamento definitivo do Supremo com relação à constitucionalidade da Lei nº. 12.990/2014 que reservava 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta também a candidatos autodeclarados negros e pardos.

                        Nos dois casos, o Supremo analisou a legitimidade do critério cota racial para implementação de uma política pública de inclusão e se a distinção com base no fenótipo dito racial afrontaria o princípio da igualdade.

                        Em ambos os casos, o Supremo entendeu pela constitucionalidade das políticas raciais inclusivas, tendo sobressaído nos votos da ADC 41, julgada posteriormente, diversas menções e remissões aos votos proferidos na ADPF 186, ressaindo dos acórdãos que os Ministros entendiam estar diante da mesma questão. Ousamos discordar.

                        Naturalmente, há uma série de semelhanças entre os casos, mas entendemos que em essência eles são distintos por se tratar de discussões sobre bens sociais diferentes, a saber, educação e renda. Em assim o sendo, pensamos que ainda que o critério racial possa ser constitucionalmente legítimo para a fins de inclusão social, a justiça rawlsiniana na adoção desse critério dependerá da adequação da medida concreta ao sacrifício imposto à coletividade com a finalidade de se alcançar um ganho sistêmico maior para todos, mormente aqueles que são menos dotados dos talentos e vantagens relevantes para as disputas in casu.

                        Os relatórios dos dois acórdãos dão conta de que entre as partes que defenderam as políticas públicas de cunho racial e os julgadores que participaram dos julgamentos havia uma crença compartilhada segundo a qual negros e pardos, a despeito de comporem uma maioria quantitativa da população, encontram-se marginalizados no processo de distribuição e competição por bens sociais escassos.

                        Em específico, apesar de serem maioria populacional, negros e pardos ocupam consideravelmente menos cadeiras universitárias, bem como menos posições de destaque no mercado de trabalho, seja no âmbito público ou privado.

                        A conclusão em decorrência disso foi de que embora a disputa usual pelos bens de vagas nas faculdades e cargos públicos fosse de cunho universalista, obstáculos históricos arbitrários estariam impedindo uma disputa mais igualitária, afinal, tem mais chances de ganhar a corrida quem começar na frente ou simplesmente não tiver obstáculos arbitrários, aqui entendidos como fatores negativos externos ao controle do indivíduo, não relacionados a mérito ou conquista pessoal.

                        Daí porque a problemática da reflexão circunda a possibilidade de conceder um tratamento distinto para facilitar condições de um determinado grupo, com a pretensão de promover justiça distributiva mediante realização do princípio da igualdade em sua plenitude.

                        Conceder vantagens e facilitar as condições dos negros e pardos em vestibulares e em concursos públicos, em prejuízo dos não-negros e pardos seria justo do ponto de vista da justiça distributiva idealizada por Rawls?

                        No que nos interessa, anotemos que na construção do significado constitucional do princípio da igualdade, o Tribunal discorreu contrastando-o em seus aspectos formal e material, assentando que o enunciado “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” inscrito no caput do art. 5º da Constituição Federal encontraria suas raízes ideológicas liberais na Declaração do Homem e do Cidadão francesa de 1789 e destinar-se-ia ao Estado, proibindo-o de promover quaisquer distinções entre os indivíduos.

                        Considerou, ainda, que a evolução conceitual de equanimidade alargou a compreensão de que a igualdade deveria ser garantida apenas sob a perspectiva formal (universalista), ou seja, tratamento igual perante a lei, passando a admitir a possibilidade de diferenciação no tratamento aos indivíduos levando em consideração diferenças de “razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais[2]”.

                        Era necessário dar aos desiguais tratamentos desiguais no contexto de suas desigualdades para igualar, tanto quanto possível, condições de competição pelos bens sociais escassos.

                        Assim, atenderiam ao princípio da igualdade tanto políticas públicas de cunho universalista, quanto ações afirmativas formuladas para “grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares[3].

                        Tal investida integraria a própria concepção de democracia na medida em que todos têm direito de ser diferentes, quando diferenciados são por suas características “desde que essa diferença não produza, alimente ou reproduza as desigualdades[4]” indesejadas.

                        Nos casos concretos, partiu-se do pressuposto histórico-político-sociológico aceito segundo o qual os negros e pardos foram prejudicados e marginalizados do processo de ascensão social e disputa por bens sociais pelos grupos dominantes, especialmente brancos e imigrantes[5].

