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O quimerismo processual do mandado de segurança individual e a intervenção do Ministério Público

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Agenda 23/05/2018 às 09:40

DOS DIREITOS LÍQUIDOS E CERTOS SUBJETIVO PRIVADO OU PARTICULARIZADO E SUBJETIVO PÚBLICO

O direito, em sede de Mandado de Segurança, precisa ser líquido e certo, necessário se faz que ele seja de pronto exigível, já esteja liquidado – e não em estágio de latência – sendo certo também o limite relacional dos sujeitos inseridos na relação jurídica material, de modo que saibamos a quem pertençam os direitos, deveres, pretensões, ações e exceções.

Nesse contexto devemos inserir também os estados desse direito, isto é, se tem, teve, terá ou cessou o direito do impetrante, pois esses estados interferem não na certeza, mas na liquidez do direito buscado. A doutrina, todavia, critica a utilização, pelo legislador, da expressão líquido e certo, sob o argumento de que todo direito, quando existente, é sempre líquido e certo.

Nada obstante, mesmo ciente de que talvez fosse necessária uma modificação para estremar certeza, liquidez e exigibilidade – que não foi feita com a nova lei do Mandado de Segurança –, devemos compreender que dentro do conceito de liquidez devemos inserir o de exigibilidade. A liquidez aqui, por conseguinte, serve ao interesse processual. Por exemplo, se o crédito a que tem direito o administrado contra a Administração só será exigível no próximo exercício financeiro não pode ele ingressar com um Mandado de Segurança hoje porque a compensação lhe foi negada agora, falta ao seu direito certo a liquidez (exigibilidade) fundamental17. Logo, nem sempre o direito que existe é líquido e exigível.

É importante que observemos que não é o direito a condição da ação de Mandado de Segurança, mas a certeza e a liquidez. Cassio Scarpinella Bueno, porém, entende de forma diversa, in verbis:

Direito líquido e certo, pois, é condição da ação e não corresponde à existência da ilegalidade ou do abuso de poder mas, apenas e tão-somente, a uma especial forma de demonstração desses vícios que rendem ensejo ao ajuizamento do Mandado de Segurança. Corresponde, pois, à adequação que faz parte do interesse de agir na escolha deste writ como ação própria para os fins descritos na petição inicial. Trata-se, friso, de condição da ação, facultada a repropositura da mesma ação (do mesmo Mandado de Segurança), desde que superados os óbices que levaram à sua extinção ou que a mesma pretensão (o mesmo conflito de interesses) seja levada ao Estado-juiz por outro veículo processual, quando a hipótese reclamar dilação probatória, o que, saliento, é expressamente reconhecido pelo art. 16 da Lei n. 1.533/51.18

Não é o direito a condição da ação, pois se assim o fosse nós cairíamos na problemática vivida pela teoria concretista da ação, isto é, só haveria ação se houvesse o direito. Em verdade, o que constitui a condição dessa ação é a qualidade do direito alegado. Portanto, ousamos discordar das lições do professor supracitado, pois se o Estado-juiz declarar que não há direito, essa decisão fará coisa julgada a ponto de impedir a repropositura da mesma ação. Todavia, se a declaração for no sentido de que, independentemente de existir ou não o direito, o Judiciário declarar que ao direito alegado falta certeza e liquidez, aí sim teremos problema quanto às condições da ação. Nesta última hipótese sim é caso de indeferimento da inicial ou extinção do processo sem resolução de mérito por falta de condição da ação, o que não acontece na primeira situação.

O direito, portanto, deverá ser fruto de normas jurídicas, pois antes de ser subjetivo ele é objetivo, especialmente porque visto como realidade objetiva numa relação intersubjetiva. As normas jurídicas incidem sobre seus suportes fáticos dando ensejo ao surgimento de fatos jurídicos que formarão relações jurídicas posteriormente. Nas relações jurídicas, portanto, figuram os sujeitos ligados por uma relação jurídica básica capaz de correlacionar ao plus que é o direito o minus do dever.19

Portanto, toda a subjetividade de um direito é sempre extraída da objetiva realidade normativa e o direito líquido e certo, como consequencial dessa estrutura normatizada, também deve ser subsumido do ordenamento jurídico. Ou o direito provém de uma norma jurídica ou não atende à liquidez e à certeza exigidas pelo Mandado de Segurança. Neste compasso, leciona Hely Lopes Meirelles que:

Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por Mandado de Segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.20

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Toda a visão trazida acima foi calcada em realidade já exaustivamente estudada pela doutrina quando se tratava de direito líquido e certo do impetrante. Contudo, agora precisamos dar um salto, revisitarmos essas ideias e refletirmos sobre os limites deste requisito do Mandado de Segurança.

