3. O INTERESSE DA UNIÃO NOS CASOS DE GRAVE VIOLAÇÃO A DIREITOS HUMANOS
Pode-se dizer que a União tem pelo menos duas firmes razões para manifestar interesse na federalização dos crimes: interesse interno na solução mais rápida e eficaz dos litígios e interesse externo em evitar possível responsabilização internacional.
No que concerne à primeira premissa, a ANAMAGES se referiu ao deslocamento de competência como uma “discriminação odiosa”, pois o IDC acaba por parecer desconfiar da capacidade e eficiência dos órgãos estaduais.
Todavia, faz-se necessário observar os dados acerca da tramitação processual entre as Justiças Federal e Estadual, e isso não implica dizer, necessariamente, que esta última é inferior àquela ou que se discrimina a atuação dos estados-membros. Justifica-se pelo fato da própria incumbência destinada a cada uma das Justiças, posto que o Poder Judiciário estadual possui maior alcance jurisdicional.
De outra sorte, a União detém um aparato mais amplo de órgãos especializados em determinadas matérias que muitos estados membros da federação não possuem.
Vale mencionar, por exemplo, que no combate à redução à condição análoga à (previsto no art. 149 do Código Penal), a União detém um controle realizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a “lista suja”[4], que expõe as empresas acusadas de explorar essa forma de trabalho. Existe, ainda, uma Comissão Nacional de Erradicação de Trabalho Escravo (CONATRAE – Decreto n. 9943 de 31-07-2003), vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Federalizar a apuração, seja no curso do inquérito ou processo judicial, significa dar maior visibilidade ao caso, além do fato de que a União, como sendo o ente político de alcance nacional, detém melhores condições de prestar uma tutela jurisdicional nesses casos, e não se deve atentar para arguições de violações processuais baseadas em argumentos obsoletos, diante da urgente necessidade de amparo àqueles que têm seus direitos violados.
Em relação à segunda premissa, vale mencionar, ainda, que as responsabilizações internacionais decorrentes de descumprimento a tratados internacionais são aplicadas pelas Cortes fiscalizadoras do cumprimento dos tratados, como a Corte Internacional de Justiça, e recaem sobre o ente político nacional representante do Estado Soberano e não ao estado da federação que possui competência para julgar a causa.
Assim explica Flávia Piovesan (2011):
A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir.
No art. 21 da Constituição Federal está inserida, dentre outras atribuições da União, a de manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, o que assevera sua responsabilidade perante o povo brasileiro e o restante do mundo.
De acordo com Piovesan et al. (2005):
“para os Estados, ao revés, cujas instituições mostrarem-se falhas ou omissas, restará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal, o que:
a) assegurará maior proteção à vítima;
b) estimulará melhor funcionamento das instituições locais em casos futuros;
c) gerará a expectativa de resposta efetiva das instituições federais;
d) se ambas as instituições — estadual/federal — mostrarem -se falhas ou omissas, daí, sim, será acionável a esfera internacional — contudo, com a possibilidade de, ao menos, dar -se a chance à União de responder ao conflito, esgotando -se a responsabilidade primária do Estado (o que ensejaria a responsabilidade subsidiária da comunidade internacional). Isto equacionará, ademais, a posição da União no contexto de responsabilidade internacional em matéria de direitos humanos”.
O art. 109 da CF enumera as hipóteses em que o Poder Judiciário da União será competente para processar e julgar determinadas demandas. À luz do referido dispositivo legal, nota-se que justifica a competência que haja interesse desse ente seja como ente político ou pelas pessoas jurídicas de direito público que a represente.
O interesse pelas causas que se disputem direitos indígenas, por exemplo, leva a crer que a União queira fornecer uma maior protetividade, além do fato de se ter a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como entidade administrativa diretamente ligada ao Ministério da Justiça e com autonomia, dada a especificidade existente na cultura indígena e a necessidade de preservação dessa etnia tão importante à nação brasileira.