                        Daí porque o importante aos olhos da Corte Constitucional seria converter o direito em uma possibilidade de equiparar, tanto quanto possível, o ponto de partida, objetivando uma competição mais equitativa pelos bens sociais, na medida em que colocar todos no mesmo ponto de partida na competição pelos bens escassos realizaria e concretizaria, em vez de afrontar, o princípio da igualdade e a justiça social.

                        Na leitura do Supremo, a Carta Federal, além de ter consagrado o princípio da igualdade material e a justiça distributiva, teria previsto diversos mecanismos para concretizá-los, entre os quais a ações afirmativas, cujo conceito estaria bem definido no art. 2º, II, da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968.

                        Esse tratado internacional define ações afirmativas como sendo “(...) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.”

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                        Traçando uma breve história das ações afirmativas ao redor do mundo, o STF recordou que esse tipo de política pública nasceu na Índia, país que há séculos vivencia uma sociedade drasticamente dividida em castas étnico-raciais e que em 1935, foi Mahatma Ghandi, patrono da independência daquele país, o primeiro a lograr êxito numa política de ação afirmativa com o Governmente of India Act.

                        Já no contexto nacional, o Tribunal entendeu que a Constituição equilibrara a igualdade de acesso, a pluralidade de ideias e gestão democrática com a necessidade de se evidenciar mérito para os níveis mais altos de educação, pesquisa e artes, daí porque não faria sentido examinar a meritocracia segundo uma ótica linear, sem considerar vantagens e desvantagens já percebidas pelos variados grupos. Considerar e neutralizar eventuais desvantagens iniciais por parte de determinados grupos em face de vantagens de outros grupos seria condição necessária para promover o princípio da igualdade em sua forma material.

                        A igualação ou desigualação positiva evidenciar-se-ia, portanto, como necessária diante de uma realidade social que revela disparidade acentuada sócio-econômica entre negros e brancos, com clara vantagem dos brancos em relação aos negros na distribuição de bens sociais como educação, moradia, emprego, prestígio profissional e renda.

                        Daí porque além da quota parte de bens sociais, realizar a igualdade exigiria reconhecimento, o que não poderia ser feito somente no campo das políticas universalistas, reforçando o argumento em favor da adoção de ações afirmativas.

                        Promover ações afirmativas de inclusão social do negro seria mais do que dar-lhes uma distribuição mais equitativa de bens sociais, seria uma forma de reconhecer sua contribuição para a sociedade, o que auxiliaria reverter “uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva[6]” cunhada pela história, compensando e corrigindo erros do passado.

                        Houve, pois, entre os Ministros dos dois casos, consenso de que a igualdade em sua substancialidade só pode ser discutida e bosquejada se respeitar-se as desigualdades dos desiguais dentro do contexto de suas desigualdades, é dizer, na busca pela igualdade material é necessário desigualar os tratamentos para igualar o ponto de partida na luta pelos bens em disputa.

                        Concordamos com o Supremo quanto à compatibilidade do critério racial adotado nas ações afirmativas de inclusão de grupo qualitativamente minoritário com o princípio da igualdade, além disso concordamos com a compatibilidade desse critério com o ordenamento constitucional pátrio.

                        Do ponto de vista jurisdicional, nada a criticar a decisão do STF, afinal, sua função não é promover justiça social, independente da perspectiva doutrinária ou pessoal de cada membro. Sua função institucional é interpretar as normas e casos concretos com base na Constituição elaborada pelos representantes do povo e julgar a adequabilidade do trabalho legislativo dos representantes do povo a esses ideais.

                        Decisões legislativas ineficazes, ineficientes ou mesmo resultados frustrantes advindos de políticas públicas inexitosas não podem ser creditadas ao Tribunal. Entretanto, sob o ponto de vista da justiça social rawlsiniana, acreditamos que as discussões travadas nos casos passaram a largo de questões importantes para uma melhor solução.

                       

III. Justiça distributiva de Johwn Rawls

                        Antes de falarmos sobre a justiça distributiva de John Rawls e sua contribuição para a temática, parece-nos oportuno situar o debate sob a ótica proposta com o intuito de justificar este incurso.

                        Em obra intitulada Uma breve história da justiça distributiva, Samuel Fleischacker (2006), ao resgatar a evolução histórica do conceito de justiça distributiva e suas ideias contextualizadas dentro de seus tempos, destaca que Rawls teria sido o pensador de maior influência sobre o tema até o momento. Falar seriamente sobre justiça distributiva, para Fleischacker, requer utilizar o trabalho de Rawls ou justificar por que não o está utilizando, dada a importância de sua colaboração para os estudos sobre a questão[7].

