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A controvérsia acerca do recebimento da denúncia no processo penal

Agenda 14/06/2018 às 11:06

O recebimento da denúncia pelo juiz é o ato pelo qual o acusado passa a ser réu no processo, ou seja, aquela pessoa que contra si pesava a acusação de determinado ilícito penal passa a ter o peso de responder a uma ação penal. A partir do recebimento da denúncia, o réu é chamado ao processo através da citação para que possa apresentar sua defesa, sendo que, nos termos do artigo 363 do Código de Processo Penal, o processo terá completa sua formação com a citação do acusado.

Com o advento da Lei nº 11.719/08, gerou-se uma controvérsia acerca do momento em que a denúncia é recebida. Isso porque o artigo 396 do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação: Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Por outro lado, o artigo 399 do mesmo diploma legal prevê o seguinte: Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.

Nota-se que os dispositivos em questão mencionam, em momentos processuais distintos, o termo recebimento da denúncia. É de se ressaltar que, infelizmente, não andou bem o legislador ao prever o mesmo termo nos dois artigos, o que acabou gerando a discussão jurídica citada.

Não se trata de mera discussão acadêmica ou de formalismo exagerado. Na realidade, o momento em que se considera recebida a denúncia possui grande influência, no sentido de que tal decisão acaba por interromper o prazo prescricional, nos termos do artigo 117, I, do Código Penal.

Em um primeiro momento, sustentou-se que a denúncia teria de ser recebida em duas oportunidades, uma quando oferecida pelo Ministério Público e outra após a apresentação da resposta à acusação pelo réu.

Adotar tal solução não parece ser a maneira mais adequada de se resolver o impasse. Primeiro porque acarretaria em grandes discussões sobre quando se consideraria interrompida a prescrição, o que não seria simples de se solucionar. Por outro lado, não parece lógico que o magistrado tenha de receber por duas vezes a mesma peça processual. Seria o mesmo que, guardadas as devidas diferenças, o juiz cível receber a petição inicial, e recebê-la novamente após a contestação do demandado.

Destarte, a doutrina acabou por se dividir em duas correntes, onde uma sustenta que o recebimento da denúncia se dá através do artigo 396 (antes da resposta à acusação) e a outra que o recebimento opera-se após o cumprimento do disposto no artigo 399 do Código de Processo Penal (após a resposta à acusação).

A parte da doutrina que sustenta que o recebimento da denúncia se dá de acordo com o artigo 399 do Código de Processo Penal possui tal entendimento baseado em sólidos argumentos jurídicos.

Afirmam, por primeiro, ser praxe nas legislações mais modernas que o acusado primeiro se manifeste sobre a acusação que lhe é imputada, para que depois se transforme eventualmente em réu. Trata-se de uma oportunidade ao contraditório anterior ao recebimento da peça acusatória.

Expõem que a Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas) e a Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), seguindo essa tendência mais moderna, passaram a prever o recebimento da denúncia após manifestação do acusado.

Não obstante tal entendimento possuir relevante fundamentação, com a devida vênia aos renomados doutrinadores que assim sustentam, a interpretação mais coerente é que o momento do recebimento da denúncia é o do artigo 396 do Código de Processo Penal.

Um dos primeiros argumentos sobre tal tese pode ser visualizado através da lógica estabelecida no Código de Processo Penal. Assim, o artigo 395 trata da rejeição da denúncia. Passando de tal fase, se não for caso de rejeição do artigo 395, o juiz recebe a denúncia através do artigo 396. Inclusive, o artigo 396 faz menção a não rejeição liminar da denúncia. Após, é dada oportunidade ao acusado para apresentar resposta escrita (art. 396-A). Depois, com a denúncia devidamente recebida e com a peça escrita do réu em mãos, o juiz passa a analisar se trata-se de caso de absolvição sumária, o que vem regulado pelo artigo 397. E daí em diante passa a prever toda a instrução criminal, já com a designação de audiência.