Tal interesse nacional também se justifica nos casos ora tratados. Isso porque os direitos humanos devem sempre ser vistos com absoluta prioridade, merecendo maior protetividade e efetividade na prestação da tutela jurisdicional, quando violados. Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover et al. (2010, p. 266), “esse dispositivo integra o quadro de preocupações da Constituição Federal em torno da efetivação dos direitos humanos”.
A União representa todo o território nacional. Sendo assim, sobre ela recai toda a responsabilidade jurídica por qualquer infração cometida em detrimento de dispositivos contidos em tratados internacionais assinados pelo país, ainda que descumpridos por culpa de um ente federado menor, como estado-membro ou município.
4. HIPÓTESES DE OCORRÊNCIA DO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA
O IDC foi suscitado de maneira válida por quatro vezes perante o STJ, mas foi deferido em duas delas, mais um deferimento parcial e um indeferimento.
Conforme a jurisprudência consolidada pela Corte, três requisitos básicos devem ser observados, cumulativamente: 1) autoridades estaduais se mostram insuficientes ou sem interesse na solução do caso, 2) existência de grave violação a direitos humanos e 3) risco de responsabilização da União no direito internacional. O referido incidente processual poderá ser suscitado somente pelo Procurador-Geral da República perante o Superior Tribunal de Justiça.
O primeiro caso (IDC 1/PA) trata do caso do assassinato da missionária Dorothy Stang, que era uma ativista na reforma agrária e outros movimentos sociais em defesa dos menos favorecidos. Objetivando maior rapidez, o então Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles requereu a federalização deste crime, mas foi indeferido ante a justificativa de que as autoridades do Estado do Pará mostravam empenho no deslinde do caso.
Por sua vez, o IDC 2/DF foi deferido por ter sido entendida à presença dos três requisitos. O caso versa sobre o assassinato do advogado e vereador Manoel Bezerra de Mattos, que enfrentava grupos de extermínio presentes nas fronteiras dos estados da Paraíba e de Pernambuco. Além da inércia dos órgãos estaduais, foi alegada, inclusive, a participação de autoridades e agentes da polícia no caso.
O STJ julgou parcialmente procedente o IDC 3/GO, o qual pleiteou o deslocamento dos autos de inquérito e de processos judiciais complexos, que também tinha alegações de participações de policiais em grupos criminosos.
Alguns casos não foram remetidos ao Poder Judiciário da União por ter entendido o STJ que as autoridades locais diligenciavam a persecução criminal, assim como no IDC 1/PA. Por outro lado, um dos supostos homicídios apresentava uma demora de seis anos para averiguação in loco, demonstrando plena ineficácia na execução dos deveres do Estado.
O IDC n. 4 não consta no sítio eletrônico do STJ. Toda a informação que se possui do mesmo é de que foi suscitado irregularmente por um integrante do Tribunal de Contas da União de Pernambuco, pessoa não legitimada a requerer o incidente, alegando que obteve sua aposentadoria em decorrência de atos administrativos deste órgão.[5]
Por fim, o IDC n. 5/PE apresentou o caso do assassinato de Thiago Faria Soares, Promotor de Justiça, possivelmente vítima de grupos de extermínio, numa área conhecida como "Triângulo da Pistolagem", tendo sido reconhecido pelo STJ o preenchimento dos três requisitos, posto que havia a grave violação, o desentendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado, o que causaria possíveis prejuízos futuros, além da possibilidade de responsabilização do Brasil na Corte Internacional.
Diante da narrativa dos casos em que foi levantado o pedido de deslocamento de competência, nota-se que um dos fundamentos do deferimento foi à preocupação pelo eventual envolvimento de agentes públicos com os crimes cometidos, estando atrelado à falta de efetividade do Estado em resolver as lides.
Ressalte-se, inclusive, que se pode analisar esses requisitos, quando presentes, como acontecimentos sucessivos e interligados, sendo o segundo, talvez o fator determinante para a existência do último e seu pressuposto. Isso porque se o Estado se encontra omisso na solução do caso ou envolvido na lesão aos direitos humanos, são elevadas as chances de uma condenação ao país.
