Palavras-Chave: Mandado de Segurança Individual. Direito Subjetivo Público. Controle do Ato Administrativo. Intervenção do Ministério Público.
Sumário: INTRODUÇÃO – DO MANDADO DE SEGURANÇA COMO DIREITO E GARANTIA – OS INTERESSES TUTELADOS NA AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA – DOS DIREITOS LÍQUIDOS E CERTOS SUBJETIVO PRIVADO OU PARTICULARIZADO E SUBJETIVO PÚBLICO – DA NECESSÁRIA INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL – CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
O presente artigo tem por objetivo enfrentar o tema da transcendência dos efeitos da sentença judicial que controla a legalidade dos atos administrativos em Mandados de Segurança individuais e a necessidade de intervenção do Ministério Público. Para tanto, porém, abordaremos o Mandado de Segurança como direito e garantia, investigando quais os interesses tutelados nessa ação, aprofundando quais os contornos dos direitos líquidos e certos subjetivos privado e público inerentes à ação mandamental, para enfrentar, finalmente, a necessidade ou não de intervenção do Ministério Público nesse tipo de ação.
A presente pesquisa, valeu-se da metodologia de estudo de diplomas legais, jurisprudência e doutrina e tem por objetivo refletir se o interesse na ação de Mandado de Segurança é exclusivamente individual e até que ponto a revisão dessa certeza terá reflexos no estudo dessa ação. Esse problema foi o nosso principal propulsor no estudo, na pesquisa e na forma de (re)ver o Mandado de Segurança e a ele tentaremos responder como proposta de um estudo acadêmico sincero e crítico.
Por fim, depois de examinar esses temas, enfrentamos a questão da intervenção facultativa ou obrigatório do Ministério Público nas ações de Mandado de Segurança individuais.
DO MANDADO DE SEGURANÇA COMO DIREITO E GARANTIA
Sempre que estudávamos a conceituação do Mandado de Segurança nos deparávamos com a definição de que ele era o meio constitucional posto à disposição de qualquer pessoa contra atos ilegais ou abusivos de autoridade violadores ou ameaçadores de direito líquido e certo de alguém. Nesta quadra, Hely Lopes Meirelles conceituava o Mandado de Segurança como:
(...) o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça (CF, art. 5º, LXIX e LXX; Lei n.º 1.533/51, art. 1º).1
Entretanto, sem, necessariamente, negarmos o conceito acima exposto, precisamos refletir sobre a sua validade e a utilidade dessa definição atualmente. Para tanto, porém, propomos uma viagem doutrinariamente histórica sobre o Mandado de Segurança. Neste compasso, então, revelam-se-nos fundamentais as lições de Castro Nunes, in verbis:
O Mandado de Segurança assenta num princípio que o nosso direito anterior desconhecia: a possibilidade de ser a administração compelida a praticar certo ato ou abster-se de o praticar. Para forçá-la à abstenção recorria-se aos interditos que a jurisprudência em regra não admitia. O Mandado de Segurança realiza aquela dupla função: restitui o exercício do direito, removendo o obstáculo ou suprindo, pelo decreto judicial, a recusa do Poder Público. A sistemática do nosso direito girava em tôrno de dois princípios: o da separação dos poderes, que não tolera injunções do Judiciário à administração; e o princípio civil da reparação conseqüente à inexecução da obrigação.(sic)2
Observemos dois pontos interessantes e revolucionários revelados pelos ensinamentos acima expostos. O primeiro merecedor de destaque é a possibilidade de o Judiciário julgar os atos da Administração Pública, mas não com a finalidade de aplicar uma reparação civil indenizatória decorrente da inexecução da obrigação violada pelo Poder Público. O outro ponto é o de que o Mandado de Segurança se assentava na possibilidade de a administração ser compelida a fazer ou deixar de fazer algo, ou seja, ele representava uma relativização da separação dos poderes, pois conferia ao Judiciário o poder de impor à Administração Pública a prática de ato sem poder de recusa por parte desta.
