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A prevalência dos tratados internacionais que versam sobre a ordenação do transporte internacional sobre a proteção do consumidor: aplicação das Convenções de Varsóvia e de Montreal como limitadoras da responsabilidade das transportadoras aéreas

Agenda 21/06/2018 às 11:12

O artigo aborda a antinomia entre as disposições do art. 5º, XXXII, que consagra a proteção do consumidor, e do art. 178 da Constituição, que prevê a ordenação do transporte internacional por acordos internacionais, destacando a prevalência deste e o ente

Introdução

            Entre os passageiros de companhias aéreas é raro encontrar alguém que não tenha experimentado algum dissabor decorrente da prestação defeituosa do serviço. Esses passageiros, eventualmente, sofrem danos para os quais reclamam reparação, trazendo consigo, em tal momento, uma expectativa de que a reparação seja devidamente abrangente e baseada no conhecimento geral da legislação protetiva do consumidor. Todavia, no caso de transporte internacional, por força de acordos internacionais celebrados pelo Brasil, há uma limitação da obrigação dos transportadores no que toca à reparação de danos materiais.

            Nesse sentido, é importante conhecer o aparente conflito entre o art. 5º, XXXII, e o art. 178 da Constituição e como ele se resolve com a prevalência do último, bem como a posição manifestada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 636331 e no ARE 766618.

A prevalência dos tratados internacionais que versam sobre a ordenação do transporte internacional sobre as disposições do Código de Defesa do Consumidor: aplicação das Convenções de Varsóvia e de Montreal como limitadoras das obrigações das transportadoras aéreas

Por obra e sabedoria do constituinte originário, a Constituição Federal previu, no seu art. 5º, inciso XXXII, que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

Considerando que a defesa do consumidor é contemplada, justamente, no aludido art. 5º, inciso XXXII, no Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), no Capítulo I (“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”), é induvidoso que se consubstancia em cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, da Constituição), que, destarte, não pode ser reduzida ou abolida.

Em vista desse cenário e, mais ainda, em atendimento ao comando dado pelo art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o legislador infraconstitucional, com um certo atraso – reconheça-se –, editou a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, também conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, em diversos aspectos, representou um enorme avanço e colocou o Brasil na vanguarda da proteção do consumidor.

Especificamente no tocante à reparação de danos decorrentes de defeito na prestação de serviços, extrai-se do CDC (art. 14) e sem qualquer descompasso com o Código Civil que o fornecedor de serviços responde sem qualquer tarifação ou limitação. Confira-se:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. §§ Omissis.

Vale anotar que essas disposições do CDC se coadunam perfeitamente com os princípios institutivos e orientadores da proteção do consumidor e, ademais, com os princípios jurídicos imemoriais que remontam ao neminem laedere (dever jurídico de não lesar ninguém).

Veja-se, a propósito, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já afirmou em julgado que “o ressarcimento não constitui penalidade; é consequência lógica do ato ilícito praticado e consagração dos princípios gerais de todo ordenamento jurídico: suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), honeste vivere (viver honestamente) e neminem laedere (não causar dano a ninguém)” (REsp 1028330/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 12/11/2010).

Todavia, é preciso observar que, erigindo ressalvas a essas normas de regência da proteção do consumidor, em paralelo à regra do art. 5º, XXXII, a Constituição previu no seu art. 178, § 1º, também por obra do constituinte originário, que “a ordenação do transporte internacional cumprirá os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”. Não há aí nenhuma previsão assertiva no sentido de que a proteção do consumidor deva ser limitada, mas isso, à toda evidência, também não está excluído, podendo, eventualmente, constar dos acordos internacionais.

Não se pode olvidar que aquela previsão contida no texto original do § 1º do art. 178 ainda persiste como regra constitucional, conquanto, agora, por força da Emenda Constitucional nº 7, de 1995, tenha sido deslocada para o caput do artigo, in litteris:

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995). Parágrafo único. Omissis.