                        Em prefácio à obra de Roberto Gargarella (2008), Eduardo Appio afirma que os trabalhos de Rawls “representaram um verdadeiro divisor de águas na história do pensamento contemporâneo[8].

                        Comunga da mesma crença, Michael Sandel (2011), para quem a teoria de justiça de Rawls “representa a proposta mais convincente de uma sociedade equânime já produzida pela filosofia política americana[9]”.

                        O próprio Min. Lewandowski, relator da ADPF 186 (2014) que poderia ser tida como o leading case sobre o debate no Brasil, registrou que sua visão de justiça distributiva era influenciada pelos ensinamentos de Rawls.

                        Esses apontamentos permitem estabelecer uma relevância do marco teórico com a problemática dos casos concretos e o debate proposto, mas para melhor entendermos a contribuição de Rawls, pensamos que também é necessário situá-la do ponto de vista teórico-ideológico.

                        Com efeito, Rawls é um liberalista fortemente influenciado por John Locke, cujo liberalismo político encontra origem no liberalismo econômico. Entre as ideias de Locke que mais influenciaram os trabalhos de Rawls, podemos destacar: a crença de que todas as pessoas nascem iguais, com direito a algumas liberdades mais importantes inalienáveis, que o governo tem o dever de respeitar essas liberdades e tolerar o culto de religiões diversas e que, acima de tudo, o poder político deve ser exercido para o bem comum[10].

                        Isso significa dizer que uma análise das ações afirmativas com base na teoria de justiça distributiva de Rawls é essencialmente uma análise político-econômica das políticas públicas, não político-jurídica, daí porque esse debate interessa mais a políticos e legisladores do que juristas e juízes.

                        Na introdução deste ensaio afirmamos que no debate dos casos, os Ministros teriam passado a largo de uma discussão importante para a utilização da doutrina de Rawls como teoria filosófica justificadora pró-ações afirmativas e essa discussão é efetivamente a discussão sobre o direito de propriedade que tangencia o caso.

                        O direito à propriedade é possivelmente o direito mais importante para a economia, já que a propriedade é o elemento fundante e propulsor da economia. Retomaremos este ponto logo adiante ao refletirmos sobre o custo das ações afirmativas para os contribuintes e os possíveis resultados do sacrifício imposto a cada cidadão.

                        Por ora, anote-se que a teoria contratual de Rawls, inicialmente publicada em 1971, destinava contrapor-se ao utilitarismo já que essa outra doutrina liberal não considerava a qualidade das demandas, mas apenas sua quantidade; é justo o que for melhor para a maior parte das pessoas, mesmo que às custas de minorias.

                        A posição de Rawls é de que no liberalismo democrático, alguns direitos e liberdades são mais importantes que outros e são imprescindíveis para um ideal moral de pessoas livres e iguais[11].

                        Rawls sustenta que algumas demandas seriam mais importantes qualitativamente do que outras e que não parecia ser justo que alguém, quem quer que fosse, viesse a ter que sofrer prejuízo individual em benefício do interesse coletivo. Ele trabalha com um conceito rousseauniano de democracica como um arranjo político em que cidadãos podem deliberar com igualdade de valor sobre justiça e bem comum[12].

                        O contrato hipotético de Rawls reflete, assim, um tipo de acordo que as pessoas firmariam diante de certas condições ideais, respeitando-se a todos como livres e iguais. Essa é a principal crítica de Rawls ao utilitarismo, ao mesmo tempo que este é o principal motivo pelo qual sua visão é útil e legítima para nossa pretensão.

                        Em sua concepção contratualista, o único contrato social que poderia atender com racionalidade os critérios de justiça, seria um contrato hipotético ideal em que as pessoas estivessem numa mesma posição original, cobertas por um véu de ignorância[13].

              Para Rawls, a justiça não pode ser alcançada em nome da maioria, se, para isso, se tiver que sacrificar algum direito ou garantia de uma minoria, ainda que de uma única pessoa.

              A natureza não é justa ou injusta na distribuição de bens e talentos naturais, o que é justo ou injusto é o comportamento das instituições na distribuição dos bens sociais produzidos pela cooperação de todos, por isso a justiça, a qual considera a principal virtude numa sociedade, está intrinsecamente ligada com a questão da distribuição de bens sociais que são moderadamente escassos e não podem atender a todos os desejos que são infinitos.  