O direito líquido e certo possui, então, que natureza jurídica? Esta pergunta nos obriga a refletir sobre esse instituto de forma mais profunda.

Castro Nunes já enxergava a distinção entre dois direitos subjetivos em jogo no Mandado de Segurança, como podemos compreender das lições abaixo:

O Mandado de Segurança supõe um direito violado por ato de autoridade pública. É, portanto, meio de defesa do direito contra o Estado como poder público. (...) o que se resolve pelo Mandado de Segurança é a relação de direito público, definida pelo dever legal da autoridade e pelo direito correlato de se lhe exigir o cumprimento dêsse (sic) dever. Pouco importa que esteja em causa um direito privado, se foi êsse (sic) o direito atingido pela ilegalidade. A qualquer direito, seja de que natureza fôr, pode ferir um excesso de poder da autoridade, por omissão ou comissão, seja êle (sic) real, pessoal ou personalíssimo. A defesa do direito se define, nas relações de direito público, pela defesa contra a ilegalidade funcional do Poder Público. É preciso não perder de vista esse traço fundamental. É pelo direito ao ato praticado na conformidade da lei, o direito à legitimidade do ato como diz MORTARA, que se define o direito subjetivo público.21

Observamos, portanto, que o direito líquido e certo originário da ação de Mandado de Segurança era definido exclusivamente pela sua natureza subjetiva pública, deixando de lado a sua outra face, a de natureza subjetiva privada ou particulariza, gerando grande receio de aplicação pelos Tribunais. Reparamos que o professor supracitado realçava o direito subjetivo público pelo direito ao ato ser praticado na conformidade da lei, mas ele acabava por deixar de lado o direito de natureza privada ou particularizada, o que representava um ponto a ser evoluído e revisto, pois na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello, não podemos imaginar o interesse público como algo não coincidente com a soma dos interesses individuais porque o interesse público é o reflexo somatório dos interesses particulares22.

Já destacamos, no item anterior, que o Mandado de Segurança é direito e garantia, e, por causa disso, somos obrigados a repensar a natureza jurídica do direito líquido e certo do impetrante.

Entendemos, conforme melhor demonstraremos adiante, que existem duas naturezas jurídicas quando falamos em direito líquido e certo, uma subjetiva privada ou particularizada e outra subjetiva pública.

Esta nossa afirmação decorre, além das lições de Castro Nunes acima expostas e de três fundamentais princípios: o da responsabilidade, o da responsividade e o da sindicabilidade, muito bem explicados nas lições de Diogo Figueiredo Moreira Neto, in verbis:

“o princípio da responsabilidade, de natureza substantiva, gera um dever derivado para todos que tenham cometimentos de natureza pública, que é o dever de prestar contas, o que pressupõe o dever de tomar contas. A responsividade, para o professor supracitado, decorre da constatação de que se responder pela ilegalidade é um dever tão antigo quanto o próprio Direito, responder pela ilegitimidade é tão recente quanto a consolidação histórica da democracia na cultura ocidental e, por isso, a responsividade vem complementar o princípios da responsabilidade e ampliar-lhe os efeitos para além da legalidade estrita, inspirando e fundando ações sancionatórias do Direito Administrativo, voltadas à preservação do princípio democrático e da legitimidade, que dele decorre. Por fim, a sindicabilidade é uma necessária conseqüência dos princípios substantivos da legalidade e da legitimidade e dos correspondentes princípios adjetivos da responsabilidade e da responsividade, aos quais se acresce o, também substantivo, da moralidade administrativa, de modo que se não fosse possível o controle de tais atos públicos pelo administrado todo o sistema quedaria inane e frustrado diante das iminentes violação praticadas pelas autoridades públicas.”23

Portanto, pedir ao Judiciário que controle ou sindique o ato administrativo é um direito líquido e certo subjetivo público que todos temos como consequência do próprio sistema jurídico, como efeito de ter direito a que o ato da autoridade seja praticado em conformidade da Constituição e da lei, e quanto a isso não existe a menor dúvida ou discordância doutrinária24.

Todavia, esse direito líquido e certo de natureza subjetiva pública não se confunde com o direto líquido e certo que possui individualmente cada parte impetrante, pois este é de natureza eminentemente subjetiva privada ou particularizada e fruto duma relação jurídica individual entre o réu e o autor do Mandado de Segurança. Esta relação jurídica é, portanto, da natureza singularizada e deve ser examinada como consequencial subjetivo, isto é, em razão das pessoas envolvidas.

