SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2 – O poder discricionário. 3 – Conceitos jurídicos indeterminados. 4 – A análise judicial de pedido fundado em lei que contenha conceito juridicamente indeterminado. Discricionariedade para o Deferimento? 5 – Direito subjetivo público da parte, subsunção e causalidade no processo. 6 – Conclusão. 7 – Bibliografia.
PALAVRAS-CHAVE: poder discricionário – discricionariedade judicial – conceito jurídico indeterminado – conceito vago – interpretação - concreção – subsunção-integrativa – direito subjetivo – vinculatividade – ato vinculado – causalidade – fato-causa – fato-efeito.
1 – INTRODUÇÃO.
Muito se tem falado em poder discricionário do juiz e o que fica estabelecido no senso comum é que a chamada discricionariedade judicial não é propriamente idêntica à administrativa.
Para a análise do tema discricionariedade judicial, importa esclarecer de imediato se há diversidade ontológica apta a separar aquele conceito da discricionariedade administrativa e o que vem a ser, de fato, o próprio poder discricionário.
Para tanto, antes da análise da existência da configuração de um poder discricionário para o deferimento dos pedidos judiciais fundados em lei que contenha conceito vago, necessária a análise preliminar do que se entende por aquele poder e a ligação que ele tem com os chamados conceitos jurídicos indeterminados.
2 – O PODER DISCRICIONÁRIO.
Vale lembrar de início que a discricionariedade se caracteriza por uma faculdade (facultas) − portanto concedida por lei − do aplicador do direito para escolher, dentre uma pluralidade de meios (1) -- também possibilitados pela lei – o alcance do fim que direciona o interesse da Administração.
Isto é fácil perceber quando se entende que a realidade do mundo empírico é polifacética e heterogênea (2) e comporta inúmeras variantes e, se a lei todas as vezes regulasse vinculadamente a conduta do administrador, padronizaria sempre a solução, tornando-a invariável mesmo perante situações que necessitariam ser distinguidas e que não se poderia antecipadamente catalogar com segurança. (3)
Vem à calhar o conceito que o professor CRETELLA JÚNIOR (4) dá ao poder discricionário, pois registra que "ao livre e legal pronunciamento da autoridade administrativa que, consultando a oportunidade e a conveniência da medida, se traduz em ato desvinculado de prévia regra estrita de direito condicionante de seu modo de agir, num dado momento, damos o nome de poder discricionário da administração".
Daí a conveniência e oportunidade existente na escolha dos meios, ou seja, o modus operandi para o fim a ser atingido. Se se fala em "escolha", sobrepuja-se certa margem de liberdade ao administrador para eleger, segundo critérios razoáveis, um dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis perante o caso concreto para adotar a solução mais conveniente para a satisfação da vontade legal (interesse público).
Como é o fim, não a vontade, que domina as formas de administração pública, aqui não seria diferente. Sobressaem-se daí dois pontos sobre o conceito de discricionariedade: o primeiro é a escolha de uma dentre várias opções jurídicas de ação; o segundo, a percepção do fim (sempre um interesse público) pelo administrador e juízo subjetivo para operacionalizar a solução.
Este juízo subjetivo, entretanto, deve estar vinculado a dois limites: um externo − legalidade; outro interno − alcance do fim com a escolha realizada. É por isso que existe distinção clara entre discricionariedade e arbitrariedade. Mais: é patente o sentimento doutrinário (5) no sentido de que quando se fala em discricionariedade também se fala em indeterminação da lei quanto ao modo específico de realizar algum ato jurídico (meio).
Diante do que foi externado é fácil perceber, como bem pontuou CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (6), que o fundamento da discricionariedade reside no intento de se cometer à autoridade o dever jurídico de buscar identificar e adotar a solução apta a, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei, bem como reside na inexorável contingência prática de servir-se de conceitos pertinentes ao mundo do valor e da sensibilidade, os quais são conceitos chamados vagos, fluidos ou imprecisos.
Sobre esses conceitos vagos ou fluidos, neste trabalho chamados de "jurídicos indeterminados" ou "juridicamente indeterminados", passaremos a discorrer a seguir, não sem antes registrar que em todos os nomes atribuídos a tais conceitos existe uma imprecisão lógica, pois, se se trata de conceito, este não pode ser indeterminado.
3 – CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS.
