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O quimerismo processual do mandado de segurança individual e a intervenção do Ministério Público

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Agenda 23/05/2018 às 09:40

DA NECESSÁRIA INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL

Antes, porém, de indicar o nosso posicionamento acerca da intervenção do Ministério Público no Mandado de Segurança individual, importa que tracemos, ainda que em linhas superficiais, o papel do Ministério Público no cenário jurídico brasileiro.

Definir qual é o papel do Ministério Público ou mesmo quais são as hipóteses de sua intervenção nas relações processuais é deveras complicado, pois, como bem leciona Calamandrei25, o promotor de justiça vive como um advogado sem paixão e um juiz sem imparcialidade, arriscando-se diuturnamente a perder a generosa combatividade do advogado e a objetividade do julgador, resumindo esse conflito da atuação ministerial as sábias palavras de Uadi Lâmego Bulos, que define o Ministério Público “como sustentáculo da acusação, o Ministério Público deveria ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, deveria ser tão imparcial como um juiz.”26. E nessa agonia de ser a fusão de duas partes antagônicas, de viver sob a navalha de ser apaixonado como uma parte e imparcial como um julgador, o promotor de justiça é chamado a defender o interesse público sob o fio dessas duas espadas: paixão e imparcialidade.

Desta forma, a par dos controvertidos modos de enxergar o Ministério Público, o constituinte especificou, no art. 127 da CF/88, que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, pois o alocou como instituição permanente e essencial à justiça, conferindo-lhe o poder-dever de defender os interesses mais supremos da república brasileira.

Assim, vemos que o Parquet recebeu do povo o dever de proteger esses patrimônios públicos, de modo que sempre que haja ameaça ou violação a eles, deve o Ministério Público agir para que essas ameaças ou violações sejam dissipadas.

Não foi outro o motivo que levou o constituinte a estabelecer no art. 129, II, da CF/88 que o Ministério Público deve promover as medidas necessárias para proteger os direitos assegurados na Constituição e defender os interesses indisponíveis, sobre que esclarece o constitucionalista baiano: “cumpre-lhe defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, além de outros em que a lei considerar imprescindível a sua participação. A indisponibilidade do interesse, seja relativa, seja absoluta, é o prius da atuação do Parquet. Até os interesses individuais, singulares, disponíveis, clássicos etc. sujeitam-se à sua competência, desde que a tutela a pleitear convenha à coletividade. Eis o grande detalhe.(...)”27.

Disso, por óbvio, fica evidente o dever de agir do Ministério Público sempre que os interesses em disputa sejam qualificados de públicos primários, que equivalem ao bem geral e não necessariamente aos interesses da Administração Pública, ou que mesmo particulares os interesses, estes envolvam uma certa coletividade.

Em consonância com essas nobres funções constitucionais, a Lei Orgânica do Ministério Público, em seu art. 25, V, estabeleceu que compete ao Ministério Público manifestar-se nos processos em que sua presença seja obrigatória por lei e, ainda, sempre que cabível a intervenção, para assegurar o exercício de suas funções institucionais, não importando a fase ou grau de jurisdição em que se encontrem os processos.

Observamos que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se formou no sentido de que a intervenção do Ministério Público nas ações de Mandado de Segurança, em que pese prevista na legislação específica, pode ser considerada desnecessária sempre que inexistir interesse público que justifique a sua participação, como se lê exemplificativamente no aresto abaixo:

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. NULIDADE CARACTERIZADA. ART. 10 DA LEI 1.533/1951.

1. Nos termos do art. 10 da Lei 1.533/1951, em Mandado de Segurança, sob pena de nulidade insanável do processo, é obrigatória a intimação do Ministério Público, cabendo-lhe, no caso concreto, verificar a existência de interesse público que justifique a sua intervenção como fiscal da lei.

2. Recurso Especial provido.

(REsp 602.849/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/11/2007, DJe 11/11/2009)

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Entretanto, não concordamos com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Como demonstramos anteriormente, na ação de Mandado de Segurança há sempre o direito líquido e certo subjetivo público de o impetrante controlar os atos administrativos sempre que eles possam ser ilegais ou abusivos. Noutras palavras, admitir que o Mandado de Segurança se destina a controlar os atos administrativos praticados por autoridades públicas em violação à normatividade ou à juridicidade, significa ao fim e ao cabo admitir que poderemos estar diante atos de improbidades administrativas, de sorte que o interesse público aí transborda à ideia minimalista do interesse da Fazenda Pública e ganha os contornos necessários ao interesse que justifica sempre a intervenção do Ministério Público nas Ações de Mandados de Segurança individuais, pois a indisponibilidade do interesse aqui é o prius da atuação do Parquet.