Decidir se ao final o impetrante tem direito líquido e certo ao bem buscado gerará limitação subjetiva da demanda. Já, ao contrário, quando se anula o ato ilegal, ainda que o impetrante não possua direito líquido e certo subjetivo privado, significa reconhecer o direito líquido e certo subjetivo público ao controle dos atos públicos em consequência do princípio da sindicabilidade que informa as teorias do controle da legalidade, da licitude e da legitimidade dos atos públicos.

No que se refere ao direito líquido e certo sob o prisma da subjetividade privada do impetrante, podemos afirmar que é dele e por ele que examinamos os limites do direito do impetrante à tutela buscada em juízo. A partir disso, fincamos o limite subjetivo não do Mandado de Segurança em sua objetividade, mas da segurança do direito do impetrante em sua subjetividade privada.

A internidade subjetiva dos limites objetivos do Mandado de Segurança pelo provimento jurisdicional é limitada apenas nesse aspecto ao sujeito ativo do direito.

Noutras palavras, há o direito subjetivo privado do impetrante, como efeito da sua relação individual com a Administração Pública, e há o controle do ato impugnado, como consequência do direito subjetivo público de toda a sociedade. Assim, conceder a segurança pela existência do direito do impetrante e controlar a ilegalidade ou abusividade do ato impugnado geram implicações distintas nos limites da decisão judicial. O que ficará limitado entre as partes é o direito do impetrante, e não o controle do ato impugnado.

Imaginemos a seguinte situação comum e eminentemente administrativo que pode nos auxiliar na compreensão da tese acima exposta é o seguinte. Imaginemos que numa dada Rodovia “x” foi instalado um sistema de radar eletrônico automatizado, mas que essa instalação não seguiu as prescrições normativas previstas no Código de Trânsito Brasileiro e nem pelas Resoluções do CONTRAN. Imaginemos, ainda, que num dado período de tempo, aproximadamente 1.000 (mil) condutores foram multados através daquele sistema, e que apenas um deles tenha impetrado Mandado de Segurança contra a multa que lhe foi imposta, e nessa ação o Judiciário tenha declarado o direito líquido e certo do impetrante em não pagar a multa, devido à ilegalidade na sua imposição, já que o radar foi instalado de forma ilegal. Pergunta-se, esta decisão ficará limitada apenas àquele processo?

A resposta, a nosso sentir, é negativa. O direito líquido e certo de não pagar a multa impugnada no processo ficará restrito exclusivamente ao impetrante, já que a relação jurídica ali discutida, tendo ele como sujeito ativo do dever de pagar a multa, é individualizada ou particularizada. Todavia, quando o Judiciário definiu que o ato administrativo de impor multas de trânsito com fundamento nas provas obtidas por aquele radar era ilegal, ele produziu uma decisão cujos contornos vão além das partes envolvidas na relação particularizada ou individualizada, de modo que é dever da Administração Pública não praticar nem manter os efeitos dos atos ilegais reconhecidos seja judicial ou administrativamente.

Logo, os outros 999 (novecentos e noventa e nove) condutores deverão ter as multas anuladas, porque o ato de controle aí decorre do direito subjetivo público que toda a sociedade goza de ver uma atuação administrativa, legal, impessoal, eficiente e legítima. Pensar em manter os efeitos das outras 999 (novecentos e noventa e nove) multas é ilógico, ilegal e imoral.

O controle do ato impugnado, porque do ato em sua especificidade, não pode ser limitado à subjetividade da demanda, pois é ilógico que um ato seja e não seja, a um só tempo, válido e inválido. A variante é binária, ou o ato é legal ou não é. Exatamente por isso, o controle do ato não se limita à subjetividade do direito líquido e certo subjetivo privado ou particularizado, vai sempre além.

Portanto, é fundamental estremar direito líquido e certo subjetivo privado (particularizado) e público, são duas faces de um mesmo espelho côncavo, pois de um lado se reflete uma imagem e, do outro, outra ampliada.

Sobre o autor
Alessandro Samartin de Gouveia

Promotor de Justiça do Estado do Amazonas. Possui graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (2004). Pós-graduado em nível de Especialização em Direito Processual pela ESAMC/ESMAL(2006). Formação complementar em política e gestão da saúde público para o MP - 2016 - pela ENSP/FIOCRUZ. Pós-graduando em prevenção e repressão à corrupção: aspectos teóricos e práticos, em nível de especialização (2017/2018), pela ESTÁCIO/CERS. Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: súmula vinculante, separação dos poderes, mandado de segurança, controle de constitucionalidade e auto de infração de trânsito. http://orcid.org/0000-0003-2127-4935

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Alessandro Samartin. O quimerismo processual do mandado de segurança individual e a intervenção do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5439, 23 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65781. Acesso em: 23 nov. 2024.

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