Noutras palavras, o Mandado de Segurança àquela época já representava um avanço incontestável, pois assegurava ao titular do direito a prestação “in natura”, e não à representação indenizatória do direito violado. Como bem destaca Castro Nunes: “o direito é assegurado, no seu exercício, e não pela forma indireta da equivalência econômica, princípio pelo qual se define o ressarcimento da inexecução da obrigação, scilicet violação da lei.”3
Como toda e qualquer novidade – sobretudo pelo poder que representava o Mandado de Segurança, uma vez que possibilitava a relativização de um princípio tão relevante, especialmente naquele período de ascensão e consolidação da doutrina liberal –, esse instrumento de proteção causou muita hesitação por parte da jurisprudência, mas com o passar do tempo ele foi se consolidando e se afirmando cada vez mais como instrumento de defesa do particular contra a Administração Pública.
Nunca é demais, todavia, lembrarmos que, como bem destaca Castro Nunes, “As origens do Mandado de Segurança estão naquele memorável esforço de adaptação realizado pela jurisprudência, sob a égide do Supremo Tribunal, em torno do habeas corpus, para não deixar sem remédio certas situações jurídicas que não encontravam no quadro das nossas ações a proteção adequada.”4
Ele surge, então, como solução para os casos em que o habeas corpus não servia, tinha e ainda tem ele, por conseguinte, a nobre natureza de ser uma ação contra atos do poder público, distintos do cerceamento da liberdade.
Mais adiante Castro Nunes nos informa que a ideia de um remédio distinto e paralelo ao habeas corpus surgiu no Congresso brasileiro em 1922, então presidido pelo ministro Muniz Barreto, mas acabou interrompida em 1926, pela Reforma Constitucional5. Como sabemos, apesar de nessa época já vivermos o período da República, o processo civil brasileiro ainda era todo baseado nas ordenações filipinas. Por isso, o Congresso brasileiro discutia as reformas das ações judiciais, pois estas exprimiriam a mais alta manifestação de proteção ao direito, assegurado pelo Estado6.
Assim, debatia o Congresso Nacional a criação dessa ação judicial de mesma envergadura que o habeas corpus, pois destinado a proteger a sociedade dos atos do poder público. Vários nomes foram inicialmente propostos. Alberto Tôrres propôs que fosse nominada tal ação de mandado de garantia, mas o deputado Alcântara Machado, então presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, juntamente com João Mangabeira, Temístocles Cavalcanti, Carlos Maximiliano e Afrânio de Melo Franco debateram o tema, fazendo uso de evolução histórica, cujo ponto de partida foi a lei nº 221/1894 – instituidora de uma ação especial para a invalidação dos atos da administração lesivos a direitos individuais –, culminando no art. 113, nº 23, da CF/19347, que adotou o nome de Mandado de Segurança, e o alocou no Título III, Capítulo II, Dos direitos e Garantias individuais, da CF/1934i.
Fato que salta aos olhos é o de que, apesar de ser inaugurado o Mandado de Segurança como direito e garantia fundamental em 1934, no art. 113, nº 33, ele continuava umbilicalmente ligado ao habeas corpus, pois o texto constitucional indicava que seu processamento seria o do habeas corpus, sendo ouvida a pessoa de direito público interessada.
Em 16 de janeiro de 1936, foi promulgada a lei nº 191, que regulava muito mais do que o processo do Mandado de Segurança. Porém, apesar do avanço que já representava, os tribunais pátrios hesitaram em aplicar a novidade. Já a Constituição de 1937, em flagrante retrocesso na matéria de direito fundamental, silencia quanto à garantia constitucional do Mandado de Segurança.
Neste compasso, ele deixa de ser meio de defesa contra os atos do Presidente da República. Porém, o Código de Processo Civil de 1939 cuidou da ação de Mandado de Segurança a partir do art. 319ii, em que expressamente afastava do campo de atuação do writ os atos do Presidente da República, dos Ministros de Estado, Governadores e Interventores.
Graças à queda do Estado Novo e à nova Constituição de 1946, o Mandado de Segurança é novamente alçado à garantia constitucional, sendo vazada a sua aplicabilidade contra ato de qualquer autoridade no art. 141, § 24, da CF/1946iii.
Posteriormente, em 31 de dezembro de 1951, a lei nº 1.533 foi promulgada, revogando os artigos do Código de Processo Civil de 1939 sobre a matéria e inaugurando, assim, a grande discussão sobre a extensão ou não do CPC ao Mandado de Segurança.
