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Estado virtual ampliado

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8. Estado Virtual: alguns contornos

No Estado de Direito clássico, o centro de imputação era o cidadão (garantido pelo Estado Liberal e Constitucional, pelo Estado-nação), como sujeito de direitos instituído nessa condição de maioridade política (como eleitor), recebendo a chancela da personalidade jurídica. Com a rede, os centros de imputação são cambiáveis, intercambiáveis, ora visualizando-se o próprio sujeito de direitos disfarçado de cidadão e internauta ou consumidor do mundo virtual (vide e-commerce e o tratamento liberal, consumista que também se dá ao meio), ora consumado sob a forma de vanguardas sócio-culturais. Nesse momento, há a eclosão de movimentos sociais de resistência e de altercação política contra as tentativas ou tendências de hegemonização (um tipo de homogeneização total) da própria rede. A rede, no entanto, tanto pode derivar o ciberespaço, como fórum de ativismo, quanto a Matrix em que todos estão encastelados. No romance Neuromancer de William Gibson encontra-se a primeira definição para ambos, e sinteticamente significam que:

A Matrix teve a sua origem nos primitivos jogos eletrônicos – disse a voz gravada -, nos primeiros programas gráficos e nas experiências militares com conectores cranianos. — No monitor Sony, uma guerra do espaço bidimensional desaparecia atrás de uma floresta de brotos gerados matematicamente, demonstrando as possibilidades espaciais das espirais logarítmicas; e então entrou uma filmagem militar azulada, com animais de laboratório plugados a sistemas de controle, capacetes controlando circuitos de comando de tanques e aviões de combate. — O cyberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores autorizados em todas as nações, por crianças aprendendo altos conceitos matemáticos...Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz abrangendo o não-espaço da mente; nebulosas e constelações infindáveis de dados. Como marés de luzes de cidade... [20] (Gibson, 2003, pp. 67-68).

A partir da citação, é fácil perceber como os centros de imputação de direitos do Estado Virtual não seguem mais os modelos ou padrões firmados no classicismo, sobretudo aqueles advindos dos séculos XVIII e XIX: Estado-nação e Estado de Direito. E é substancialmente a esse deslocamento dos centros de referência jurídica e política que chamaremos de os primeiros ensaios/redutos ou manifestações/características do Estado Virtual: o próprio deslocamento/ampliação dos centros de referência. Na vida real como no virtual, vê-se preservada, infelizmente, a figura do "cidadão-servo", pois ainda está em plena vigência a chamada "liberdade do escravo" ou "servidão voluntária" como queria La Boetie (1986), seguido pelo próprio Marx (1989) na crítica ao direito de propriedade como regulador dos "direitos da cidadania".

De modo amplo, acreditamos, residem aqui alguns alertas quanto à necessidade de se manter viva a análise crítica sobre os usos/abusos da tecnologia, quanto à sua utilização, mas não quanto à sua utilidade – pois que a técnica é parte da própria essência humana. Assim, parece-nos, deve ser entendido o alerta dado por Adorno, na Mínima Moralia (2001):

Não bater à porta. — Por enquanto, a tecnificação torna os gestos precisos e grosseiros e, com eles, os homens. Desaloja dos gestos toda a hesitação, todo o cuidado, toda a urbanidade. Submete-os às exigências implacáveis e, por assim dizer, a-históricas das coisas. Assim se desaprende, por exemplo, como fechar uma porta de forma suave, cuidadosa e completa (...) Que significa, para o sujeito, que já não existem janelas com caixilhos que se podem abrir, mas maçanetas giratórias, que já não haja vestíbulo, limiar frente à rua ou muros que rodeiam os jardins (...) Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que as utilizam reside já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maus tratos fascistas. Da morte da experiência é em grande parte responsável o fato de as coisas, sob a lei da pura utilidade, adquirirem uma forma que restringe o trato com elas ao simples manejo... (grifos nossos, p. 35).