“(...) o objeto principal da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou, mais precisamente, o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social.”[14]

 

                        Seu esforço teórico pretende demonstrar quais seriam os princípios de justiça que poderiam ser aplicados universalmente, e quais as justificativas para que princípios sejam escolhidos pelas pessoas individualmente, como aquele conjunto de valores que representaria a maneira mais justa de dividir e compartilhar os bens sociais que são “produzidos” e “cultivados” pela cooperação de todos, mas que beneficiam uns e outros em maior e menor grau, pelas mais variadas razões.

                        Como sua ideia não é atender ao problema da justiça do ponto de vista individual, mas universal dentro da sociedade, é preciso arrumar um ponto inicial em que se possa colocar em situação de equidade, pessoas que tenham alguma identidade de interesses, mas também por isso, tenham conflitos de interesses.

                        Insere-se o sujeito  numa situação hipotética, amplamente aceita por todos dentro de uma dada sociedade em que os sujeitos reconhecem que: 1.) existem diferenças de todas as naturezas entre si; 2.) é melhor viver em coletividade do que individualmente, no sentido de que em grupo, os bens sociais são em maior quantidade e qualidade do que individualmente; 3.) os bens sociais por todos almejados são moderadamente escassos.

“A ideia intuitiva da justiça como equidade consiste em pensar os princípios fundamentais de justiça como constituindo, eles mesmos, o objeto de um acordo original em uma situação inicial adequadamente definida. Esses princípios são os que as pessoas racionais interessadas em promover seus interesses aceitariam nessa situação de igualdade para estabelecer os termos básicos de sua associação.”[15]

 

                        Reconhece-se a identidade de interesses dentro da cooperação social para que se alcance uma vida melhor em grupo do que qualquer indivíduo por conta própria. Por outro lado, também se reconhece conflitos de interesses na medida em que todos buscam para si uma maior porção dos benefícios decorrentes da cooperação social.

                        A posição original serve de ponto de partida comum para que, num equilíbrio reflexivo, se escolha quais princípios de justiça serão utilizados dentre os arranjos sociais disponíveis e que se prezem a distribuir os bens sociais.

                        Na posição original presume-se que todos conhecem as circunstâncias da justiça, assim entendidas como “as condições de fundo que dão origem às necessidades[16]” individuais e que todos tentam, à sua maneira alcançar sua quota parte de satisfação de necessidades, sem que existam laços morais prévios entre si.

                        As pessoas são desinteressadas umas nas outras, de modo que a cada um apenas importa os seus interesses na busca dos benefícios da cooperação social, sendo que as pessoas não fazem sacrifícios próprios em benefícios de terceiros, mas tão somente buscam a satisfação de seus anseios individuais.

                        Contudo, a posição original por si só não resolve o problema da escolha dos critérios, a menos que nessa posição hipotética os indivíduos estejam cobertos por um véu de ignorância.

                        Este véu, outro elemento hipotético, permite que o indivíduo saiba das circunstâncias de justiça, mas não saiba qual é seu real posicionamento dentro do sistema. Como os indivíduos não têm conhecimento de sua condição individual, eles se guiariam pela regra maximin, segundo a qual, cada indivíduo imagina o pior cenário possível e qual seria a melhor solução dentro de todas as piores[17].

                        O ser reflexivo é forçado a imaginar que, como não sabe qual sua real situação dentro do sistema, deve priorizar aqueles princípios que permitam a igualdade de oportunidade, em detrimento daqueles que se prestem a beneficiar fatores diferenciais que só são controlados pela natureza ou loteria natural, portanto, fatores moralmente arbitrários.

                        Por exemplo, se o indivíduo soubesse que era dotado intelectualmente, estaria inclinado a escolher princípios que atendessem essa particularidade, criando benefícios resultantes do esforço coletivo para distribuir àqueles dotados de intelecto. Porém, como não sabe se é inteligente e existe a possibilidade de que não tenha sido naturalmente dotado de inteligência, é levado, ao considerar os princípios de justiça, a contemplar também os não-inteligentes, pois, caso seja um deles, não será prejudicado com o arranjo social.