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Outro argumento interessante diz respeito à expressão absolvição sumáriautilizada pelo legislador. Isso porque só poder se absolvido aquele que é réu. Nessa sistemática, se o juiz já não tivesse recebido a denúncia no artigo 396, o artigo 397 não falaria em absolvição sumária, mas apenas em rejeição da denúncia, uma vez que ela ainda não teria sido recebida e o acusado já teria apresentado sua resposta escrita.

Assim, depois de oferecida a denúncia, em um primeiro momento o juiz analisa seus requisitos, inclusive o cumprimento ao artigo 41 do Código de Processo Penal, o que faz através do artigo 395 do referido diploma processual. Entendendo que os requisitos estão preenchidos, o juiz recebe a denúncia, e após a apresentação de resposta pelo acusado passa a analisar se é o caso de absolvê-lo sumariamente, de acordo com o que prevê o artigo 397 do Código de Processo Penal.

Nessa linha de entendimento, a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

HABEAS CORPUS. PECULATO (ARTIGO 312 DO CÓDIGO PENAL). ALEGADA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DEU PROSSEGUIMENTO À AÇÃO PENAL, AFASTANDO AS HIPÓTESES DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA DO ARTIGO 397 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DESNECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO COMPLEXA. POSSIBILIDADE DE MANIFESTAÇÃO JUDICIAL SUCINTA. NULIDADE NÃO CARACTERIZADA. DENEGAÇÃO DA ORDEM.

1. De acordo com a melhor doutrina, após a reforma legislativa operada pela Lei 11.719/2008, o momento do recebimento da denúncia se dá, nos termos do artigo 396 do Código Penal, após o oferecimento da acusação e antes da apresentação de resposta à acusação, seguindo-se o juízo de absolvição sumária do acusado, tal como disposto no artigo 397 da Lei Processual Penal.

2. A alteração legal promovida pelo referido diploma legal criou para o magistrado o dever, em observância ao princípio da duração razoável do processo e do devido processo legal, de absolver sumariamente o acusado ao vislumbrar hipótese de evidente atipicidade da conduta, a ocorrência de causas excludentes da ilicitude ou culpabilidade, ou ainda a extinção da punibilidade, situação em que deverá, por imposição do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, motivadamente fazê-lo, como assim deve ser feito, em regra, em todas as suas decisões [...]. (5ª Turma, HC 210319/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 27/09/2011).

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 396-A DO CPP. LEI nº 11.719/2008. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. MOMENTO PROCESSUAL. ART. 396 DO CPP. RESPOSTA DO ACUSADO. PRELIMINARES. MOTIVAÇÃO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

I - A par da divergência doutrinária instaurada, na linha do entendimento majoritário (Andrey Borges de Mendonça; Leandro Galluzzi dos Santos; Walter Nunes da Silva Junior; Luiz Flávio Gomes; Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto), é de se entender que o recebimento da denúncia se opera na fase do art. 396 do Código de Processo Penal.

II - Apresentada resposta pelo réu nos termos do art. 396-A do mesmo diploma legal, não verificando o julgador ser o caso de absolvição sumária, dará prosseguimento ao feito, designando data para a audiência a ser realizada. [...] (5ª Turma, HC 138089/SC, Rel. Min. Felix Fischer, j. 02/03/2010).

No mesmo sentido, o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

PENAL. HABEAS CORPUS. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 11.719/08. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA ANTERIOR. ATO VÁLIDO. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. ORDEM DENEGADA. 1 - Se por um lado não se pode negar que a lei processual penal possui aplicação imediata, por outro, não pode a novel legislação retroagir para atingir atos que já foram praticados. O próprio artigo  do CPP, ao estabelecer que a lei processual penal se aplica desde logo, ressalva expressamente que isto deve ocorrer sem prejuízo da validade dos atos praticados sob a vigência da lei anterior; 2 - Os atos já praticados englobam também seus respectivos efeitos e conseqüências jurídicas, ou seja, se a denúncia havia sido recebida antes da entrada em vigor da Lei 11.719/08, é certo que o curso da prescrição também foi interrompido na mesma ocasião, porquanto o que se fez, in casu, foi adequar o rito processual às novas regras, respeitando-se os atos praticados anteriormente; 3 - Mesmo com a edição da Lei nº 11.719/08, o momento processual para o recebimento da denúncia é anterior à citação dos acusados para apresentação de resposta à acusação, nos termos do artigo 396 do Código de Processo Penal; 4 - Ordem denegada. (2ª Turma, HC 46783, Autos nº 0023581-39.2011.4.03.0000, Rel. Des. Cotrim Guimarães, j. 29/11/2011).