Enfim, tal qual há uma lei de pura utilidade, também encontramos um nicho de liberdade política no Estado Virtual: a condição/capacidade de produzirmos mensagens políticas livremente. Diga-se de passagem, um fato inédito na história política que só foi possível graças ao desenvolvimento/aprimoramento de novos suportes técnicos: a exemplo da Internet. Por isso, a rede, o virtual, o ciberespaço trazem o germe do futuro, e quem sabe seja o momento de a liberdade realizar suas promessas. Ao contrário do centralismo estatal, a liberdade no ciberespaço convida à desobediência civil, embalada por Thoreau (1986) e desde Chiapas, no México. O que, certamente, não é pouco.


9. Bibliografia

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10.Notas

1 O termo é utilizado para indicar uma solução de software que oferece melhores condições para cotação de preços e compra de materiais via Internet.

2 Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes – esta precedência subordina a divisão à separação.

3 Entendemos que essa ética responsável pelas ações e pelo social pode ser desenvolvida na rede, mas desde que estimulada culturalmente.

4 Farta remuneração, em detrimento de pouca ou quase nenhuma implicação laboriosa. No popular: mamata, emprego de barnabé.

5 Técnicas ou tecnológicas, a exemplo da total informatização eleitoral.

6 A arquitetura imponente, os pórticos e portais do Estado tendem a blindar os segredos da estrutura estatal, aliás, mais e mais carros de autoridades já vêm, de fábrica, equipados com vidros fumê e blindagem especial – sem vitrais, o Estado é indevassável, nebuloso, opaco.

7 Do navegar é preciso à relação de custo-benefício que há em projetos de fome-zero, pois, por exemplo, é a estatística que define os níveis possíveis para a mortalidade infantil.

8 Novamente a relação forma-conteúdo. E ainda que já se saiba, há muito tempo, que quem vê cara não vê coração ou por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento (o epitáfio do próprio sepulcro caiado).

9 Teoricamente (vale dizer, de forma lógica), um povo não pode concluir que o melhor para si é afastar-se do capitalismo?

10 Pode-se dizer que está em curso uma contradição entre o poder político (como poder de Estado) e o poder social: a capacidade de auto-organização da sociedade.

11Por desencantamento (ou segundo desencantamento do mundo) ou a perda da magia como fonte de explicação válida do mundo, pode-se entender a crescente distância ou lacuna entre o sensível e o inteligível, ou seja, os sentidos já não bastam para decodificar a realidade externa, o mundo e, submersos nessa sensação, também sentimo-nos um tanto ausentes (dos significados ou daquilo que produz significados). Na verdade, hoje, a distância é insuperável e irreversível – daí a sensação do desencantamento -, só aumentando a percepção de nossas limitações, nossa própria percepção de como somos incompletos, finitos e extremamente limitados. Nosso conhecimento de nós mesmos, hoje e cada vez mais, depende essencialmente do não-humano, das máquinas: dos supercomputadores (Virilio, 1993, p. 25).

12 Não abordamos aqui nem mesmo o conceito de Estado Informacional (o campo de estudos de Régis Debray), mas somente o sentido de que o próprio Estado é produtor e refém das imagens que ele próprio gera, deixa que sejam veiculadas ou ainda que acabe por alimentar. Seguindo Debray (1994): Estamos vendo em que aspecto todo Estado é tecnocrata. De se apropriar ou controlar os sistemas técnicos de fabricação e transporte de sinais (...) Portador de sentido por natureza e produtor de mensagens por função, acompanha passo a passo os suportes e propulsores de vestígios (...) Os sistemas técnicos avançam mais depressa do que as doutrinas e leis, de tal modo que os textos devem, incessantemente, alcançar a tecnologia (p. 64). Vemos aí como a máquina imprime o Estado.