“Presume-se, então, que as partes não conhecem certas particularidades. Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é seu lugar na sociedade, nem classe, nem status social; além disso, ninguém conhece a própria sorte na distribuição dos dotes e capacidades naturais, sua inteligência e força e assim por diante. Ninguém conhece também a própria concepção do bem, as particularidades de seu projeto racional de vida, nem mesmo as características especiais de sua psicologia, como sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou pessimismo. (...) não conhecem a posição econômica ou política, nem o nível de civilização e cultura que essa sociedade conseguiu alcançar.[18]

             

                        Esse posicionamento hipotético, tido como justo e aceito por todos, força uma espécie de fair play reflexiva, pois não se sabe em que posição está, de modo que, pela cautela, busca-se princípios genéricos que atendam a todos e que possam maximizar suas chances – independente do lugar ocupe -, sem beneficiar um ou outro em específico e que, portanto, devem se aplicar a todos indistintamente.

                        A conclusão de Rawls é que a posição original encoberta pelo véu da ignorância leva o ser reflexivo a escolher dois princípios da Justiça.

“Como não é razoável que ela espere mais do que uma parte igual na divisão dos bens primários sociais, e como também não é racional que ela concorde com menos do que isso, o sensato é reconhecer, como primeiro passo, um princípio de justiça que exija uma distribuição igual.

Na verdade, esse princípio é tão óbvio em vista da simetria das partes, que ocorreria imediatamente a qualquer pessoa. Assim, as partes partem de um princípio que requere iguais liberdades fundamentais para todos, bem como uma igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igualitária de renda e riqueza.”[19]

 

                        É claro que o sistema não ignora o fato de que haverá diferenças independentemente de uma tentativa de equiparar as pessoas, mas algumas coisas devem ser rigorosamente sempre iguais. E o que deve ser igual para todos indistintamente sempre?

                        Rawls responde: liberdades básicas.

“Dentre elas, têm importância a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão e a mutilação (integridade da pessoa); o direito à propriedade pessoal e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, segundo o conceito de Estado de Direito. O primeiro princípio estabelece que essas liberdades devem ser iguais.”[20]

 

                        Para ele, as liberdades fazem parte de uma doutrina liberal em que pessoas livres e autônomas desenvolvem suas capacidades e moldam suas vidas em busca de felicidade própria. [21].

                        Esse é o princípio da igualdade segundo a teoria de Rawls é dizer, o conjunto de liberdades da menor minoria, deve ser igual ao conjunto de liberdades da maioria mais dominante, em que todos tenham, em condições de igualdade, possibilidade de deliberar sobre justiça e bem comum, não sendo admitido o sacrifício de liberdades individuais de uma única pessoa da minoria, ainda que em benefício de uma grande maioria[22].   

“Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso, a justiça nega que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a poucos sejam contrabalanceados pelo número maior de vantagens de que desfrutam muitos. Por conseguinte, na sociedade justa, as liberdades da cidadania igual são consideradas irrevogáveis; os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo de interesses sociais.”[23]

 

                        O segundo princípio ao qual Rawls acredita que sua teoria conduz é o “princípio da diferença”. Esse princípio está ligado à distribuição de renda e riqueza, cargos, prestígio, responsabilidade e autoridade.

“O segundo princípio exige que todos se beneficiem das desigualdades permissíveis na estrutura básica. Isso significa que deve ser razoável para cada indivíduo representativo relevante definido por essa estrutura, quando cada qual a considera um empreendimento bem-sucedido, preferir suas perspectivas com a desigualdade a suas perspectivas sem ela.”[24]

 

                        O princípio da diferença prega que nas diferenças na distribuição desses bens sociais – dinheiro, prestígio, cargos, etc – os indivíduos apenas aceitariam receber menos de um determinado bem social quando essa diferenciação favorecesse a situação de todos, sobretudo e especialmente, daqueles que foram naturalmente desprivilegiados, os desafortunados pela loteria natural.

                        Para Rawls, os dois princípios expressam as ideias igualitárias do liberalismo porque há garantia do valor equitativo das liberdades políticas, viabilizam igualdade equitativa de oportunidades e permitem reverter as desigualdades em benefícios dos membros menos privilegiados da sociedade[25].

                        Daí porque ao citar Rawls em seu voto, Min Lewandowski consignou que

“As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) considerada como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e, (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.[26]

 

                        Podemos extrair, portanto, que os limites morais do contrato social hipotético de Rawls, baseado nos princípios da igualdade e da diferença, são consentimento e reciprocidade.