Com o advento da lei nº 1.533/51, a doutrina começa a tratar o Mandado de Segurança como uma ação, apesar de natureza civil, de forma completamente estanque e distante do processo civil. Apesar de a lei nº 1.533/51 ter mantido vários artigos com conteúdos semelhantes ou até mesmo idênticos aos do Código de Processo Civil, o processamento do Mandado de Segurança mostrava-se difícil e extremamente lacunoso, pois várias normas atinentes ao seu processamento não se encontravam expressamente previstas na lei nº 1.533/51.
Isso ocorreu por que ao ser retirado do CPC o regramento do Mandado de Segurança, toda a estrutura normativa e procedimental da legislação processual civil deixou de ser aplicada ordinariamente ao processamento do Mandado de Segurança, sobretudo por causa dos art. 19 e 20iv.
Assim, devido à necessidade de um regramento próprio, quanto a seu procedimento, foram introduzidas no ordenamento pátrio as leis n.º 4.348/648 e nº 5.021/66, cujos objetivos eram de regular o procedimento do Mandado de Segurança.
Chegamos, após essa evolução histórica, finalmente à Constituição de 1988, que prevê no art. 5º, LXIX e LXX, a possibilidade de se conceder Mandado de Segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; e também o Mandado de Segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional; ou organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados.
E, mais recentemente, entrou em vigor a lei n.º 12.016/2009 revogando todas as disposições legais anteriores e regula completamente o Mandado de Segurança, mantendo alguns paradigmas passados, evoluindo em outros e acanhando-se noutros tantos. Tempos de mudanças exigem, sobremaneira, profundas reflexões.
Neste ponto, portanto, precisamos refletir sobre os seguintes fatos: vimos que o Mandado de Segurança surgiu no nosso sistema pátrio como garantia individual, depois foi rebaixado à ação de índole infraconstitucional e atualmente é mantido como direito e garantia fundamental. Assim, empós toda essa evolução histórica, podemos ver o Mandado de Segurança com os mesmos contornos que tínhamos antes de 1988?
A nossa resposta é incisivamente negativa. Não dá para creditar ao Mandado de Segurança, previsto na Constituição Federal de 1988, os mesmos contornos definidores alinhavados por Castro Nunes e Hely Lopes Meirelles. Noutras palavras, não nos é possível enxergá-lo apenas como meio constitucional para a proteção de direito líquido e certo de alguém violado ou ameaçado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública.
Ele está inserido no título dos direitos e garantias fundamentais da ordem jurídica brasileira, de modo que é a um só tempo direito e garantia fundamental. Ele é direito, se visto sob o prisma da sua ontologia, porque representa o direito fundamental ao instrumento hábil de defesa contra atos estatais; e, garantia porque ele serve à defesa de outros direitos – positivos ou negativos - contra esse mesmo Estado.
Ele é, portanto, garantidor de direitos porque através dele direitos materiais são tutelados, mas ele em si também é um direito, e não qualquer direito, um direito tão fundamental que possui a máxima proteção conferida pela constituição, pois é alçado a cláusula pétrea, vedando ao poder reformador aboli-lo, mesmo por meio de Emenda à Constituição. E essa visão exige reflexão e revisão de vários temas afetos ao Mandado de Segurança, o que faremos adiante.
OS INTERESSES TUTELADOS NA AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA
O ponto de partida para a exata compreensão de tudo o que vamos abordar daqui em diante, envolve a exata noção dos interesses tutelados no Mandado de Segurança e, para tanto, enfrentaremos o questionamento traçado pelo professor Marcelo Abelha Rodrigues que, ao tratar do assunto, asseverou:
“Tentando ser mais claro, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: o interesse dito como coletivo (não individual) decorre da indivisibilidade do seu objeto (que ao satisfazer um a todos satisfaz por causa da raiz única) ou decorre da soma de vontades dos sujeitos (aspecto subjetivo)?”9
Vemos, então, que ao examinarmos o interesse devemos levar em conta, no mínimo, dois aspectos importantes: um subjetivo e outro objetivo. No primeiro ponto estudamos o interesse a partir da vontade ou do querer do sujeito, isto é, a relação de desejo e satisfação referente a um bem da vida; enquanto que, no outro aspecto, observamos a divisibilidade do bem da vida pretendido.10
É célebre e amplamente difundida a conceituação de interesse, formulada por Carnelutti, a partir da ideia de conflito de interesse, para o qual interesse se dá pela relação entre um sujeito com desejo ou necessidade capaz de ser satisfeito por um bem da vida, de modo que o conflito surgiria na exata medida em que o desejo de um sujeito a ser satisfeito por um bem da vida fosse excluído pelo desejo de outro indivíduo. No campo das individualidades não há tratamento mais claro.