5. CONCLUSÃO
A presente pesquisa buscou expor conceitos, os casos concretos e as principais ideias a respeito do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), instituído pela Emenda Constitucional n. 45/2004, abordando o entendimento do órgão responsável por sua apreciação: o Superior Tribunal de Justiça. Foram demonstrados tanto os argumentos contrários, quanto os favoráveis, fundamentando a regularidade do incidente com a Constituição Federal de 1988.
Foram analisados os impactos do incidente do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a sua compatibilidade com os princípios constitucionais, traçando informações acerca da competência, jurisdição dos Estados-membros e da União e da forma de controle de constitucionalidade adotada pelo sistema jurídico brasileiro. Abordaram-se, ainda, as alegações integrantes da Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3486/DF e 3493/DF, a fim de tornar inválida a Emenda Constitucional 45/2004.
A União não só tem competência para acompanhar os inquéritos e processar e julgar os feitos, mas também tem interesse na efetiva solução por, pelo menos, dois motivos: a solução interna dos conflitos e a eliminação do risco de responder internacionalmente perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, considerando as diversas denúncias já existentes em face do Brasil por condutas comissivas e omissivas.
Além disso, a União detém melhores condições de apurar essas causas, considerando as melhores condições em que se encontra no tocante à quantidade de acervo processual, expressada pela visualização de sua competência limitada pelo art. 109 da CF/88, deixando residualmente o que ali não consta à Justiça Estadual.
Por fim, diante da urgente necessidade de se resguardar a integridade dos direitos humanos, ante a tão importante (mas ainda não devidamente respeitada) dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, é indispensável que sejam adotadas as medidas cabíveis necessárias.
O IDC deve ser aceito porque não ofende a Constituição nem as leis, e ainda visa a ajudar na tutela dos direitos humanos, dada a possibilidade de uma tramitação mais célere, além de dar chance à União Federal de evitar uma eventual responsabilização internacional, principalmente, por fim, que os direitos do homem sejam respeitados e punidos aqueles que os lesionarem.
REFERENCIAS
Associação Nacional do Magistrados Estaduais. Petição inicial da ADI 3493/DF. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em: 22 de maio de 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. IDC n. 2/DF, Terceira Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/10/2010. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/>. Acesso em: 23 de maio de 2018.
CASTRO, Marcela Baudel de. A constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência (IDC). 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/24716/a-constitucionalidade-do-incidente-de-deslocamento-de-competencia-idc> Acesso em: 23 mai. 2018.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. São Paulo: Malheiros, 2010.
MEDEIROS, Gilmara Joane Macêdo de. O incidente de deslocamento de competência: histórias e aspectos conceituais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 99, abr 2012. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11392>. Acesso em 05 de maio de 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 79.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos Internacionais e Jurisdição Supra-Nacional: A exigência da federalização. São Paulo, SP: PUC, 2011. Disponível em: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html. Acesso em 22 de maio de 2018.
PIOVESAN, Flávia. Reforma do judiciário e direitos humanos. TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.
ROCHA, Lara Morais. Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://repositorio.uniceub.br/handle/235/10634. São Paulo, 2016. Acesso em: 05 de maio de 2018.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito constitucional positivo. São Paulo, SP: : Malheiros, 2010.
TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCON, Pietro de Jesús Lora. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.
Notas
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. IDC n. 2/DF, Terceira Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/10/2010. Disponível em < http://www. stj.gov.br/>. Acesso em: 23 de maio de 2018.
[2] Associação Nacional do Magistrados Estaduais. Petição inicial da ADI 3493/DF. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em: 22 de maio de 2018.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. IDC n. 3/GO, Terceira Seção, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 10/12/2014. Disponível em <http://www. stj.gov.br/>. Acesso em: 23 de maio de 2018.
[4] Instituída pelas Portarias Ministeriais n. 540/2011 – MTE e 1150/2003 – MIN.
[5] Disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI213631,91041-Desde+que+foi+instituido+IDC+foi+suscitado+apenas+cinco+vezes+e>. Acesso em 29 de maio de 2018.