                        Porém, esses dois elementos não são autossuficientes, quer dizer, não é apenas concordar ou se beneficiar de um acordo que o torna justo, é necessária uma espécie de sinergia e conjugação desses dois elementos, já que apenas um dos elementos, em uma dada situação não é suficiente para garantir equidade[27].

                        Imaginemos uma criança que aceite trocar com um adulto sua bicicleta por 5 pacotinhos de figurinhas para Copa do Mundo. Parece razoável? Não é difícil perceber que o consentimento no contrato, mesmo que espontâneo, não é suficiente para torná-lo justo.

                        Noutro sentido, imaginemos que uma pessoa estacione seu carro numa vaga pública próximo a uma zona comercial e vá a uma loja. Quando volta ao estacionamento, encontra seu carro lavado e um sujeito cobrando o valor do serviço, sem que nada tenho sido acertado.

                        Naturalmente há benefício de quem teve o carro lavado, mas a falta de consentimento nesse exemplo serve para demonstrar que tampouco apenas o benefício serve de elemento moral suficiente para tornar o contrato justo e equitativo, é necessário equilibrar os dois.

 

IV. ADPF 186 ≠ ADC 41    

                        Passemos agora aos casos concretos. Como já dito, discordamos do STF e acreditamos que a ADPF 186 e a ADC 41 são casos diferentes porque os bens sociais em disputa são diferentes. Enquanto a ADPF versa sobre educação, a ADC versa sobre renda.

                        A diferença entre os bens sociais implica em diferenças no plano da capacidade das ações afirmativas enfrentarem o problema e em diferenças em termos da relação custo/benefício ou sacrifício/possibilidade-de-resultado das políticas públicas, logo, há diferenças quanto à possibilidade de satisfazerem os princípios da igualdade e diferença, bem como na relação consentimento e reciprocidade do contrato social no contexto dessas ações afirmativas.

                        Enquanto na ADPF o bem social a ser disputado através dos exames de vestibular é a educação, parece-nos que o bem social em disputa nos concursos públicos é a renda. Estabeleçamos, portanto, que o problema enfrentado nos dois casos é o mesmo – necessidade de inclusão social de negros e pardos -, mas os bens sociais em disputa são diferentes.

                        Ao passo que ser admitido numa faculdade presume-se que o indivíduo receberá educação, ao ser aprovado em concurso público, presume-se que a conquista traduzir-se-á em renda. A relevância desse apontamento está na possibilidade de resultado sistêmico possivelmente advindo do sacrifício exigido em cada caso e as relações de consentimento e reciprocidade em cada uma das trocas.

                        Perceba que tanto em vagas em universidades públicas quanto vagas em concurso público há um contrato social subjacente em que todos os contribuintes sofrem mitigações em seu direito de propriedade, e são, no mundo real, coagidos ou obrigados e darem parte de seu esforço coletivo em benefício de outrem, supostamente prejudicado na loteria natural da vida.

                        No mundo real ou num contrato é perfeitamente possível que qualquer pessoa em uma determinada situação não queira contribuir com o bem coletivo e prefira gozar sozinho dos frutos de seu esforço e desenvolvimento de seus talentos individuais.

                        Entretanto, no campo da hipótese, que é onde se situa a teoria de Rawls, colocados na posição original e cobertos pelo véu da ignorância, é possível encontrarmos um equilíbrio entre o consentimento e reciprocidade na mitigação de direitos econômicos individuais com base em critérios raciais para a inclusão de indivíduos menos afortunados.

                        Porém, é importante saber que nem toda a mitigação do direito de propriedade em prol de indivíduos menos afortunados será justo, mas apenas aquelas em que houver o equilíbrio entre consentimento e reciprocidade.

                        Fundamos nosso posicionamento em 3 argumentos principais a seguir delineados.

Educação é um bem social estruturante.

                        Esse argumento está ligado com ambos os princípios (da igualdade e da diferença) e certamente seria endossado por Rawls já que ele entende que educação com igualdade de oportunidade para todos seria um dos requisitos institucionais impostos pelo conceito de “fair equality of oportunity” ou igualdade de oportunidade justa (tradução nossa)[28].

                        Ainda que os bens dos casos concretos possam ser materializados em vagas (vagas na faculdade ou no serviço público), na faculdade o indivíduo aprenderá uma profissão que lhe permitirá disputar um espaço no mercado de trabalho em melhor condição ou em igualdade de condição com outros candidatos, contudo, no caso do concurso público, o candidato aprovado terá renda advinda do exercício do cargo ocupado.

