5 – DIREITO SUBJETIVO PÚBLICO DA PARTE, SUBSUNÇÃO E CAUSALIDADE NO PROCESSO.
Como se viu, não existe correlação exata entre poder discricionário e conceito juridicamente indeterminado. Um pode existir sem o outro e na maioria dos casos o poder do juiz é vinculado à lei, só existindo propriamente discricionariedade do juiz em alguns atos processuais quando se fala em instrução probatória ou requisição para manifestação de interesses marginais do jurisdicionado (31) (como, por exemplo, requisição para manifestação de órgãos ou entidades interessadas no procedimento de inconstitucionalidade − art. 482, § 3º, CPC).
Para os casos onde exista conceito jurídico indeterminado na lei, não há que se falar necessariamente em poder discricionário do juiz, e a liberdade deste está em determinar o perímetro das determinações legais, estando vinculado uma vez realizada a pontuação dos contornos legais para o caso concreto.
Passível, portanto, defender-se a tese de que não existe aqui poder discricionário; ao revés, o que existe, é direito subjetivo público do jurisdicionado de ver seu pedido deferido, uma vez preenchido determinado conceito vago e constatado que dali advêm conseqüências que lhe garantem provimento favorável. Não há escolha alguma para o juiz neste ponto, pois a conseqüência é determinada pela lei.
Conhecida é a definição de direito subjetivo de que é o poder que um sujeito de direito tem de exigir (vontade) a subordinação de um interesse alheio ao próprio (32). A bem da verdade, configurados os requisitos legais para determinado provimento judicial, surge o poder de exigir a aplicação da norma em prol daquele sujeito de direito que requereu a favor de si o provimento.
Impossível não ser lembrada aqui célebre lição de CHIOVENDA, sempre repetida nos mais comezinhos Manuais de Direito, traduzida em fórmula tão justa quão elegante: o processo deve proporcionar a quem tenha razão tudo aquilo e precisamente aquilo que se tem direito de conseguir (33).
Disso resulta, certamente, também o entendimento de que o processo é o melhor meio para se tutelar direitos subjetivos do jurisdicionado, pois traz em seu bojo todas as garantias necessárias e reconhecidas ao sujeito de direito.
Se existe poder da vontade do jurisdicionado exatamente porque tal poder (facultas agendi) é reconhecido e outorgado pelo ordenamento jurídico (norma agendi), impossível não se vislumbrar a existência de direito subjetivo do jurisdicionado para pleitear com base em determinada regra que estabelece como conseqüência uma situação jurídica que lhe é favorável quando interpretada a norma mesmo diante do preenchimento de conceitos vagos ali existentes.
É preciso estabelecer-se uma causalidade entre um fato-causa e um fato-efeito até mesmo no processo, que tem o condão de tornar clara, por todas as técnicas nele inerentes e todos os princípios que dele advêm, qual especificamente a causa posta em questão e qual a norma que ali incide, preenchendo-se eventual conceito juridicamente indeterminado com a atuação adstrita do juiz à causa, o que necessariamente gera uma conseqüência previamente estabelecida pela lei – vinculatividade e causalidade.
Tanto juízes, quanto jurisdicionados, valem-se de categorias da causalidade para estabelecer a correlação entre o fato-causa e o fato-efeito e esta causalidade é normativamente estabelecida. Daí a necessária vinculação do juiz à lei para deferir ou não pedidos, pouco importando que para isso ele tenha que definir qual a real extensão de certos conceitos juridicamente indeterminados no caso concreto.
Voltemos ao nosso exemplo da liminar em procedimento cautelar: o jurisdicionado observa que só poderá ver deferido o seu pedido acautelatório caso preenchido os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, ou constata que, no entender dele, pode ajuizar ação de usucapião porque está na posse de boa-fé. Todos esses conceitos – fumus boni iuris, periculum in mora e boa-fé – são juridicamente indeterminados, mas nem por isso a parte deixou de entendê-los de tal ou qual maneira e, uma vez preenchido tais conceitos, verificou que dali poderia lhe advir um benefício (conseqüência) imposto pela lei, pois a causalidade é normativa.
Já o juiz estará obrigado a analisar a questão à luz (i) da constatação de qual o caso (fato-causa) que ali está em discussão; (ii) de qual a norma que ali deve incidir e, uma vez incidindo norma que contenha conceito juridicamente indeterminado, indagar (iii) qual o fato-efeito que dali advém após a interpretação da norma e preenchimento do conceito seguindo elementos tirados do próprio sistema jurídico (ação vinculada).
Assim, verificará o magistrado se à pretensão do jurisdicionado corresponde um direito abarcado pela lei e, como se viu, antes disso irá se valer do processo para estabelecer, em ato vinculado à lei, qual a conseqüência jurídica que aquela causa pede. Vale lembrar, que por força da subsunção, é a regra que qualifica o fato constatado, não o contrário.
O método subsuntivo clássico, portanto, cede vez ao que chamo de "integração subsuntiva", pois quando existe indeterminabilidade semântica do conceito, necessário se faz certo juízo valorativo do intérprete, desde que este juízo valorativo esteja respaldado pelo sistema jurídico onde o intérprete esteja integrado – razoabilidade, sociabilidade, operacionalidade etc.
Isto se dá porque, quando se está diante dessa vaguidade semântica, que, frise-se, é bem vinda em certas situações, entre a premissa maior, que corresponde à norma jurídica, e a premissa menor, que corresponde ao fato-causa, existem algumas outras formulações de premissas intercaladas com juízos valorativos do intérprete que estabelecem uma maior integração entre premissa maior e menor ao se aplicar a norma e se constatar o fato-efeito.