13 Mas ainda há um olhar perdido (por entre as massas), bem como há um outro inquisidor, à espreita, quase vidrado, vítrico, um olhar de tela plana e de cristal líquido, equivalendo tela e poder (não é à toa que a Rede Globo já fez presidentes da República e também é por isso que se fala de um movimento de sem-telas). Donde se conclui que, nessa razão meramente maquínica, perdendo-se ou se distanciando por completo das finalidades do Estado, os aparelhos e aparatos burocráticos e ideológicos do Estado perdem até mesmo quando seus engenheiros são desafiados a conter a queda de duas torres gêmeas.

14 Ainda em Debray (1994): Na França, o aparecimento do Estado moderno parece ter coincidido com a grafosfera. É lógico se nos lembrarmos que os valores de universalidade, indexados inteiramente aos progressos da Razão gráfica, aparecem com a escrita e generalizaram-se com a imprensa. A transmissão oral, por natureza particularista e contextual, ignora a idéia de interesse geral e o universo abstrato da lei (...) Aliás, na Idade Média, a palavra "Estado" só aparece, em latim, com um genitivo e letra minúscula (o status da Igreja, do Império, etc.), no sentido de: estado das coisas ou situação. O termo assume um tom absolutista no final do século XV: do status regni, passa-se para status sem mais (p. 65).

15 Esse fenômeno político ocorre quando o Estado – na qualidade de patrimônio público – é transformado em patrimônio privado, sob a égide das classes ou dos grupos dominantes.

16 O Estado acabou como sombra do que era, miríade em que suas imagens vão se apagando e suas inscrições sobrevivem somente através das metáforas. Vejamos em Debray (1994): É precisamente porque o Estado é, em si mesmo, invisível e inaudível que ele deve se fazer ver e ouvir, custe o que custar, por metáforas. Chamar a atenção de todos através de sinais combinados, observáveis e tangíveis. Sem essa sinalização, a crença não teria objeto, nem meios de transmissão (p. 61).

17 O Estado de Direito Clássico definia-se como o império da lei (independentemente da legitimidade), ao passo que hoje se destaca o império do direito, porque a legitimidade outrora relegada agora é essencial.

18 Também foi adaptada pelo auditor de sistemas governamentais John Bourn, usando um artigo acadêmico dos professores Helen Margetts (University College London) e Patrick Dunleavy (London School of Economics and Political Science) (Margetts and Dunleavy, 2002).

19 Condenado ao estado de latência, limitado no estado de pujança sem manifestação ou exteriorização – estanque como a boa fé do indiciado, ou seja, que não saiu do papel, que por inércia permaneceu inerte, amorfo, indefinido e por fim irrealizável.

20 Em outra passagem, podemos analisar a lógica e o discurso descontínuo que forma a Matrix: — Neuromancer. A passagem para a terra dos mortos. Onde você está, meu amigo. Marie-France, minha senhora, preparou este caminho, mas o senhor dela a estrangulou antes que eu pudesse ler o livro dos seus dias. Neuro de nervos, os caminhos de prata. Romance. Necromante. Eu trago os mortos de volta, mas não, meu amigo, eu sou os mortos e a sua terra. — E o menino deu uns passos de dança, deixando as pegadas na areia. Riu. Uma gaivota gritou. — Fique. Se a sua mulher é um fantasma, ela não sabe disso. E você também não saberá (Gibson, 2003, p. 276).

Sobre os autores
Marcos Luiz Mucheroni

bacharel em Ciência da Computação pela UFSCar/SP, doutor em Engenharia Elétrica pela Poli/USP, professor de Paradigmas de Linguagens (graduação e pós-graduação) na Fundação UNIVEM de Marília e Teoria do Caos e Cibercultura (mestrado em Ciência da Informação) na UNESP de Marília, membro pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas, Integração e de Práticas Interativas (NEPI), filiado ao CNPq

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUCHERONI, Marcos Luiz; MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado virtual ampliado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 656, 24 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6621. Acesso em: 23 nov. 2024.

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