Todavia, quando esses interesses transcendem a individualidade e se tornam transindividuais o problema do interesse se revela maior. Desta forma, voltando ao questionamento do professor Marcelo Abelha Rodrigues, acima transcrito, convidamos o leitor a refletir: será que o interesse na ação de Mandado de Segurança é exclusivamente individual e até que ponto isso altera a forma de vê-lo e estudá-lo? Esse questionamento tem sido o nosso principal propulsor no estudo, na pesquisa e na forma de (re)ver o Mandado de Segurança e a ele tentaremos responder não só neste capítulo, mas também nos demais, como proposta de um estudo acadêmico sincero e crítico.
Valeremo-nos, inicialmente, do critério subjetivo de classificação dos interesses para sabermos de qual interesse tratamos no Mandado de Segurança. Conforme destacamos abaixo, quando utilizamos dessa via de ação contra o Estado fazemos uso de dois direitos: um subjetivo público, de controle dos atos administrativos ilegais e abusivos (muito pouco estudado nesta ação); e outro subjetivo privado ou particularizado, de ter acesso a um bem da vida perseguido a partir de uma relação individualizada com a Administração Pública, que poderá existir ou não.
Pois bem, desse aspecto temos que o Mandado de Segurança não se resume a cuidar de um tipo de interesse apenas, pois haverá, no mais das vezes, mais de um, já que pelo dispositivo da Constituição de 1988, conceder-se-á Mandado de Segurança para proteger direito líquido e certo contra ato de autoridade ilegal ou abusivo, não amparado por “Habeas Corpus” ou “Habeas Data”. Temos, assim, que o constituinte não limitou o direito líquido certo do impetrante e nem o definiu, mas veiculou com clareza ser ele protegido pelo Mandado de Segurança contra o ato administrativo ilegal ou abusivo. Destarte, haverá, pelo critério subjetivo, interesses particulares e coletivos lato sensu, tutelados na ação.
Doutra banda, porém, se nos valermos do critério objetivo, no qual examinamos a divisibilidade do bem da vida para aferirmos a sua individualidade ou coletividade, chegaremos à mesma conclusão lógica. Se no Mandado de Segurança temos duas espécies de direitos líquidos e certos, um particularizado (individualizado) e outro público (indivisível), teremos da mesma forma ambos os interesses tutelados na demanda, pois se na relação jurídica básica entre o impetrante e a Administração Pública (ré da ação) há um aspecto divisível dos interesses privados daquele com os interesses públicos secundários dessa, este mesmo aspecto desaparece quando o que se examina é o controle da ilegalidade ou da abusividade do ato administrativo, porque o interesse aí é público subjetivo e primário, de modo que ambos os envolvidos têm, em verdade, o mesmo interesse: o de ver respeitados normas, princípios e valores hierarquizantes do sistema jurídico, como leciona Alexandre Pasqualini:
Assim, do referido princípio do interesse público – vinculante de todos os ramos da ciência jurídica – decorrem alguns outros princípios mais afeiçoados à Administração pública de cuja especificidade se desenha o perfil do autônomo regime administrativo. Reflexo natural do conceito de sistemas acima analisado, ‘as relações jurídico-administrativas são concepcionadas, pois, como aquelas que se orientam pelo sistema de princípios, normas e valores regentes da Administração Pública’, de sorte que, a rigor, ‘quem administra... não é o agente na sua particularidade, nem mesmo a Administração Pública, considerada, por igual na sua particularidade’ mas os princípios, normas e valores conformadores do Direito Público e viabilizadores da ‘teleologia superior do interesse da sociedade’.11 (grifos nossos)
Assim, não temos dúvida em afirmar que tanto pelo critério subjetivo quanto pelo objetivo, na ação de Mandado de Segurança sempre existirão interesses coletivos lato sensu tutelados ou mesmo não ocorrendo em igual situação com os interesses individuais, que poderão existir ou não.