                        Em nossa percepção, a educação é um bem social estruturante, por isso é o bem que melhor permite ascensão social e melhor combate a desigualdade social, pois, uma vez formado, não há como se perder a educação adquirida e o indivíduo se qualifica a exercer uma série de possibilidades profissionais, mesmo que não no curso específico em que venha a estudar.

                        Já a renda, embora permita ascensão social, não nos parece um bem social estruturante, mas apenas circunstancial. No caso dos concursos, o indivíduo aprovado em um concurso público não está qualificado para exercer possibilidades outras senão aqueles atreladas ao cargo em que for admitido. Sob esse prisma, a renda não abre um feixe de possibilidades profissionais, mas apenas aquela em específico, limitando, por assim dizer, a capacidade desse bem social enfrentar o problema da discriminação racial, logo, uma parcela menor de reciprocidade.

                        A estruturalidade ou circunstacialidade está, em nosso ver, na (im)possibilidade de se perder o bem social conquistado. Adere à estrutura da pessoa aquele bem social que não lhe pode ser tomado, por sua vez, é circunstancial aquele bem social que pode ser tomado a depender das circunstâncias.

                        Ao passo que a educação não pode ser subtraída de alguém, se por qualquer motivo o concursado for afastado do serviço público, o indivíduo perde o bem social que lhe foi dado (renda). Logo, no campo da potencialidade da posição (detentor de diploma universitário ou empregado público) o bem social educação parece-nos ultrapassar em nível de importância para resolução do problema da desigualdade racial.

                        Ainda, é possível estabelecer, mesmo que intuitivamente, que países em que há maior investimento em educação, há melhores índices de qualidade de vida do que em países em que há investimento em melhor distribuição de renda através da contratação de empregados públicos.

                       

A diversidade racial é um fator mais importante na educação do que na burocracia estatal.

                        Esse argumento está mais conectado com o princípio da igualdade do que com o princípio da diferença e é melhor compreendido através de um exemplo.

                        Suponhamos que qualquer indivíduo chegue a um setor de emergência de um hospital com uma necessidade médica grave. Seria razoável imaginar que esse indivíduo, qualquer que o fosse, escolheria ser atendido por um médico que tivesse passado por um crivo técnico-avaliativo menos rigoroso, ao invés de um médico que fora submetido a avaliações técnicas mais rigorosas?

                        A ligação dessa hipótese com o princípio da igualdade encontra-se no fato de que o princípio impede que qualquer pessoa admita sofrer prejuízo em nome de um bem comum. Nesse caso do exemplo, parece-nos que não seria justo nem desejável sob a perspectiva da igualdade rawlsiniana que ninguém aceite ser atendido por um médico, ainda que apenas em tese, menos preparado do que outro, logo, pouco ou nenhum consentimento.

                        Entretanto, no âmbito das universidades, tanto os outros alunos que não foram admitidos pelo sistema de cotas, quanto os indivíduos que nem foram à faculdade se beneficiariam com um prospecto de melhores líderes formados nos centros de ensino.

                        Além disso, mesmo que subsidiariamente, também é possível estabelecer uma ligação da assertiva com o princípio da diferença na medida em que em alguns empregos públicos o ganho sistêmico geral seria menor caso fossem admitidos empregados públicos com avaliações técnicas menos criteriosas. Avaliações técnicas menos rigorosas podem levar a empregados públicos menos preparados, o que seria em prejuízo de toda a população; pouca reciprocidade e nenhum consentimento.

                        É certo, porém, que se não se pode afirmar que a diversidade burocrática seja sempre beneficente ao resto da população em todos os cargos, algumas posições poderiam resultar em um ganho sistêmico maior à coletividade do que admissão baseada apenas em critério meritório de escore em prova pública, como no caso de diplomacia ou mesmo cargos político-eletivos.

                        Pensamos que o corpo diplomático ou parlamentar de um país que não espelhe, mesmo que parcialmente, o povo que representa, proporciona um ganho sistêmico geral menor para uma dada sociedade do que aquele que bem espelhe a composição de seu povo, logo, admitimos que em algumas posições e alguns concursos públicos a cota racial como critério de admissão poderia atender o princípio da diferença, mas não em todos os cargos e concursos indistintamente.

                        A diversidade burocrática no serviço público indistintamente, quer dizer, em todo e qualquer cargo público, parece-nos estar mais afinado com o argumento de natureza compensatória das ações afirmativas[29].