Como pontuou LOURIVAL VILANOVA (34), "sem hipótese fática de incidência, e sem resultados eficaciais deonticamente configurados, nem o fato-causa nem o fato-efeito entram em consideração". Justamente por este motivo e por se vislumbrar a aqui denominada "integração subsuntiva" é que se analisa a causalidade no processo.
Daqui advém uma outra lição que pode ser defendida: a de que o processo, em um primeiro momento, pode ser pensado como meio de se chegar à constatação concreta de qual o fato-causa e qual o fato-efeito definido para aquele fato-causa constatado. Note-se, desde já, que para o fato-efeito, ou seja, para a conseqüência que advenha do fato-causa, não há ato de vontade alguma do juiz para constatá-lo, uma vez que ele é normativo e já predefinido no sistema, mesmo que para a constatação do fato-causa o juiz tenha que preencher conceitos juridicamente indeterminados.
Em um segundo momento, o processo pode ser pensado como o único meio legítimo de se validar a subsunção para definir se existe uma causalidade que faça com que, para aquele fato-causa encontrado esteja correlacionado um fato-efeito predefinido, sobre o qual o juiz não tenha poder algum para regulá-lo, só existindo ato de vontade do juiz, aqui, na concreta aplicação da norma que regula o fato-efeito, que deve se incorporar ao estado ou ao patrimônio do jurisdicionado.
Ora, isto nada mais é do que a própria declaração de que o jurisdicionado está resguardado por seu direito subjetivo e que o Estado-juiz deve tutelar este direito valendo-se das técnicas que advém do processo e dos princípios que abarcam o próprio processo.
Como se viu, não há discricionariedade alguma na interpretação da norma que incide no fato-causa e nem escolha da solução possível para o problema uma vez definido qual este fato-causa, ainda que para tanto o juiz tenha que ter interpretado tal ou qual norma que contenha conceito jurídico indeterminado. Só existe discricionariedade judicial quando se fala em análise probatória em operacionalização de interesses marginais do jurisdicionado.
6 – CONCLUSÃO.
Diante do que se expôs e analisou, impossível vislumbrar-se poder discricionário do magistrado quando se fala em interpretação de critérios legais para se constatar a existência de direito subjetivo público da parte no processo e é justamente por esta razão que o processo surge como meio eficaz de se garantir a correta aplicação da norma (fato-efeito) porque garante a clara percepção do fato-causa.
Ao se falar em conceito jurídico indeterminado não se vislumbra necessariamente o poder discricionário e tal assertiva é validada inclusive pela jurisprudência (RSTJ 148/133). A discricionariedade é encontrada além da interpretação da norma, do contrário não poderia existir porque antes disso só existe poder vinculado. Daí se falar, no âmbito do poder discricionário, em conveniência e oportunidade como meio para se atingir o fim determinado pela lei, que é sempre um interesse público.
O conceito jurídico indeterminado pode ser objeto de controle do Poder Judiciário e é a vaguidade semântica encontrada em certas leis com a finalidade de que a norma e seus princípios permaneçam sempre atualizados com o preenchimento daqueles conceitos vagos pelo aplicador do direito.
Esta vaguidad não é imperfeição lingüística; ao revés, é método bem utilizado pelo legislador em certas ocasiões em que seria inconveniente restringir a regra jurídica a termos pormenorizados e exaustivos, pois as situações fáticas são imprevisíveis e vão surgindo com o desenvolvimento da sociedade.
O preenchimento de conceitos jurídicos indeterminados pelo magistrado não se confunde com discricionariedade, pois a determinação desses conceitos jurídicos no caso concreto se faz com a análise apenas do fato-causa, enquanto a discricionariedade existe com olhos apenas para o fato-efeito.
A autorização de um poder discricionário para o magistrado importaria reconhecimento de decisões contra legem e desvinculadas do sistema, o que é inadmissível. A liberdade do juiz está apenas na determinação do contorno que a vaguidade do conceito pressupõe para o caso concreto no momento da interpretação da norma. Restringido o conceito no caso concreto, surge novamente a vinculação para o fato-efeito.
Essa busca de elementos dentro do sistema para o preenchimento de conceitos jurídicos indeterminados também não se confunde com discricionariedade porque esta, como já ressaltado, só existe quando desprendida da interpretação e entender o contrário seria negar a existência do próprio poder discricionário e validar somente o ato vinculado.
Se a conseqüência, uma vez preenchido o conceito vago, é normativa e causal e se incorpora à faculdade do sujeito de direito de exigir a prestação, pode-se perceber que não há nos casos dos conceitos jurídicos indeterminados uma necessária correlação com o poder discricionário. Antes, o que existe é direito subjetivo do jurisdicionado de ver precisamente aquele fato-efeito incorporado ao seu estado, personalidade ou patrimônio.
Somente o processo, com todos os seus princípios e garantias até mesmo constitucionais, pode legitimar a constatação do Estado-juiz de qual o fato-causa em evidência e garantir a aplicação do fato-efeito. Daí se fala em causalidade no processo para esta constatação e, por meio do que se pode chamar de "integração subsuntiva", estabelece a relação entre fato-causa e fato-efeito quando se está diante de conceito jurídico indeterminado.
Por fim, salienta-se que ainda que se possa falar em poder discricionário do magistrado na instrução processual ou em outros interesses secundários do jurisdicionado, não há de fato um poder discricionário para o deferimento de pedidos que se embasam em regras jurídicas que contenham conceitos vagos.
O que existe antes de tudo é direito subjetivo público da parte de ver seu pedido deferido caso, definido o alcance daquele conceito indeterminado no caso concreto, estabeleça a norma um fato-efeito que otimize a situação jurídica do jurisdicionado.
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