O conceito jurídico indeterminado é a vaguidade semântica existente em certa norma com a finalidade de que ela, a norma, permaneça, ao ser aplicada, sempre atual e correspondente aos anseios da sociedade nos vários momentos históricos em que a lei é interpretada e aplicada.
Como registrou LOURIVAL VILANOVA (7), "as normas são postas para permanecer como estruturas de linguagem, ou estruturas de enunciado, bastantes em si mesmas, mas reingressam nos fatos, de onde provieram, passando do nível conceptual e abstrato para a concrescência das relações sociais, onde as condutas são pontos ou pespontos do tecido social."
A vaguidade de um conceito, portanto, não é imperfeição lingüística, mas sim uma característica bastante pertinente em certas situações que fazem com que busque o intérprete maior perfeição na valoração significante−significado, o que gera certa atualização da norma.
Não pode existir neste ponto, entretanto, confusão com a integração da lei pela analogia, costumes e princípios gerais do direito (art. 126, CPC), pois a utilização dos métodos de integração só se dá em momento bastante posterior e em raras ocasiões, quando esgotados, sem resultado, os critérios interpretativos.
Com a usual percuciência, o mestre BARBOSA MOREIRA (8), ao estudar o tema, asseverou que "nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traços de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica, isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico."
Isto é uma técnica utilizada pelo legislador para, ao fornecer algumas indicações genéricas, fazer com que o juiz, ao aplicar a regra jurídica, possa dentro do sistema positivo e codificado, determinar em cada caso o perímetro e o contorno das determinações legais.
São exemplos desses conceitos as expressões como "boa fé", "perigo iminente", "divisão cômoda", "fumus boni iuris" etc. Esta denominação "conceitos juridicamente indeterminados" parece ser utilizada no mesmo sentido do que há muito se estuda no campo penal sobre os chamados "elementos normativos do tipo" (normative Tatbestandselemente).
Assim foi que, com a utilização deste recurso pelo legislador, que em muitos casos são bem-vindos, a doutrina passou a estudar como se dá este cuidado do juiz ao preencher, no curso do processo, essas zonas cinzentas permeadas de valorações de quem está inserido em dado momento histórico na sociedade. A concreção, por assim dizer, passou a ser melhor estudada no início do século XX com grande enfoque para o método a subsunção.
Daí a importância dos conceitos juridicamente indeterminados (unbestimmte Rechtsbergrieffe) da norma no momento de se realizar a subsunção, ou seja, quando cabe ao juiz determinar se o fato singular e concreto com que se defronta corresponde ou não ao modelo abstrato cujo conteúdo não está exaustivamente definido.
Portanto, quando chamado pelo jurisdicionado a aplicar a lei e constatado que esta contenha aquelas vaguidades semânticas, após definido o fato existente sobre o qual a lei deva recair, o juiz se depara com um obstáculo que deve ser transposto com as técnicas de interpretação legal: como preencher o conceito juridicamente indeterminado e quais as escolhas que ele tem para definir as conseqüências que dali advenham?
4 – A ANÁLISE JUDICIAL DE PEDIDO FUNDADO EM LEI QUE CONTENHA CONCEITO JURIDICAMENTE INDETERMINADO. DISCRICIONARIEDADE PARA O DEFERIMENTO?
Muito embora seja comum a afirmação segundo a qual o magistrado avalia a concessão ou não, por exemplo, da medida liminar requerida em procedimento cautelar com uso da discricionariedade, tenho certo que essa afirmação está muito longe de ser absolutamente verdadeira.
Isso porque, ainda no exemplo acima abordado, toda e qualquer medida liminar, seja ou não acautelatória, vem adornada de seus requisitos autorizadores, que são legais, mesmo que contenham conceitos indeterminados. Também a fundamentação para a concessão dessas medidas judiciais é sempre vinculativa para o julgador e partes, pois as conseqüências são inarredáveis.
Pressupõe-se, de início, o reconhecimento de que a discricionariedade é certa margem de liberdade que remanesce ao administrador para "eleger" razoavelmente um dentro dois comportamentos cabíveis no caso concreto, a fim de se adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade imposta pela lei, quando não se possa extrair objetivamente uma relação unívoca para a situação vertente (9).
Logo se antevê, pela simples análise do que vem a ser de fato poder discricionário, que o juiz não tem o poder de eleger um dentre dois comportamentos cabíveis quando se fala em deferimento liminar no âmbito cautelar (10), mas sim a liberdade de preencher os conceitos analisados para a constatação dos requisitos conhecidos como fumus boni iuris e periculum in mora.