                        Embora aceitemos a natureza compensatória das ações afirmativas, pensamos que o argumento compensatório pró-ações afirmativas seria o mais fraco deles, pois sob a perspectiva compensatória é muito difícil estabelecer relações sobre quem individualmente deveria pagar ou sofrer as consequências decorrentes de males feitos por gerações anteriores.

                        No outro lado da mesma moeda, é muito difícil estabelecer, dentro dos critérios rawlsinianos, quem personificaria o beneficiário da compensação, quer dizer, quem deveria ser agraciado - o escolhido - com a ação afirmativa em nome de quem.

 

Universidades são centros formadores de líderes, serviço público não.

                        Existe algum consenso quanto ao fato de que as universidades, especialmente as universidades federais, na experiência brasileira, são celeiros de formação dos líderes e da elite da sociedade. Esse consenso foi, inclusive, externado no acórdão da ADPF 186.

                        Considerando que a diversidade dos universitários contribui para uma formação de um melhor corpo crítico, tem-se que incluir mais negros e pardos no corpo universitário não apenas serviria melhor às instituições de ensino, mas também à massa crítica da instituição que formaria líderes melhores preparados, o que serviria não só à sociedade em geral como também àquelas pessoas menos dotadas dos talentos naturais nessa disputa. Assim, a diversidade racial nas faculdades beneficiaria os outros alunos (que não entraram por cotas), assim como os indivíduos que não tiveram oportunidade de frequentar a universidade. Há aqui reciprocidade no contrato.

                        Acreditamos que na experiência brasileira não se pode dizer que o serviço público em geral é um celeiro ou centro formador de líderes. Obviamente, admitimos que existem muitos líderes dentro do serviço público e que muitos indivíduos, através da sua liderança e posição no serviço público, conseguem influenciar positivamente a vida de outros indivíduos.

                        Mas, no Brasil, apenas nos últimos 30 anos surgiu a figura do concurso público para desempenho dos serviços públicos. Antes disso, os cargos e funções públicas eram exercidos por indicações políticas e amigos do rei, ou seja, durante a maior parte da história do Brasil não havia qualquer relação de inteligência, liderança ou mesmo mérito associado aos empregados e servidores públicos em geral. Daí porque se poderia dizer que não existe uma narrativa histórico-política do serviço público brasileiro como formador de líderes.

                        Absolutamente não endossamos o mito social pejorativo brasileiro segundo o qual funcionários públicos são acomodados e preguiçosos, mas somos forçados a reconhecer que existe uma narrativa dessa natureza que influenciou e continua influenciando o coletivo imaginário popular acerca da capacidade e eficiência do serviço público.

                        Daí porque o argumento da preparação de líderes e o benefício da sociedade em geral em incluir negros e pardos no ensino superior pelos motivos expostos parece-nos atender o princípio da diferença elaborado por Rawls de uma maneira que os empregos públicos não conseguem.

 

V. Considerações finais

                        O presente artigo examinou dois casos concretos julgados pelo STF acerca do princípio da igualdade e da constitucionalidade de ações afirmativas de cunho racial destinadas a combater a desigualdade social e a discriminação racial que tem histórico e sistematicamente marginalizado negros e pardos da disputa pelos bens sociais escassos, porém desejados, na busca pela felicidade própria de cada um.

                        Não nos propusemos a fazer uma análise jurídico-constitucional dos acórdãos, mas sim uma análise político-filosófica sob a perspectiva da doutrina de Rawls; daí porque pensamos que nosso texto tem maior serventia à legisladores do que a juízes, por assim dizer.

                        Ao verificar o significado empregado pela Corte Constitucional ao princípio da igualdade, concluímos que conquanto cotas raciais possam ser utilizadas como critérios de desigualação justificada a ser praticada em políticas públicas inclusivas sob o ponto de vista constitucional, a justiça social do critério apenas poderá ser verificada se vislumbrada em contexto com a finalidade proposta e o custo global da iniciativa. Pelo menos em tese, a conta deve ser positiva.

            Pensamos que na seara da educação, a ação afirmativa inclusiva atende aos princípios da igualdade e da diferença estabelecidos por Rawls e proporciona um ganho sistêmico geral que a ação afirmativa distribuidora de renda não logra, já que não alcançaria um equilíbrio entre consentimento e reciprocidade da sociedade coberta pelo véu da ignorância, posta na posição original do contrato social.

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