Na prática, esse dispositivo constitucional viabilizou a celebração de tratados internacionais pelo Brasil e a assunção de compromissos que limitam a obrigação dos transportadores internacionais em relação à reparação de danos materiais, o que se dá de maneira bastante distinta da proteção hoje conferida pelo Código de Defesa do Consumidor.

A chamada tarifação dos danos materiais a serem eventualmente reparados pelo transportador aéreo internacional está prevista na Convenção de Varsóvia (“Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional”), promulgada pelo Decreto nº 20.704 de 24 de novembro de 1931, e da Convenção de Montreal (“Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999), promulgada pelo Decreto nº 5.910, de 27 de setembro de 2006, que foram devidamente incorporadas à legislação pátria.

Cabe advertir, com relação à regra do art. 178 da Constituição, que o Brasil não adotou a teoria desenvolvida por Otto Bachof sobre a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias, de modo que as normas da espécie – originárias − sempre serão consideradas constitucionais e impassíveis de controle de constitucionalidade (Pedro Lenza. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 246). Ilustrativa dessa afirmação é a seguinte ementa de julgado colhida do acervo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF), in litteris:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI. Inadmissibilidade. [...]. Norma constitucional originária. Objeto nomológico insuscetível de controle de constitucionalidade. Princípio da unidade hierárquico-normativa e caráter rígido da Constituição brasileira. Doutrina. Precedentes. [...]. Não se admite controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte originário. (ADI 4097 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008 PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-02 PP-00249 RTJ VOL-00207-02 PP-00605 RT v. 98, n. 880, 2009, p. 95-98 RF v. 105, n. 401, 2009, p. 401-404)

Com isso, tendo por suporte as disposições superiores emanadas da Constituição, os eventuais acordos internacionais firmados pela República Federativa do Brasil e que envolvam a ordenação do transporte internacional, quando inconciliáveis, prevalecerão sobre o Código de Defesa do Consumidor. Esse, aliás, é o entendimento que restou firmado pelo STF no julgamento do RE 636331, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes e assim ementado:

Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Extravio de bagagem. Dano material. Limitação. Antinomia. Convenção de Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. 3. Julgamento de mérito. É aplicável o limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais. 5. Repercussão geral. Tema 210. Fixação da tese: "Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor". 6. Caso concreto. Acórdão que aplicou o Código de Defesa do Consumidor. Indenização superior ao limite previsto no art. 22 da Convenção de Varsóvia, com as modificações efetuadas pelos acordos internacionais posteriores. Decisão recorrida reformada, para reduzir o valor da condenação por danos materiais, limitando-o ao patamar estabelecido na legislação internacional. [...]. (RE 636331, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017)

(Destacou-se)

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Do voto do Ministro Gilmar Mendes no referido julgamento (RE 636331), é pertinente trazer a lume os seguintes excertos, bastante elucidativos inclusive quanto às previsões dos tratados internacionais pertinentes e especificação da tarifação:

[...]

O cerne da discussão jurídica trazida no recurso extraordinário está em determinar se os tratados internacionais subscritos pelo Brasil, notadamente a Convenção de Varsóvia e alterações posteriores, devem prevalecer sobre o Código de Defesa do Consumidor para efeito de limitar a responsabilidade das empresas de transporte aéreo internacional por extravio de bagagem.

A antinomia se estabelece, a princípio, entre o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o disposto no art. 22 da Convenção de Varsóvia, introduzida no direito pátrio pelo Decreto 20.704, de 24 de dezembro de 1931, que preestabelece limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação.

A disposição do art. 22 da Convenção de Varsóvia, “Convenção para a Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional”, tem o seguinte teor, in verbis:

“ARTIGO 22.

(1) No transporte de pessoas, limita-se a responsabilidade do transportador, à importância de cento e vinte e cinco mil francos, por passageiro. Se a indenização, de conformidade com a lei do tribunal que conhecer da questão, puder ser arbitrada em constituição de renda, não poderá o respectivo capital exceder aquele limite. Entretanto, por acordo especial com o transportador, poderá o viajante fixar em mais o limite de responsabilidade.