CONCLUSÃO

Depois dessa breve explanação, podemos concluir que o Mandado de Segurança está inserido no Título dos direitos e garantias fundamentais da ordem jurídica brasileira, de modo que ele é a um só tempo direito e garantia fundamental.

E essa visão exige reflexão e revisão de vários temas afetos ao Mandado de Segurança, especialmente no que concerne aos interesses tutelados na ação, apurando-se, inclusive, na gênese do Mandado de Segurança individual a existência de interesses coletivos e públicos que lhes dá a pseudo-impressão de ser ele individual, quando, na verdade, por força de um “quimerismo” processual, ele é coletivo.

Como a doutrina clássica define a coletividade ou a individualidade do Mandado de Segurança, como limite subjetivo da demanda, examinando os interesses particulares postos a apreciação do Judiciário, vê-se que o interesse coletivo stricto sensu público existente que dará ao Mandado de Segurança sempre o efeito ultra partes, consequente da supremacia do interesse público no controle exclusivo do ato administrativo, acabou sendo esquecido, permanecendo nele de forma latente.

A partir, então, dessas constatações não temos mais como ver e estudar o Mandado de Segurança sob o mesmo prisma e forma com que se estudou até hoje, precisamos estudar e melhor difundir essa capacidade coletivizada de sua finalidade, dissolvendo a ideia mal concebida e dissolvida no consciente social do tempo em que a Administração Pública tinha um ato seu anulado pelo Judiciário e ficava com essa decisão adstrita exclusivamente àquele processo.

Noutras palavras, há o direito subjetivo privado do impetrante, como efeito da sua relação individual com a Administração Pública, e há o controle do ato impugnado, como consequência do direito subjetivo público de toda a sociedade. Assim, conceder a segurança pela existência do direito do impetrante e controlar a ilegalidade ou abusividade do ato impugnado geram implicações distintas nos limites da decisão judicial. O que ficará limitado entre as partes é o direito do impetrante, e não o controle do ato impugnado.

O controle do ato impugnado, porque do ato em sua especificidade, não pode ser limitado à subjetividade da demanda, pois é ilógico que um ato seja e não seja, a um só tempo, válido e inválido. A variante é binária, ou o ato é legal ou não é. Exatamente por isso, o controle do ato não se limita à subjetividade do direito líquido e certo subjetivo privado ou particularizado, vai sempre além, o que desvela a sua capacidade de tutelar direitos subjetivos públicos indisponíveis.

Foi deveras importante estremar direito líquido e certo subjetivo privado (particularizado) e público, como duas faces de um mesmo espelho côncavo, pois de um lado se reflete uma imagem menor, referente ao interesse particular do impetrante e, do outro, outra bem distinta e maior, representativa do interesse público indisponível tutelado no Mandado de Segurança. A partir disso, fincamos o limite subjetivo não do Mandado de Segurança em sua objetividade, mas da segurança do direito do impetrante em sua subjetividade privada.

Assim, podemos finalizar no sentido de que o interesse público aí transborda à ideia minimalista do interesse da Fazenda Pública e do impetrante e ganha os contornos necessários ao interesse público que justifica sempre a intervenção obrigatória do Ministério Público nas Ações de Mandados de Segurança individuais, pois a indisponibilidade do interesse aqui é a pedra fundamental da atuação do Parquet.


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Sobre o autor
Alessandro Samartin de Gouveia

Promotor de Justiça do Estado do Amazonas. Possui graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (2004). Pós-graduado em nível de Especialização em Direito Processual pela ESAMC/ESMAL(2006). Formação complementar em política e gestão da saúde público para o MP - 2016 - pela ENSP/FIOCRUZ. Pós-graduando em prevenção e repressão à corrupção: aspectos teóricos e práticos, em nível de especialização (2017/2018), pela ESTÁCIO/CERS. Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: súmula vinculante, separação dos poderes, mandado de segurança, controle de constitucionalidade e auto de infração de trânsito. http://orcid.org/0000-0003-2127-4935

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Alessandro Samartin. O quimerismo processual do mandado de segurança individual e a intervenção do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5439, 23 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65781. Acesso em: 25 dez. 2024.

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