Todavia, precisamos ir além, já que mencionamos acima algumas outras espécies de interesses que nos são caros neste momento. Desta forma, podemos classificar os interesses ainda como sendo eles divididos em públicos e privados, individuais e coletivos, coletivos stricto sensu, individuais homogêneos e difusos. Para os interesses públicos ainda temos os chamados interesses públicos primários e secundários (interesses particulares da Administração Pública)12.
O interesse individual e particular é aquele amplamente conhecido, referindo-se sempre a situações individualizadas decorrentes de uma relação particular ou privada com outro indivíduo. O interesse coletivo, por sua vez, como bem destaca o professor Marcelo Abelha Rodrigues, tem o seu conceito muito mais intuído do que definido, de modo que podemos asseverar que seriam coletivos os interesses que dissessem respeito às massas ou as coletividades. Não podemos esquecer que interesse coletivo ainda pode ser público ou privado, motivo por que sob o prisma do impetrante é possível classificar a ação de Mandado de Segurança em individual e coletiva lato sensu, mas sob o enfoque do réu ela sempre será coletiva stricto sensu, adiante voltaremos ao tema, bastando-nos, por enquanto, semear essa ideia primária.
Desta forma, voltando ao interesse coletivo lato sensu, podemos subdividi-los em interesses coletivos stricto sensu, difusos e individuais homogêneos.
O coletivo stricto sensu seria, na esteira legislativa pacificada no Código de Defesa do Consumidor, aquele transindividual de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. O interesse difuso, valendo-nos ainda do Código de Defesa do Consumidor, seria o transindividual, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. E, finalmente, o individual homogêneo o que possui a mesma origem13.
Precisamos ter em mente que os conceitos acima, por mais importantes que sejam e o são, não negamos, servem-nos apenas de norte, pois focados e calcados, mesmo que na seara coletiva, a uma visão ainda sim privatista dos interesses em jogo. E esta afirmação é de fácil percepção quando temos em mira alguns pontos conceituais utilizados, por exemplo, quando o legislador tratou do interesse coletivo stricto sensu, ele prescreveu ser este o transindividual de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Imaginemos, exemplificativamente, uma grande montadora de veículos ou de eletrodomésticos ou mesmo um grande Banco, estes entes, devido à diversidade de suas relações, produzirão infindáveis relações jurídicas com seus consumidores. Cada relação é individual com a entidade, se vista sob o prisma de cada um dos consumidores em suas individualidades, mas todas elas, porque firmadas com a mesma pessoa, possuem uma relação que se denomina básica, isto é, em cada uma das relações individuais há uma parte comum a todas as outras relações.
Desta forma, qualquer interferência jurídica nessa relação básica tem reflexos naturais em todas as demais relações individuais. Assim, o legislador, porque viu nessas espécies de pessoas sociais, um caráter transcendente da individualidade, asseverou que os interesses aí colocados serão coletivos stricto sensu, pois os interesses em jogo aí se referem a pessoas ligadas entre si por meio de uma relação jurídica básica. Então, deu a esse tipo de interesse um tratamento isonômico e unitário, fazendo com que as decisões que afetem essas relações alcancem dimensões coletivas. E como bem destaca o professor Marcelo Abelha Rodrigues, esse efeito decorre da liberdade pública, in verbis:
“A preocupação do legislador em estender a proteção ao grupo de pessoas que não possuam vínculo entre si, mas sim com a parte contrária, decorre do fato de que não sendo obrigatório o associativismo (liberdade pública) é possível que mesmo a pessoa não sendo associada a uma categoria, ainda assim seja titular de um direito coletivo, pelo simples fato de que possui, como o associado, uma relação jurídica base com a parte contrária.”14
Entendimento irrepreensível, com o qual concordamos na integralidade. Todavia, acreditamos que é possível ir além, mas não por que a relação entre a Administração Pública e o administrado seja consumerista, e sim por ser o Estado uma entidade igualmente social, cheia de relações jurídicas básicas com as pessoas presentes em seu território real e legal.