(2) No transporte de mercadorias, ou de bagagem despachada, limita-se a responsabilidade do transportador à quantia de duzentos e cincoenta francos por kilogramma, salvo declaração especial de "interesse na entrega", feita pelo expedidor no momento de confiar ao transportador os volumes, e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual. Neste caso, fica o transportador obrigado a pagar até a importância da quantia declarada, salvo se provar ser esta superior ao interesse real que o expedidor tinha entrega.

(3) Quanto aos objectos que o viajante conserve sob guarda, limita-se a cinco mil francos por viajante a responsabilidade do transportador.

(4) As quantias acima indicadas consideram-se referentes ao franco francez, constituido de sessenta e cinco e meio milligrammas do ouro, ao titulo de novecentos millesimos de mental fino. Elas se poderão converter, em numeros redondos na moeda nacional de cada, pais.”

O disposto no art. 22 foi modificado sucessivamente pelo Protocolo de Haia, introduzido no direito brasileiro pelo Decreto 56.463, de 15 de junho de 1965, pelo Protocolo Adicional 4, assinado em Montreal, introduzido no direito brasileiro pelo Decreto 2.861, de 7 de setembro de 1998, e, finalmente, pela Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 59, de 19 de abril de 2006, e promulgada pelo Decreto 5.910, de 27 de setembro de 2006.

O Decreto 2.861, de 7 de setembro de 1998, que promulga o Protocolo Adicional 4, altera a redação do art. 22, nos seguintes termos:

“Artigo VII

No artigo 22 da Convenção:

a) no item 2º alínea a) são suprimidas as palavras ‘e de mercadorias’, b) após o item 2º alínea a), é acrescentado o seguinte item:

b) No transporte de mercadorias limita-se a responsabilidade do transportador à quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, salvo declaração especial de valor feita pelo expedidor no momento de confiar os volumes ao transportador e mediante pagamento de uma eventual taxa suplementar. Neste caso, fica o transportador obrigado a pagar até a importância da quantia declarada, salvo se provar ser esta superior ao valor real da mercadoria’.”

O último desses diplomas, a Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional (Decreto 5.910, de 27 de setembro de 2006), traz a seguinte disposição, em seu art. 22:

 “Artigo 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga

1. Em caso de dano causado por atraso no transporte de pessoas, como se especifica no Artigo 19, a responsabilidade do transportador se limita a 4.150 Direitos Especiais de Saque por passageiro.

2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.

3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.

4. Em caso de destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de qualquer objeto que ela contenha, para determinar a quantia que constitui o limite de responsabilidade do transportador, somente se levará em conta o peso total do volume ou volumes afetados. Não obstante, quando a destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de um objeto que ela contenha afete o valor de outros volumes compreendidos no mesmo conhecimento aéreo, ou no mesmo recibo ou, se não houver sido expedido nenhum desses documentos, nos registros conservados por outros meios, mencionados no número 2 do Artigo 4, para determinar o limite de responsabilidade também se levará em conta o peso total de tais volumes.

5. As disposições dos números 1 e 2 deste Artigo não se aplicarão se for provado que o dano é resultado de uma ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos, com intenção de causar dano, ou de forma temerária e sabendo que provavelmente causaria dano, sempre que, no caso de uma ação ou omissão de um preposto, se prove também que este atuava no exercício de suas funções.

6. Os limites prescritos no Artigo 21 e neste Artigo não constituem obstáculo para que o tribunal conceda, de acordo com sua lei nacional, uma quantia que corresponda a todo ou parte dos custos e outros gastos que o processo haja acarretado ao autor, inclusive juros. A disposição anterior não vigorará, quando o valor da indenização acordada, excluídos os custos e outros gastos do processo, não exceder a quantia que o transportador haja oferecido por escrito ao autor, dentro de um período de seis meses contados a partir do fato que causou o dano, ou antes de iniciar a ação, se a segunda data é posterior.”