Por fim, O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo compartilha do mesmo entendimento, conforme segue:

DENÚNCIA. Rejeição parcial após a resposta do acusado. Inadmissibilidade. Recebimento da denúncia que se dá apenas na fase do art. 396, do CPP, antes mesmo da apresentação de defesa, ocorrendo na fase do art. 399, do mesmo Código mera ratificação, diante do afastamento das teses defensivas. Fase processual em que existe apenas a possibilidade de absolvição sumária, nos termos do artigo 397, do CPP ou de prosseguimento regular da ação penal. Decisão anulada, para que outra seja proferida, com observância das formalidades legais. Recurso provido. (5ª Câmara Criminal, Recurso em Sentido Estrito 0102179-47.2009.8.26.0050, Rel. Des. Tristão Ribeiro, j. 12/05/2011).

Recurso em sentido estrito Extinção da Punibilidade - Prescrição da pretensão punitiva Recebimento da denúncia Alterações introduzidas pela Lei n. 11.719/08 não trouxeram dois momentos distintos para a admissão da peça acusatória A redação do artigo 396 do CPP deixa clara a intenção do legislador de uma única decisão de recebimento, ou seja, aquela que deve ser proferida logo após o oferecimento da denúncia pelo membro do 'Parquet' Entendimento corroborado pelo histórico legislativo do projeto de reforma resultante na Lei n. 11.719/08 Prescrição não efetivada Sentença reformada Recurso provido. (5ª Câmara Criminal, Recurso em Sentido Estrito 0013870-72.2002.8.26.0510, Rel. Des. Sérgio Ribas, j. 05/05/2011).

Habeas Corpus. Prescrição pela pena abstrata Interrupção do lapso que teria ocorrido somente após a decisão que recebeu a denúncia, nos termos do art. 399. Extinção da punibilidade. Inocorrência. A Lei n"11.719/08, em redação dúbia e truncada, aparentemente, prevê dois momentos distintos para o admissão da acusação. Não existem, porém, dois recebimentos. O que há, na verdade, é má redação dos dispositivos que regulamentam a instauração da instância penal. A lamentável opção legislativa pela inclusão de um verbo no art 396 - a 'mesóclise da discórdia' -, acarreta diversas perplexidades. Mas, bem ou mal, foi essa a redação aprovada pelo Congresso Nacional Impasse que deve ser solucionado mediante interpretação corretiva do art. 399, com abdução da expressão e 'recebida a denúncia ' nele constante. Existência, pois, de apenas um único, definitivo e irretratável recebimento da acusação. Na espécie, tal decisão foi proferida antes do decurso integral do prazo prescricional e antes mesmo da alteração legislativa. Preservado, pois, o poder punitivo do Estado Ordem denegada, vencido o Relator Sorteado. (HC 0183861-77.2009.9.26.0000, Rel. Des. Péricles Piza, j. 30/11/2009).

Portanto, analisando-se os artigos do Código de Processo Penal e os julgados colacionados, vê-se que a melhor interpretação é a que sustenta que o recebimento da denúncia ocorre antes do acusado apresentar resposta escrita, sendo, por consequência, o momento em que se opera a interrupção da prescrição.

Sobre o autor
André Boccuzzi de Souza

Advogado; Professor universitário de direito do consumidor e outras disciplinas; Empregado público da Fundação Procon/SP. Mestrando em direito da sociedade da informação na FMU; Especialista em direito constitucional pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus; Bacharel em direito pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Associado do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Publicações: http://independent.academia.edu/AndreBoccuzzideSouza

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente publicado no Informativo Jurídico Consulex (ISSN 1980-2501), v. 22, p. 15/16, 2012. Disponível eletronicamente em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=7197

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