Assevero que o juiz só tem a liberdade de preencher os conceitos vagos no momento da decisão pelas regras da experiência jurídica aplicada ao concreto porque a ele é atribuído o poder da interpretação adequada da lei (que contém os conceitos vagos) para o caso. Vale lembrar que o poder do juiz sempre é restringido pelo princípio do dispositivo e sua cognição deve sempre estar adstrita à demanda e à causa de pedir.
Vale lembrar como mais um argumento para se declarar a inexistência de poder discricionário para a concessão das liminares cautelares, por exemplo, que o fim imposto pela lei, e não a vontade do agente, domina todas as formas de administração, inclusive no âmbito da discricionariedade.
Já no que diz respeito ao Poder Judiciário, como, por exemplo, a concessão das liminares cautelares, é a causa, o fato jurídico delineado, que domina o fim, somando-se a isto o entendimento de que a liberdade está apenas na interpretação da lei, na colheita dos elementos que definem o fato jurídico (fato-causa), não na escolha do melhor modo de atingir o resultado (fato-efeito), pois este é normativo e um só, além de existirem limitações dentro do sistema que fazem com que o juiz tenha que buscar o seu modus operandi dentro do próprio sistema. Isto se dá para o preenchimento de todo e qualquer conceito jurídico indeterminado no âmbito do judiciário.
Com isto se vê que o preenchimento dos conceitos vagos existentes na lei para a sua aplicação não se confunde com discricionariedade. Neste ponto, o mestre BARBOSA MOREIRA (11) nos aguça a visão para entendermos apenas o que um e outro fenômeno tem em comum, mas que de fato não se confundem: o ponto convergente está em que somente a particularidade de que ao papel confiado à prudência do aplicador da norma não se impõem padrões rígidos de atuação.
A diferença, e aqui continuo com a lição do mestre BARBOSA MOREIRA (12), é fundamental e está especificamente nos dois elementos estruturais da norma jurídica, a saber: "o fato (Tatsbestand, fattispecie) e o efeito jurídico atribuído à sua concreta ocorrência. Os conceitos indeterminados integram a discrição do ‘fato’ [que resulta no método da subsunção], ao passo que a discricionariedade se situa toda no campo dos efeitos."
Explico: no conceito indeterminado o papel do juiz é exaurido no preenchimento do conceito (fixação da premissa) que, uma vez preenchido, não tem o juiz mais qualquer poder no resultado que disso advirá (determinação legal do fim) − teoria da univocidade preconizada pelo austríaco TEZNER em contrapartida à teoria da multivalência defendida por BERNATZIK (13). Muito ao contrário é quando a própria escolha da conseqüência é que fica entregue à discricionariedade pelo modo que a ela se chegará.
O preenchimento desses conceitos normativos no âmbito do Judicário se dá com a busca de elementos dentro do sistema e, o que pode existir é aparente discricionariedade quando há erro no processo subsuntivo, pois o sistema não quer que haja decisões diferentes em casos semelhantes e, na hipótese de erro, apenas tolera (14) a discrepância das decisões e entrega aos jurisdicionados a chance da correção por recurso.
A discricionariedade, ao contrário, acabaria, caso erroneamente utilizada para a concessão ou não de um pedido fundado em lei que contenha esse conceito vago, por autorizar uma interpretação contra legem, buscada fora do ordenamento jurídico, a fim de satisfazer a escolha do fim que o juiz supostamente entenda como correto.
Esta hipótese, como aqui é defendido, não pode ser aceita até porque o ordenamento jurídico deve ser uno, completo, conforme os ensinamentos de BOBBIO (15) e, ao se evitar o positivismo naturalista (16) e adotar o positivismo crítico, que é normativo (KELSEN), correto perceber que, como esquema lógico da própria causalidade normativa, no qual o efeito é deonticamente (17) vinculado à causa (fato jurídico), nunca poderemos sair do sistema para correlatar fatos abarcados pelo próprio sistema. A própria colmatação de lacunas é garantida pelo sistema, como se vê, por exemplo, na previsão dos arts. 126 e 127 do CPC.