Na essência, a controvérsia está em definir se o direito do passageiro à indenização pode ser limitado por legislação internacional especial, devidamente incorporada à ordem jurídica brasileira.

[...]

Entendo que, no caso, devem prevalecer os acordos internacionais, especialmente a Convenção de Varsóvia, em relação ao disposto sobre o Código de Defesa do Consumidor, pelas razões que passo a expor.

Ao que me parece, a solução dessa controvérsia passa pela consideração de, pelo menos, três aspectos: (1) o possível conflito entre o princípio constitucional que impõe a defesa do consumidor e a regra do art. 178 da Constituição Federal; (2) a superação da aparente antinomia entre a regra do art. 14 da Lei 8.078/90 e as regras dos arts. 22 da Convenção de Varsóvia e da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional; e (3) o alcance das referidas normas internacionais, no que se refere à natureza jurídica do contrato e do dano causado.

Em primeiro lugar, é fundamental afastar o argumento segundo o qual o princípio constitucional que impõe a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII, e art. 170, V, da Constituição Federal) impediria qualquer sorte de derrogação do Código de Defesa do Consumidor por norma mais restritiva, ainda que por lei especial. A proteção do consumidor não é a única diretriz a que se orienta a ordem econômica nem o único mandamento constitucional que deve ser observado pelo legislador no caso em exame.

É certo que a Constituição Federal em vigor incluiu a defesa do consumidor no rol dos direitos fundamentais, no art. 5º, inciso XXXII (“XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”), e também entre os princípios da ordem econômica, no art. 170, inciso V, mas é também o próprio texto constitucional, já em redação originária, que determinou a observância dos acordos internacionais, quanto à ordenação do transporte aéreo internacional.

[...]

Por isso, diante dessas duas diretrizes – uma que impõe a proteção ao consumidor e outra que determina a observância dos acordos internacionais – em matéria de transporte aéreo, cabe ao intérprete construir leitura sistemática do texto constitucional a fim de que se possam compatibilizar ambos os mandamentos.

Em segundo lugar, quanto à aparente antinomia entre o disposto no Código de Defesa do Consumidor e a Convenção de Varsóvia e demais normais internacionais sobre transporte aéreo, deve-se considerar que, nesse caso, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos em conflito.

[...]

Sendo assim, a antinomia deve ser solucionada pela aplicação ao caso em exame dos critérios ordinários, que determinam a prevalência da lei especial em relação à lei geral e da lei posterior em relação à lei anterior.

Em relação ao critério cronológico, vale destacar que os acordos internacionais em questão são mais recentes do que Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. De fato, embora o Decreto 20.704, que promulga o texto original da Convenção de Varsóvia, tenha sido publicado em 24 de novembro de 1931, as modificações que sucessivamente sofreu são posteriores ao Código de Defesa do Consumidor.

[...]

De qualquer sorte, não creio que o conflito deva ser solucionado essencialmente com fundamento no critério cronológico. Prevalecem, no caso, as Convenções internacionais não apenas porque são mais recentes, mas porque são especiais em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

Em relação ao critério da especialidade, observa-se que a Convenção de Varsóvia e os regramentos internacionais que a modificam são normas especiais em relação ao Código de Defesa do Consumidor, que é norma geral para as relações de consumo. A Lei 8.078, de 1990, disciplina a generalidade das relações de consumo, ao passo que as referidas Convenções disciplinam uma modalidade especial de contrato, a saber, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.

[...]

Tratando-se o caso de conflito entre regras que, em rigor, não apresentam o mesmo âmbito de validade, sendo uma geral e outra especial, seria, então, de aplicar-se o disposto no § 2º do art. 2º do Decreto-Lei 4.657, de 1942 (Lei de Introdução às normas de Direito Brasileiro) [...].

[...]

Assim, devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista tratar-se de lex specialis.