Temos que compreender, indiscutivelmente, que qualquer pessoa, física ou jurídica, presente no território brasileiro, firma, em consequência da Constituição Federal, das normas, princípios e valores do ordenamento jurídico, relações jurídicas básicas com o Estado. Por esse motivo, enxergamos que o interesse coletivo stricto sensu também pode ser público e, pelo mesmo motivo de liberdade pública, extensível àquele que possua com o Estado uma relação jurídica básica. E nesse aspecto arremata o professor acima citado:
“Portanto, não é o vínculo associativista (necessidades comuns traduzidas num ente representativo) que faz com que o direito seja coletivo, mas sim o seu objeto, como foi dito alhures. Esta parece ser a crítica de Vigoritti à definição proposta por Gianninni quando fala que os interesses coletivos possuem um portador adequado ao qual denominou de ente esponenziale. Segundo Vigoritti, também os interesses coletivos que não possuíssem ente portador adequado mereceriam dita tutela.”15
Logo, não há como se negar a coletividade dos interesses em jogo no Mandado de Segurança, pois ao estarem todos os presentes no território nacional inseridos em relações jurídicas básicas com o Estado e o ordenamento jurídico ter conferido, via esta ação, a proteção a direitos líquidos e certos contra atos de autoridade ilegais ou abusivos, teremos os impetrantes, nessas condições, buscando a tutela de interesses coletivos.
Assim, ao inserir, no campo de proteção do Mandado de Segurança, os interesses públicos primários e privados, individuais e coletivos públicos stricto sensu, o constituinte deu ao povo uma ferramenta fantástica de controle, rápida e eficiente, dos atos administrativos.
A doutrina clássica, porém, sempre enxergou facilmente os limites subjetivos do Mandado de Segurança, porque sempre pôs em foco os interesses particulares dos impetrantes, o que se costumou a chamar de direito líquido e certo do impetrante, mas aqui visualizamos outra circunstância, qual seja, o interesse público primário tutelado no Mandado de Segurança, já que ele serve de controle pelo Judiciário da ilegalidade ou abusividade do ato administrativo. Nesse prisma, porém, mesmo sendo uma ação demandada por um único autor, esta ação terá, caso o Judiciário controle o ato administrativo, um efeito indiscutivelmente ultra partes, porque a pessoa contra a qual se decide é uma pessoa coletiva e possui com determinados membros da sociedade relações jurídicas básicas.
Observemos que ter o ato administrativo controlado pelo Judiciário quanto à ilegalidade ou à abusividade decorre de uma confluência de interesses públicos primários, pois interessa à Administração Pública e ao impetrante que esse controle ocorra16 e nesse aspecto não temos a menor dúvida de asseverar que estamos diante de interesses coletivos stricto sensu públicos.
Vezes há, porém, conflitos de interesses entre o impetrante e o réu do Mandado de Segurança, mas este conflito se dá entre os interesses particulares de ambos, isto é, entre os interesses privados, individuais ou coletivos, do impetrante, pessoa física, jurídica ou entidade associativa, e o interesse público secundário do réu do Mandado de Segurança.
Entre os conflitos de interesses particulares há limite subjetivo, porque é nesse particular que se individualiza a relação jurídica básica. Já quanto à supremacia do interesse público e o controle da ilegalidade ou abusividade do ato administrativo, haverá objetividade, sempre, pois concernente à relação jurídica básica em si. Então, podemos afirmar que a doutrina clássica define a coletividade ou a individualidade do Mandado de Segurança, como limite subjetivo da demanda, examinando os interesses particulares postos a apreciação do Judiciário, esquecendo o interesse coletivo stricto sensu público existente que dará ao Mandado de Segurança sempre o efeito ultra partes, consequente da supremacia do interesse público no controle exclusivo do ato administrativo.
A partir, então, dessas constatações não temos mais como ver e estudar o Mandado de Segurança sob o mesmo prisma e forma que se estudou até hoje, precisamos estudar e melhor difundir essa capacidade coletivizada de sua finalidade, dissolvendo a ideia mal concebida e dissolvida no consciente social do tempo em que a Administração Pública tinha um ato seu anulado pelo Judiciário e ficava com essa decisão adstrita exclusivamente àquele processo. E, da mesma forma como se aventura no mar do desconhecido o desbravador, convidamos o leitor a refletir juntos sobre os temas adiante descritos.