A liberdade do juiz, no sistema do direito positivo e codificado, consiste em determinar em cada caso o perímetro ou o contorno das determinações legais. Registrada a minha posição no sentido de que impossível e perigosa a decisão contra legem, o que poderá existir em certos casos, dado a fluidez desses conceitos na lei, é uma decisão praeter ou secundum legem, com uma certa margem de criatividade jurídica, desde que autorizada pelo ordenamento (18).
Essa criatividade é o que CAPPELLETTI (19) e DWORKIN (20), cada um ao seu modo, estabelecem como existente quando o juiz cria direito diante de um caso lacunoso, difícil e atípico, mas nunca uma nova lei, uma vez que inconcebível esta hipótese (21).
Nos chamados hard cases, onde o nosso ordenamento permite o julgamento se valendo da analogia, dos costumes, dos princípios gerais do direito (art. 126, CPC) e da eqüidade (art. 127, CPC), ainda assim é impossível o julgamento contra legem ou a configuração de algum poder discricionário para a escolha do fim a ser atingido no processo, pois de qualquer modo o juiz estará vinculado ao sistema jurídico (22), mesmo que não à letra fria da lei por se valer dos princípios gerais do direito, por exemplo.
Assim, em alguns casos a criatividade do juiz é exercida em face desses hard cases regidos por normas jurídicas positivadas que contêm conceitos "permeáveis", mas isto não quer dizer que o juiz esteja ali exercendo alguma discricionariedade, uma vez que, após preenchido o conceito por juízo valorativo racional (23) buscado com os dados constatados na causa e a aplicação das regras encontradas no sistema jurídico, a decisão judicial estará vinculada aos efeitos da norma e ao próprio ordenamento jurídico.
Como bem observou SALVATORE SATTA (24), "a regra significa somente que o juiz, em suas funções, há de observar, como um elemento ineliminável, a norma jurídica regulatriz do caso em concreto, não lhe sendo lícito substituí-la por outra (ex.: eqüidade), salvo quando a lei para tanto e de modo expresso o autorizar".
Com tudo isso se percebe que preencher o conceito vago para aplicar a norma é o mesmo, portanto, que interpretá-la, trazer balizas para fazer com que a norma aplicada exista em diferentes momentos históricos, sem que o legislador tenha que alterá-la com o natural desenvolvimento social (25), de modo a possibilitar a absorção da realidade de maneira eficaz. Criar aqui significa realizar o acertamento (averiguação da norma e do fato) e "firmar a experiência jurídica do concreto" (26).
Isto é o que SAINZ MORENO (27) chamou de qualificação da realidade, ao asseverar que para se chegar à interpretação de um termo jurídico duas indagações são necessárias: uma diz respeito à própria significação do termo; outra é ligada ao próprio objeto e consiste em se indagar se aquele determinado objeto pode ser designado por aquele termo (28).
A busca de elementos dentro do sistema para a interpretação da norma vaga nunca poderá se confundir com a discricionariedade também porque esta vai além e só existe quando desprendida da interpretação, que é sempre vinculada ao sistema. Dizer o contrário seria negar o próprio poder discricionário e validar somente o ato vinculado. Do mesmo modo que a fé começa onde termina a razão (29), a discricionariedade começa onde termina a interpretação.
Esta idéia é chancelada também por GONÇALVES PEREIRA (30), que em seus estudos chegou à conclusão de que a discricionariedade começa onde acaba a interpretação e "reduzir a discricionariedade à simples formulação de um juízo é afinal negar o próprio poder discricionário, reconduzir todo o poder à vinculação e pôr-se em contradição manifesta com o Direito Positivo." Corretíssima e elucidativa a lição do mestre lusitano.
Por tudo se vê que a análise judicial de tudo o que é fundado em lei que contenha conceito jurídico indeterminado não está desvinculada de prévia regra estrita de direito condicionante e por isso mesmo se distingue do poder discricionário, uma vez que o juiz, ali, interpretando a lei e aplicando-a ao caso concreto, preenche apenas aquela zona cinzenta, mas todas as conseqüências, uma vez preenchido o conceito vago, já estão pré-determinadas e não poderá o juiz se furtar a isto porquanto todos os requisitos para a validade e eficácia do ato já estão delineados na legislação.
Se poder existe, então, este não é para o caso em estudo o do magistrado, mas sim do jurisdicionado, que tem direito subjetivo público de ver o seu pedido deferido quando preenchido todos os requisitos legais, ainda que contenha a lei na qual se funda o seu pedido esses conceitos vagos. É o que defenderei a seguir.