Em terceiro lugar, assentadas essas premissas, cumpre examinar ainda a eficácia e o alcance das disposições constantes do art. 178 da Constituição Federal e também do art. 22 da Convenção de Varsóvia.

Neste ponto, a questão diz respeito a determinar-se a modalidade de contratos e a natureza da indenização abrangida pelas regras internacionais.

Dois aspectos devem ficar sobremaneira claros neste debate. O primeiro é que as disposições previstas nos acordos internacionais aqui referidos aplicam-se exclusivamente ao transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens ou carga. A expressão “transporte internacional” é definida no art. 1º da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional [...].

A disposição deixa claro o âmbito de aplicação da Convenção, que não alcança os contratos de transporte nacional de pessoas e estão, por conseguinte, excluídos da incidência da norma do art. 22.

O segundo aspecto a destacar é que a limitação imposta pelos acordos internacionais alcança tão somente a indenização por dano material, e não a reparação por dano moral. A exclusão justifica-se, porque a disposição do art. 22 não faz qualquer referência à reparação por dano moral, e também porque a imposição de limites quantitativos preestabelecidos não parece condizente com a própria natureza do bem jurídico tutelado, nos casos de reparação por dano moral.

[...]

Assim, meu voto é no sentido de declarar a aplicabilidade do limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais.

Aliás, com base nos fundamentos acima alinhavados, penso que é de se concluir pela prevalência da Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil em detrimento do Código de Defesa do Consumidor não apenas na hipótese extravio de bagagem. A mesma razão jurídica impõe afirmar a mesma conclusão também nas demais hipóteses em que haja conflito normativo entre os mesmos diplomas normativos.

[...]

Na mesma assentada do julgamento do RE 636331, o STF julgou, desta feita sob a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, o ARE 766618, também envolvendo a discussão sobre o conflito entre tratados internacionais que versam sobre transporte aéreo internacional e a proteção conferida ao consumidor.

No caso do ARE 766618, reafirmou-se a prevalência dos tratados internacionais que envolvem o transporte aéreo, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, e, com isso, além da tarifação dos danos materiais advindos da prestação falha do serviço, concluiu-se pela aplicação de prazos prescricionais menores em relação ao CDC, conforme se confere da seguinte ementa:

Direito do consumidor. Transporte aéreo internacional. Conflito entre lei e tratado. Indenização. Prazo prescricional previsto em convenção internacional. Aplicabilidade. 1. Salvo quando versem sobre direitos humanos, os tratados e convenções internacionais ingressam no direito brasileiro com status equivalente ao de lei ordinária. Em princípio, portanto, as antinomias entre normas domésticas e convencionais resolvem-se pelos tradicionais critérios da cronologia e da especialidade. 2. Nada obstante, quanto à ordenação do transporte internacional, o art. 178 da Constituição estabelece regra especial de solução de antinomias, no sentido da prevalência dos tratados sobre a legislação doméstica, seja ela anterior ou posterior àqueles. Essa conclusão também se aplica quando o conflito envolve o Código de Defesa do Consumidor. 3. Tese afirmada em sede de repercussão geral: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”. [...].  (ARE 766618, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017)

(Destacou-se)

Segundo anunciou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto oral, no conflito entre o art. 5º, XXXII, e o art. 178 da Constituição, este último previu um critério para solução de antinomia. Diz o ministro, na sequência, que “neste caso, a Constituição fez um pouco o papel que a antiga Lei de Introdução ao Código Civil – hoje, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – faz em termos de regras de sobredireito. Por conseguinte, aqui há uma regra de sobredireito constitucional que indica como é que se deve solucionar esta controvérsia”. E prosseguiu:

[...]

Penso que a teleologia da norma constitucional é perfeitamente legítima: ela se volta ao interesse de se uniformizarem as regras no transporte aéreo internacional – o que, em última análise, traz não só isonomia entre todos os consumidores desse serviço, como também impõe ao Brasil o respeito aos compromissos internacionais que tenha assumido.

[...]

O artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição de fato prevê: "XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;"

Esse dispositivo está no capítulo dos direitos fundamentais. Há, portanto, um núcleo mínimo de direito fundamental na proteção ao consumidor. Esta, porém, é tipicamente uma norma que o Professor José Afonso da Silva chamaria de princípio institutivo; uma norma que convoca a atuação do legislador. E a Constituição, no artigo 178, prevê expressamente a prevalência das convenções internacionais nessa matéria.

Portanto, eu acho – e isso foi apontado da tribuna pelo Professor Wambier – que a hipótese claramente não é de ponderação, porque não se pondera uma norma de princípio institutivo, convocatória da atuação do legislador, a meu ver, com uma regra que até prevaleceria sobre um eventual direito fundamental, porque seria uma determinação específica da Constituição nesse sentido. Dentro do que me parece ser a melhor forma de se interpretar o Direito, deve-se ler as disposições normativas à luz dos princípios constitucionais. Mas quando uma regra constitucional estatuir em sentido diverso ao indicado por um princípio constitucional, deve-se aplicar a regra, a opção claramente manifestada pelo constituinte – o que me parece que também esse seria o caso aqui, se nós considerássemos que existiria, no art. 5º, XXXII, uma proteção mais ampla do consumidor.

[...]

Assim, na linha antes anunciada, o STF conferiu prevalência à regra do art. 178 da Constituição em detrimento do princípio institutivo estabelecido no art. 5º, XXXII, da Constituição, e, com base nisso, reconheceu a aplicação dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil e que, por acaso, são limitadores das obrigações dos transportadores aéreos de passageiros.

Conclusão

O aparente conflito entre o art. 5º, inciso XXXII, da Constituição, segundo o qual “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, e o art.  178 da Constituição, segundo o qual a ordenação do transporte internacional deverá observar os acordos firmados pela União, resolve-se com a prevalência e aplicação deste último, regra especial. Afinal, quando uma regra constitucional estatuir em sentido diverso ao indicado por um princípio constitucional, deve-se aplicar a regra, que é a opção claramente manifestada pelo constituinte.

Nesse sentido, é o atual entendimento manifestado pelo STF no julgamento do RE 636331 e do ARE 766618, em que se fixou a seguinte tese: "Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor".

No exame levado a cabo pelo STF, no RE 636331 e no ARE 766618, ficou clara a aceitação, com base nos acordos internacionais vigentes, da limitação ou tarifação no que concerne aos danos materiais e à prescrição. Ao mesmo tempo, esclareceu-se que as Convenções de Varsóvia e de Montreal não abordam as eventuais reparações por danos morais, de sorte que, nessa seara, em princípio, tem plena aplicação as disposições do Código de Defesa do Consumidor.

Referências bibliográficas

BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.

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_______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor). Disponível em <https://www.planalto.gov.br>. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12/09/1990. Acesso em 20 de junho de 2018.

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_______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1028330/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/11/2010, DJe 12/11/2010. Disponível em <https://stj.jus.br>. Acesso em 20 de junho de 2018.

_______. Supremo Tribunal Federal. ADI 4097 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008 PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-02 PP-00249 RTJ VOL-00207-02 PP-00605 RT v. 98, n. 880, 2009, p. 95-98 RF v. 105, n. 401, 2009, p. 401-404. Disponível em <https://stf.jus.br>. Acesso em 20 de junho de 2018.

_______. Supremo Tribunal Federal. RE 636331, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017. Disponível em <https://stf.jus.br>. Acesso em 20 de junho de 2018.

_______. Supremo Tribunal Federal. ARE 766618, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017. Disponível em <https://stf.jus.br>. Acesso em 20 de junho de 2018.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 246)

Sobre o autor
Luiz Ramos Rego Filho

Advogado da União. Ex-Advogado da Caixa Econômica Federal. Graduado pela UniDF. Especialista em Direito Público. Cursou a Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal. Cursou a Escola da Magistratura do Distrito Federal.

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